quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O prédio


o recorte na parede é fidedigno
a silhueta das grades sombras
mudando de posição, pessoas
os pés cobertos de folhas
raios de luz abrindo do céu
lâmina de deus ao sonho

nos vestígios da poeira
enfiando os dedos à película
a janela ao empurrão
agradando o salto a contrapelo

e semiescondido entre as árvores
um velho edifício oficina
de traço sujo degraus de pedra
a luz acesa vermelha

a estranha cúpula
uniforme de ponto branco
o santo lavado a esfregão
como se estivesse atarefado
o quase adormecido rosário
no embrulhar das coisas intermitentes

como um gigante vomitando as entranhas
ondas de granito ao contrário
à velocidade do vento, à velocidade do tempo

fê-lo lembrar de quando era criança
o último alojamento da memória
a última moratória antes do céu

agora a vibração do carril
de uma fascinante intimidade
e pequenos lenhos no rosto

num campo em fogo aberto
a figura atacante da solidão
e dessa massa barulhenta
                 o esquecimento

facilmente o chão podia engoli-lo
não fosse o silêncio ainda senti-lo
                          vivo

o ranger do aço no aço
o chocalhar de uma bengala na escuridão
o invisível maquinista
apertando os lábios à medida
da vibração próxima da terra

as nuvens giram em céu aberto
o som harmónico do vento
a fragilidade em águas agitadas
irregular mas quase musical
carrilhões de vento
o fosso lamacento inóspito
as partes leais ao todo
vigas gastas cobertas de colmo
tubos de latão e a corrida galopante

mas o estalido agudo do vazio
cada compartimento um canto
um resto de uma mesa
um despertador sem corda
e uma prateleira torta

foi uma bonita silhueta
vaidosa lisboeta, no átrio grandes olhos negros
duas vénus ao encontro e uma poltrona de espera
verde opaco floresta, rosa mármore e princesa
o portavoz de uma sociedade de gala
o tiquetaque a cada nova ascensão
que poça escorregadia é a vida

E o corpo dela inclinado ao seu
masmorra
sensual nas articulações de uma arquitectura moderna
de incrível equilíbrio imaginário
nos tendões das suas pernas alicerces antisísmicos
e das suas varandas os mais tísicos seios

das mulheres que não existiam nos passeios

como se fosse um vestido, azulejos
hoje apenas um cobertor de tapumes

quando estavam a retirar os mortos
as moscas voando com um movimento rápido
ficando abatidas pelos esforços
como se um saco de areia, quatro tiros
e longos cabelos endurecidos
nessa mesma manhã as paredes estavam em fendas
vertendo lágrimas
e das madeiras manchas de um santuário
no ciúme da montanha sempre mágica

o cão continua à porta


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