Sem sono. Dentro de um livro de um poeta amigo estava uma folha solta. Intitulada "destechãopisado", comecei a ler e as palavras pareceram-me familiares. Sem assinatura e impresso, não consigo identificar se é meu ou se alguém o deixou dentro do livro. Talvez seja meu. Poeta amigo. Não nos cruzamos há anos. Nas tuas palavras reconheço ainda algo de mim.."separamo-nos nessa noite tão frios na proximidade inventamos uma distância". Que distância é esta que nem as minhas próprias palavras reconheço? Que abismo esse que me consome o tempo e me deixa desconhecido? Talvez não sejam mais minhas se não as reconheço mas aqui ficam...
in "DESTECHÂOPISADO"
Já se ouve lá ao fundo o estertor carregado do vagão bruxuleante. As cabeças cirandam entre o túnel profundo e o grande relógio digital. Sinto dentro dos casacos, dentro da pele transpirada dentro do cansaço, dentro das dezassete horas que o relógio marca. Sinto a inconsequência trágica de mais um dia que termina...
Chega então com o zurro estridente do metal: as portas abrem-se, as pessoas atropelam-se com uma impaciência desastrosa, como se a pressa lhes reservasse um lugar.
Ninguém fala. Escorre vagamente um rumor insólito, entre o atropelado egoísta e o "Deixa passar que a senhora vai grávida!" Deixo-me ficar para trás, sou o último. Não entro. Liberto a minha falta de capacidade para os convívios absurdos. São dezassete e dois e consegui decidir tudo isto nos últimos doze segundos. Começo a ficar afectado.
A estação devolve-se novamente ao vazio deste lugar subterrâneo. Nada, de facto, aconteceu. Restam meia dúzia de pessoas atrasadas resmungando para se justificarem a ninguém. Nenhuma delas compreenderia o que acabo de fazer, e cortariam um dedo para estar no meu lugar e ter entrado. Faltam agora dezanove minutos. Não tenho sequer coragem para folhear o caderno que trago comigo religiosamente. Felizmente ninguém repara consideravelmente em mim, ao ponto de desvendar a minha ansiedade. Para estas pessoas sou apenas mais um, não passo de uma parcela da soma. Resolvo sentar-me no chão, salientando a minha indignação contra este mundo deprimente. Desço a cabeça sobre os joelhos marcando a minha atitude não passiva. Resta-me ficar nos azulejos frios. Não faço nada que nunca ninguém tenha feito: desapareço na sombra estagnada dos dias.
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