domingo, 3 de março de 2013

Pela janela penetrava borialmente, como se convidasse o frio a entrar. No quarto o estado de espírito era escrito com luz. Suave na transparência de uma cortina esvoaçante. A fragilidade dela sobre a cama. Despida de sombras, as palavras deambulavam obliquamente adormecidas.

- O meu corpo é uma bola de cristal, adivinha-me o seu desejo...desejo...desejo...
Sente melancolia sem definição. É um quarto onde esquecido ficou todo o amor do mundo. As flores que não eram para si dobravam-se no tempo de uma espera infinita. Roubadas aos anteriores inquilinos dessa cama. Nos lençóis amarelos o perfume da mulher era lugar de mofo. Antigo, tão antigo como essas horas que antes foram segundos. Na mesa de cabeceira o relógio quebrara-se nas duas horas da tarde. Ao lado, um copo de água.

No parapeito da janela está um pássaro cor-de-rosa do tamanho da sua mão. O mesmo que noutra história lhe mostrou a maravilha de não estar só. Enigma do abandono da sua imaginação. 
 - Mas se está a janela aberta, porque estás só?

Insolvência dos muros que compunham essa redoma. Acreditou tanto nessa ideia que acabou consumida por ela. E ela convidou vários a entrarem, tantos que o seu corpo já não distinguia o corpo do outro. E dentro de si encerrou toda a imaginação. Na fantasia de estar mais perto do mundo concreto. 

Dorme ainda serena. A sua alma é uma viagem rumo incerto. Presente mas fria. O pássaro avança e toca-lhe no rosto. Pálidos, os olhos abrem-se e encontram-se. Os dele movem-se como se lá dentro girasse o tempo de uma vida. A mão dela toca-lhe. A penugem é doce como algodão. Levanta o lençol e pede-lhe que entre. Que se deite sobre o seu coração e o sinta. Ainda o sente. 

Bebe um golo de água. E o pássaro avança para o copo. E no limite do vidro, mergulha de cabeça. E o coração dela bate, então, acelerado. Levanta-se, com o copo na mão e o pássaro lá dentro. Abre a torneira e enche a banheira. Água quente. Deita-se e junto de si, despeja o copo. E os dois mergulham e nadam agora avançando pelo profundo oceano. 
Dias, semanas, meses...subaquáticos. 
No silêncio é o choro da baleia distante que guia.
- As baleias também choram, não sabias?- e ela respondeu-lhe que nunca o teria imaginado.

Dias, semanas, meses...subaquáticos.
E aos poucos ela começou a sentir o que antes no quarto lhe tomava o espírito. 
-Quero regressar? Tu ficas?
O pássaro olhou para ela e sentiu uma enorme compaixão pela sua perda. Não havia caminho de volta, não havia como regressar à vida.

Nesse momento, a sua alma partiu.

Sem comentários:

Enviar um comentário