sexta-feira, 30 de agosto de 2013

sem preço

dentro do armário
vesti me ao contrário
como não tenho espelhos
penteei me com os dedos
lavei os dentes com maçãs
e abri os ovos na sertã
procurei os fósforos em vã
tentativa de omoleta los
talvez uns talos frescos
lá dos extremos do quintal
levei a mal de colhe los
ainda são pequenos
saí à estrada descalça
olhei o chão da vila
branco de esfregão
de porta em porta
cuidada florida
lá estava a Dalila
à espera na mercearia
torta coxinha bonita
bom dia vizinha!
e assim se começa
o dia







Acordar
papel vegetal e deixa te ficar
ardes, acho que vens de Marte
em teus olhos um mundo à parte
a divisão em momentos frénicos
que mundo de cão, não confunde
a subtil laranja que nós gomos
de uma franja que em nós cega
ao lume, deixa que ferva
coalhando depressa se arrefeça
ai a cabeça, pesa me na testa
acho que vou à terra, espera
e onde a voz conhece, o muro
e se fossemos um furo?
espreita, o mundo seguro
na palma da mão, agarro
um escudo de profundo
Amar




quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Momento

-Agarra te à vida filha, agarra te.
-Ela só está com uma quebra de tensão já lhe passa.
E a outra coloca-lhe a mão sobre a cabeça e insiste
-Agarra a luz. Não te deixes esmorecer. Agarra a vida.
Embalada pela voz, confortável e calma, deixa-se ir e assim voltar pouco a pouco.
E o enevoado da realidade vai-se redesenhando conseguindo perceber os contornos do que está à sua volta. Eu comecei a sentir me tonta e deixei me levar. Talvez quisesse partir.
As pessoas iam chegando e viam o estabelecimento fechado. Não compreendo, hoje é dia de estar aberto. E ela vê na sua mão um rolo de papel higiénico riscado azulado. Levanta-se devagar e começa a andar deixando a ponta esvoaçar pelo jardim a fora. E mais intensamente, começa a caminhar mais depressa desfiando o rolo todo como serpentina, pensou, que coisa linda. Dançando enlaçando-se de cor e vida. E ao olhar em volta, já não estava no jardim e sim na sua cidade natal, numa rua estreita. A porta é agora a porta de onde se escutam instrumentos afinando-se e cartazes vermelhos anunciam a festa pelas paredes. Estão a preparar-se, a cidade inteira vai estar em festa. Estou feliz por estar aqui. Percorrendo as ruas sente o contágio da azáfama da vida. Flores de papel enfiadas em cordel elevando-se pelos cimos das janelas, música crescendo de todo o lado, gente correndo carregada de comida e bebida, tábuas, muitas tábuas para se construírem cabanas na praça. Agarra te aqui, pensou, aqui, onde cresceste, onde já foste feliz, agarra te à luz da infância e dos momentos de criança. Dança com todos eles, esvoaçando te por entre estas paredes caiadas de branco, floridas e musicadas de gentes boas. 
E a voz de antes regressa. Anda, tenta levantar te filha, devagar para não caíres, apoia te em mim. Hoje está fechado. Tentamos outro dia. Vamos a outro lado. De qualquer maneira também não te faria bem vir aqui tão cedo. Não tão cedo. Vamos eu ajudo te. Venha tia, ajude aqui a menina. 

A carocha mafiosi

Uma caixa de figos maduros
esfomeada lambuzou os dedos
e comeu até os lábios gretarem
mitos ou ditos, lavou e esfregou
com receios futuros
inimigos? lá os terá?
mas uns figos assim tão bonitos
quem os envenenará?
só nas histórias da carocha
espera lá, mas esta é mafiosa
e uma volta à barriga
ai ai a morte adivinha
grita desesperada
eu sou apenas gulosa!

E
esticada de barriga inchada
morreu a filha envenenada
no lugar do magnata
retido numa reunião
na rua da prata!

Frank di ferrado

Este é de secagem rápida
carrega no botão e já está tudo desfeito
na passadeira andante nos levamos
um piso abaixo nos vendemos
ao concreto afinal de um guardanapo
e tanta lábia para nos aromatizar
tal lugar havemos de conquistar
isso isso, andamento ao visto
que queremos mesmo é trabalhar!

linhas de montagem de cabeças
que rolam sobre a mesa do presidente
galinhas de aviário cheias de detergente
lavadinhas a brilhar tão coradinhas
e o ovo de uma gema esverdeada
de sabor amargo tipo escarra
quem dá mais? a título de prémio
o vómito ao virar do milénio

sonham picam põem
as peças que compõem
frankenstein espantalho
olha o milho que é preciso
estas maçarocas são de vidro
e se fossemos por um atalho?
prefiro dormir de lado
devido ao estômago vazio






terça-feira, 27 de agosto de 2013

e nada mais

e abriu a mão e deixou cair à terra uma semente
abriu as pernas e deixou cair ao ventre uma criança
abriu os olhos e deixou cair o mundo numa poesia
abriu o coração e deixou entrar amor
                              que estava em falta




Bucolias

A frescura da manhã, a vizinha chegando da feira
a caneca do leite, o orvalho, o homem ao trabalho
bucolias de vidas tranquilas, montes em sucalcos
crescem as vinhas da paz, os sonhos aos retalhos
na calma da faina a bordo dum tempo doce lento
crianças correndo ladeira abaixo, o sino da capela
na eira secando memórias de futuros tão próximos
que os anos adivinhavam, o regresso aos campos

e partem de longe homens cansados
desenraizados de uma cidade
em busca de liberdade




segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Andando por aí

Tenho visto o maior horizonte
as planícies mais distantes
a vida simples das aldeias
animais, árvores de fruto, fontes
as águas profundas onde mergulho
campos verdes, roxos, amarelos, secos
descalça, despida, com terra nos dedos
tenho me deitado com o sol e levantado
com ela, a vida, ainda mal dormida
tenho dançado, rido, bebido, comido
conhecendo gentes de outros lugares
tenho feito a mala e partido por aí
outra e outra vez, faminta de mundo
tenho deixado os livros fechados
e os braços abertos recebendo
tenho dado de mim, deixado por aí
tenho voado de olhos pasmados
por céus infinitos amando
e a cada regresso, quero mais
como se as paredes fossem banais
desta casa que está a mais
quero não ter mais poiso de raiz
até que me doa a alma de feliz
conhecendo, absorvendo, sentindo
derivando sem estruturas de cimento
sem plano, sem medo, sem volta
quero conhecimento de lá de fora
deambulando sem rumo
conhecendo os cantos ao futuro





2013 - UltraLeve - Mc Santiago e Déni Shain

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Reparos do tempo num passeio ou um conto gay? - Um conto Esquizofrénico

Estava na esplanada, tinha acabado de sair do partido onde a título de convite aceitara participar nas jornadas de trabalho. Deu-se conta da maravilha de estar vivo. Quando temos a chance de recomeçar e observar os caminhos a emergirem de todos os lados. A possibilidade de escolhê-los enchia-lhe os olhos de água. É isto viver! Poder escolher! Absolutamente divino esse poder e deteve-se mais pouco imaginando-se encaixado em cada uma das diferentes alternativas de futuro. Posso ser o que eu quiser daqui para a frente. Posso fazer o que eu bem entender. Escolher um trabalho (dentro das hipóteses que se apresentam), escolher amigos, escolher um amor, escolher uma atividade desportiva, escolher...E os anos vieram-lhe à memória. Quantas mais vezes poderei eu fazer isto? Recomeçar do nada. Quantas mais chances a vida me proporcionará? A idade avança e alguns impedimentos se vão instalando como maior incapacidade física, menor beleza, menor destreza intelectual, menor esperança. Andando para trás dá-se conta de que a inconstância tem sido a sua única constante, essa fome insaciável de viver, experimentar e conhecer. Histórias que já dariam um livro. As histórias dessas vidas. E foi então que a cidade se tornou mais bela. Só aqui ou fora do país poderei ser assim, aqui onde ainda há lugares que não conheço, pessoas e ideias, tarefas e caminhos múltiplos. Aqui onde o espaço parece estender-se à medida da vontade e isto confere-lhe uma beleza única. Essa rede de ligações infinitas, real e concreta. 

Terminou a imperial e o cigarro e seguiu andando lentamente, sem qualquer intenção de pressa. Queria apreciar o paladar desta redescoberta. Este encanto que há tanto tempo estava silenciado dentro de si. Observar os recantos, as pessoas caminhando, as peculiaridades de um passado arquitectónico erguido ao longo do rio, que hoje o encantava uma vez mais. Seguiu em direcção à baixa. Parou na frente de um prédio alto que subia ao Carmo. Talvez tudo tenha começado por aqui. Talvez não, se estivesse na Estrela ou em S.João ou na Graça ou mesmo no Intendente diria o mesmo. Sim, no Intendente, a sua primeira residência na cidade. Já lá iam quatorze anos. O tempo voara mais depressa que a consciência dele. Chegara com uma mala às costas e uma vontade gigantesca de existir. Tinha a certeza de ser nesta cidade feliz. Era jovem, muito jovem. Não tinha nenhum plano definido a não ser estudar e divertir-se. Sim, e deslumbrar-se com a dimensão da cidade. Cedo começou a percorrê-la a pé. Horas andando e observando. Donde partira tudo era demasiado pequeno. As pessoas pareciam-lhe pequenas, acomodadas, encostadas à muralha que as cercava protegendo de um mundo inteiro desconhecido. Hoje sabe que quase todos acabaram por partir. Cada um ao seu ritmo. Talvez também eles tenham saudade e desejo de lá envelhecer. Outro pensamento lhe tomou o caminho, não havia reparado que aqui ficara por tantos anos que se tornara ele numa dessas pessoas, pequenas e acomodadas. Não, acomodado no espaço, pois não, dentro de si não tinha encontrado outra coisa senão desassossego. Desarredou a ideia. Voltou a ver-se ao espelho numa montra. Envelheci, de repente. Ao descobrir novos restaurantes já na subida à graça que competiam musicalmente, sorriu, os santos continuam por aqui, é bom para o turismo. Comer e beber, conversar jantando numa esplanada, é isto agora. Noites, bares...não mais. Já uns dias atrás tinha encontrado fotografias suas e reparado que até há bem pouco tempo a sua idade não era a real. E de repente sentira-a na pele. Assim de um dia para o outro, envelhecera. Nos gostos, no rosto, na maneira de viver e de querer vivê-la. Não ficara triste com isso, pelo contrário. Um certo prazer nesse novo estado dentro de si surgia em novas expressões de querer existir. Isso era mudança. Sempre bem aceite no seu perfil andarilho. Mudança sem nostalgia, sem dor nem imposição. Perfeitamente assente em si porque natural. 

Começara a cair a noite. As luzes acendendo-se. E aquele quebrar da luz. Estava um pouco cansado da subida e parou num banco de jardim perto do miradouro. Começou a enrolar um cigarro. Mais adiante noutro banco reparou num rapaz talvez da sua idade, que contemplava um mapa, virando e revirando-o ao contrário. Estaria perdido? Levantou-se e aproximou-se dele. Hello. O outro respondeu com um sorriso. Era delicado, franzino e pálido. Da sua voz saiam tons femininos. Talvez seja como eu, pensou. Em inglês pareceram encontrar-se. O outro estava de facto perdido. Procurava um Hostel que pelo nome da rua acabaram por perceber que era logo ali. Não estava estranhamente identificado. Partilharam então o cigarro e algumas coisas de si mesmos. Era afinal francês. Estava em viagem já há uns meses. Partira porque queria conhecer outros lugares antes de assentar no trabalho para que estudara, medicina. Sentia ainda dentro de si vontades que o desprendiam de uma vida sedentária e por isso ali estava ele. Pierre. 

Ao chegar à porta do Hostel estavam três indivíduos que discutiam e a palavra passaporte chamou-lhe a atenção. Chegaram mais perto para escutar. Tinham o passaporte de um deles retido lá dentro e afirmavam não conhecê-los. Estavam desesperados e iam chamar as autoridades. Aquele ambiente não adivinhava coisa boa da estadia de Pierre. Olharam um para o outro. Do you have some ideia? Other place to stay? Ele respondeu que não, tinha encontrado e reservado este pela internet e parecera-lhe aceitável. You can stay at my house. Esta frase saiu-lhe com entusiasmo, o outro atraia-o. Não queria incomodá-lo mas acabou por aceitar. 

A primeira noite. Fizeram jantar para os dois. Decidiu cozinhar-lhe algo português e seguindo a receita que a mãe lhe enviara uns dias antes, saiu-se bem. Beberam e conversaram muito sobre a vida de cada um. Cada vez Pierre o cativava mais pela forma descontraída como encarava a vida. Não havia pressa em ser alguém integrado em sociedade. Passara por experiências que o inclinavam cada vez mais para uma alternativa que o afastava de os demais. E isso encantava-o, precisamente por se encontrar no mesmo ponto. Qual ponto? O ponto em que tudo para trás foi experiência e tudo para a frente será descoberta. Porque tudo vivido até aqui como se nada estivesse planeado. Como não podia deixar de ser, saíram para lhe dar a conhecer a noite de Lisboa. Nenhum dos dois mostrava grande vontade de envolvimento em multidões mas conhecer o ambiente fazia parte de qualquer roteiro da cidade. E a pergunta surgiu...Do you want to know some gay bar? Pierre respondeu que sim, chegando-se próximo do outro. Não seriam precisas mais palavras, estavam em sintonia. Ficou feliz, não estava à espera de ser tão cedo. Encontrar alguém interessante tão rapidamente. E uma certa angústia tomou-lhe o peito. Alguma coisa deve estar errada. Não é possível que lá em cima me estejam a premiar com algo bom depois de ter feito o que fiz à última pessoa que esteve comigo. Deteve-se de medo e impôs dentro de si um certo afastamento para não cair em abismo pelo outro. Além disso Pierre regressaria ao seu país, seria apenas um encontro feliz numa viagem, passageiro e talvez inesquecível, mas passageiro. E tentou manter isso presente dentro de si. Dançaram um pouco, beberam mais, beijaram-se, passearam mais um pouco pela multidão de gente de todos os lados e seguiram para casa de taxi. Em casa, partilharam uma só cama. Contentes por estarem juntos neste feliz acaso. 

No dia seguinte tinha alguns compromissos e Pierre seguindo as suas indicações foi passear pela cidade. Combinaram de jantar juntos numa tasquinha de fado ali perto. Pierre apenas escutara algumas coisas pelo Youtube e fascinava-o o sentimento que vinha desse modo tão nosso de cantá-lo. Na voz de uma mulher gorda descreveu-o como a coisa mais bela que escutara até aqui, onde a beleza se funde com uma profunda dor de viver. Deixou cair algumas lágrimas emocionado. Agradeceu-lhe por este momento. Contou-lhe que ouvira o flamenco cigano em Sevilha e que fora o mais próximo que conseguira alcançar. Que também lá se emocionara com uma força que parecia brotar das entranhas  de quem o dançava e cantava, que o encantara por demais. Confessou ser essa força a sua grande procura nesta viagem. Essa paixão pela vida, esse sentimento tão forte que lhe provocava o choro pela emoção de não conseguir caber dentro do peito. Que não o encontrara até então na sua vida em nada. 
Foi como se estivesse a ver-se ao espelho. E continuaram viajando por lugares onde já tinham estado ou gostavam de conhecer, ou partilhando um ao outro momentos de viagens de cada um. Viajar. Sim, eram ambos viajantes embora ele tenha viajado nos últimos anos dentro de si e no mesmo lugar. 

No segundo dia choveu densamente na cidade. 
Não havia compromissos e por isso permaneceram estendidos na cama por horas e horas, amando, falando, dormindo, comendo..ficando-se. Como se nada mais existisse fora daquele quarto. O tempo caindo sobre o corpo feliz. Ao final da tarde parou finalmente de chover e puderam assim sair. Deu-se conta de não ser assim tão bom anfitrião por incapacidade de sugestão de lugares, para si, a cidade era a parte antiga do castelo, de alfama e da graça, pouco mais lhe importava ou digno de turismo. Jantaram junto ao rio perto do cais do Sodré e deambularam pelas ruas conversando até altas horas da madrugada. Combinaram para o dia seguinte, caso o tempo estivesse simpático de irem a Sintra. Descreveu a Pierre um cenário idílico de bosque encantado. Por Colares haveria certamente mercados e produtos da terra e as praias por lá eram frescas e saudáveis. E assim foi, nada menos que isso. Pierre amou os lugares, o palácio, a serra, as pequenas terras por onde passaram e as praias paradisíacas. À noite ao regresso passaram por uma aldeia que estava em festa e decidiram jantar por lá. Este Portugal era um outro país. Não menos que o da cidade, onde personagens caricatas desfilavam ao ritmo de uma música que repetidamente se infiltrava ao ouvido contagiando o bailarico de velhos, crianças e jovens animados pelos copos que se vendiam a um preço convidativo. Embebedados depois de muito rirem de tudo isto, a condução não era boa opção e por isso foi numa das praias do Guincho que adormeceram enrolados no saco de cama que sempre vinha na mala do carro. Acordar com o sol a nascer da linha do mar é qualquer coisa, nas palavras de Pierre, de mágico e sobrenatural. Aos poucos as pessoas começaram a chegar em família e o espaço transformou-se num apinhar de sufoco. Era fim de semana pois era. Tomaram banho no mar, apanharam um pouco mais de sol e seguiram viagem rumo ao outro lado, a Arrábida. Sem se darem conta, estavam ambos em viagem e agradavam-se na companhia descontraída um do outro. Mergulho, era um dos atractivos lá. E choco frito em Setúbal para o regresso. Algumas das suas coisas favoritas de sempre e estava a vivê-las com ele. Isso era perigoso e ao mesmo tempo certo. Sentia um encaixe tranquilo e isso descansa-lhe o espírito dos medos que de vez em quando reapareciam. Das suas conversas começaram a surgir ideias futuras de viagens conjuntas. Por onde gostariam de passar, fazendo o quê, em busca de quê. E tudo parecia bem. Pierre falou da hipótese de um dia ir viver para o campo, para uma aldeia, onde plantasse o que comesse e pudesse ser médico de pessoas que o amariam pela sua humildade e dedicação. Longe da riqueza e das doenças das grandes cidades. Uma vida simples. Falou do sonho de ter um filho ou dois. Das dificuldades que atravessaria por estar num meio pequeno e do preconceito que isso acarretaria. Falou da mudança de valores e mentalidades que era urgente acontecer nas sociedades de hoje. Do valor da terra, do amor e da família, longe do egocentrismo que se sentia em meios urbanos. Para si, era como escutar uma voz que há muito tempo lhe falava de dentro. O regresso à origem, donde tudo de si partira. E não é que não tenha encontrado no seu caminho anterior companheiros que achavam as suas ideias interessantes, mas até aqui não lhe parecera possível acreditar que a dois isso seria possível. Aos poucos dentro de si nascia essa idealização de relação, de vida partilhada. 

No quinto dia, acordou com Pierre a fazer a sua mala. Ainda meio atordoado questionou-o. Estava só a arrumar as suas coisas. Mas aquele gesto não lhe pareceu natural no seguimento dos últimos dias. Sentaram-se a tomar o pequeno almoço em silêncio. Incomodado, puxou a conversa. Estaria o outro a sentir necessidade de partir? Não estavam bem juntos? Pierre falou de ter planeado inicialmente uma semana em Portugal e de estarem à sua espera em Marrocos para seguir por África uns companheiros de viagem que havia conhecido em Espanha. Donde o seu pensamento fez uma ligação aterradora, teria Pierre conhecido alguém em Sevilha e daí estar associada aquele emoção que falava na noite dos fados? A confirmação dessa suspeita seria uma desilusão gigantesca para si, como era possível ter-se enganado tanto ao longo destes dias, ter dado tanto de si a esta pessoa, que afinal tinha outra à sua espera. Para si era como se dois gémeos se tivessem encontrado para todo o sempre. Não era ingénuo a esse ponto mas a fantasia era-o. E pressionou o outro em busca de uma resposta que o descansasse. Irritado, Pierre levantou-se e começou a fazer a sua mala, na verdade, a terminar o que estava a fazer. I Hate when people pressure me! Pressionar? Estas palavras foram como facadas dentro de si. Chorou desesperado agarrado ao francês que parecia possuído por uma outra alminha demoníaca. Toda a sua delicadeza parecia transfigurada numa pessoa fria e má, ausente de afecto. Como era possível? Não, não tinha previsto este final, não assim tão rápido. Não neste momento de felicidade profunda. Teria sido usado pelo outro, iludido, elubriado e todas as palavras que lhe doíam rasgando dentro de si qualquer coisa que medonhamente temia não ser capaz de reparar. Tinha sido um tonto. Uma vez mais. Deixou-se cair sobre o sofá. O outro olhou-o uma última vez e pediu-lhe perdão. I m sorry, so sorry, i can not stay. E fechou a porta atrás de si. 

Se não tivesse parado para fumar um cigarro no banco de jardim, se tivesse seguido pelo Martim Moniz em vez de pela Sé. Se tivesse ficado mais tempo na esplanada. Se naquele dia não tivesse saído de casa. Se não tivesse convidado o outro para ficar em sua casa. Se...Se não tivesse querido viver dessa forma efusiva. Se tivesse controlado as suas emoções. Se...não tivesse acreditado.

E os dias foram passando. Desencantados. Tristes. Dolorosos. Um após outro, tentando apenas recompor-se. Procurando esquecer essa semana. Numa solidão de reparação que dia após dia surgia como mais auto-destrutiva. Bebendo, fumando horrores. Donde todas as trajectórias futuras lhe pareciam inúteis. Nada daria a nada. Sem esperança. Revoltado porque no momento em que estava sereno deixou-se cair por um buraco. Antes de tudo acontecer, estava feliz consigo próprio. Dos muitos dias que passava fechado em casa, olhando para o tecto, chorando, um ou outro saía para caminhar. Nesses sentia-se mais próximo de si. E depois de várias semanas numa dessas caminhadas, voltou ao banco do jardim. Enrolou um cigarro e olhou para o lado. Naquele mesmo outro banco estava Pierre. Sentado olhando para um mapa com a mesma expressão de perdido. Incrédulo dirigiu-se a ele. Pierre? O outro fitou-o com um olhar de estranheza. Yes, how do you know my name?

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Torrão de Alicante

Revirando os olhos, a música sacudindo-lhe a tromba
pimba no facebooki que é lá que agente vive, diz-se
que lá pelos montes se gosta de ir às pinhas, adivinhas
é o pão com chouriço e a caipirinha, e a sopa de peixe
a sair quentinha, e o jogo da cavilha e a malta da vila
vem tudo em romaria que é dia de arrebitar o malho
ou mangalho e o tio das bochechas rosetas, água pé
sai mais um cromo para a caderneta e a ela faltam-lhe
dentes na boca...lento, o tempo andando à roda, colhe
meu coração com azeitona, da tua mão uma promessa
e no fundo da albufeira cai o anel, rema que se tarda
damos a volta à ilha, vamos à ginja e ao mochão e tu
preferes sangria, mim verde à pressão, mete no pão
a sardinha e o sardão, de bicicleta anoiteceu, perdeu
de madrugada a chave de casa? tremor de terra, leite
na cama e bolachas, atas agora o ramo de oregãos
mais ar talvez esteja furada, e as páginas rasgadas
e o jardim das estátuas e os cisnes atrás, veloz veraz
que como torrão de alicante só lá encontrarás...





AEIOU

A
caminhada trágica mortal
em competição com o sol
locomotiva a vapor andor
marcianos em trajectórias
hibernadas fora de órbita

E
numa glória perversa
sem fenómenos vivos
milésimos de segundo
distâncias aritméticas

I
follow perscrutando
o silêncio da terra
isótopos marinando
em auto-retrato cela

O
que emana a força?
em filigrana de ego
escarnecido ao olho
raro momento pinta

U
know inelutável
afogamento afluxo
que nós é pincel
de um gesto de tudo





quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Tenho os dedos encardidos
de angústia de aproximação
e o esqueleto de pé ante-mão
aprendiz de novos sentidos
enlaçando os braços
não esmoreça radiosa
em qualquer fantasia
não se percam laços
fio de água clara
da fonte sem fastio
caindo o horizonte
a sede matando
dei um passo em frente
e deixei-me planar
-anda vamos viver
como gente
sem medo de amar

ainda custa a soletrar
com medo de amargar!







quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Voo encorpado

peregrina gota a gota da torneira
enleada à volta da cabeça a faina
da peneira sonhos de impossível
aos fornos legível é água ardente

no impeto de sermos gente mina
quási garatuja ladeira sonâmbula
tagarelando linhagem condoída à
margem de uma vida de planura

de um só safanão um avião cisma
de querer ser brinquedo e revolto
no cortejo anda louco ao contrário
pendurado num ramo ultra oco

e zás, uma parelha de coices atrás
até o chaparro é filado, aturdido
empurrado a léguas de distância
sem préstimo acoitado no charco

na lonjura desabando uma ideia
como caldo entornado do tarro
e no peito da campina se deita
musicando a guizeira no lombo

leves culpas de pequenos nadas
em romaria do capricho destino
cautela aviãozinho esparvoado
que o tempo faz sazonar alento

fitando nos olhos ao curativo
esforço hercúleo penitência
interesse vil da consciência
azáfama mortal de improviso

a esmo a granel não esmoreça
a pardalada pele e osso anda
serás lufa-lufa de velhaquice
malandrinho tirano à mama

e da estampa dos sentidos
hão-de soar novos sinos
mazelas fulminando avisos
mas o fastio será abismo

é o voo encorpado da vida
andar molhado à chuva
se não estivesse deitado
iria ao chão de tanta tusa!













terça-feira, 6 de agosto de 2013

Espaço aéreo

Serão desmaios da chávena futuros?
de uma migalha um santuário bizarro
o clamor taciturno antagonismos nós
e na cintura a mão no solavanco lida

arfante esse comício doces cóleras
malefício bem, ou palmada nas costas
servil a toda a prova, denso reserva
ou apenas um farrapo tapando buraco

que seja ao menos de cetim e festim
no baile da escola abraço namorados
ouvindo ternuras de começo de vida
mitos que nos correm pelas artérias
para sempre no parapeito da janela

e da gaiola te escapa um papudo
arreliado de barras de ferro digno
de um universo inteiro, pintalgado
de porte elegante e asas prateadas
ainda embaciado, aflorar conecto

e a bola de bilhar rola pela mesa
movediça acesa pelo candelabro
desígnios de jogos refinados só
real e franzido ao imaginário pó
no final da garrafa tudo depósito

tranquilo espaço lácteo incógnito
passo a passo cometendo sítio
apropriando avivando a memória
com ou sem glória, voa errante
por esse céu avante, santuário

foguetão mastigado afrontado
sórdido painel de lábios abertos
vago despertar que nos esmaga
e lança despidos aos confins
assim mesmo sem rimar, feliz


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

cartas de dentro deles

Ela:
A folha em branco é tal e qual a vida quando se decide recomeçar. E até que ponto isso é possível? Vai-se rabiscando qualquer coisa mas sempre se pára a meio lê e apaga-se. Porque de cada vez que se tenta, o início é muito mais complexo do que o anterior, e o medo e o passado contaminam toda e qualquer continuação do ponto inicial. Então entregarmo-nos por momentos é vertiginoso, baixando a cortina da defesa, como crianças nuas e expostas ao mundo, o abismo é medonho. E recuamos e fechamo-nos. Numa concha inacessível sem pérola nenhuma bonita por dentro. Só fantasmas. Ser livre. Que logo depois da liberdade o ser humano se inquieta e se prende. E como se fosse simples deixa-se levar. Ao sabor da corrente porque de início se sente extasiado. Mas aos poucos qualquer coisa debaixo do tapete vai surgindo sem ser pedida. E vai crescendo e corroendo o conforto que sente na ilusão. E vai destruindo-a. E volta-se ao isolamento, até podendo ser passageiro, mas recua-se para procurar a calma e a paz do nada. Da esperança, do acreditar, tem esperança de recomeçar na página seguinte ou até ainda na mesma. Dependendo do sentimento que desse isolamento consegue extrair. 
Os caminhos da solidão conduzem-nos muitas vezes a lugares confusos, sombrios, inquietos. E o controlo tem que ser absoluto para não nos perdermos por atalhos fáceis. As coisas difíceis são de uma forma geral as mais prazerosas. Mas as pessoas simples não concordam com isso, afirmam que a vida é fácil agente é que complica. De uma forma geral, nunca a senti assim. Por momentos, enquanto me deixo cair sobre os teus braços. Fechando os olhos e apenas escutando a tua alma respirando em simbiose com a minha. Até que me levanto e a vida segue em frente. Ela segue e eu por qualquer motivo fico retida num limbo de pânico, em solidão. Já reparaste que o caminho a descer é sempre o mesmo? E mesmo assim insiste-se em fazê-lo às escuras para não o decorar. Para lá voltarmos vezes sem conta. Como voltamos a essa folha branca, porque branca não está bem. E se estiver? E se for a última página? E se a pressão rebentar com a lombada e as páginas se espalharem todas e por buracos do chão se perderem de vez. E se? Apenas mais um se, a juntar-se a todos os outros que nos paralisam. 
Ando por aí, um pé aqui outro no além. E não digo a ninguém. Nessas paredes por onde escreveste, choveu tanto que não cheguei a saber,  da cor das tuas palavras. Será da cor da mágoa? Será da cor da saudade? Será da cor do vai-te embora? Será da cor do não gosto de ti? Será da cor do medo também?

Ele:
Ela é gira, sabe fazer coisas doces nas orelhas, é meiga e calma. Mas será que é ela? Não haverá por aí outra que me encaixe melhor? Uma mulher assim e assim e assim é que eu queria. Vou magoá-la e encosta-la a um canto, pode ser que se vá embora? E depois, ficamos novamente sós. Entregues a um vazio impossível de suportar. Demasiado longo para não pedirmos ajuda. Infernal ao ponto de não suportarmos a angústia. E procuramos pelos suportes, os mesmos que sempre tivemos e nunca abandonámos para nos apoiarmos e não haver sequer queda nenhuma. Será que ela foi mesmo? De vez e não volta? E porque não paro de pensar nela? Se não me interessava...Estou fodido. Que se foda. Pode ser que ela venha atrás de mim. Se gosta vem. Sabia-me bem agora um carinho mas depois era uma chatice. É melhor é ficar quieto no meu canto. 

E fugindo correndo
uivando lobo de dentro
de pestanejo artimanha
a cegueira da queda
o moscardo tecendo
já o dia amanhecendo
amando noutros braços
contraída em orgasmos
ela foi metamorfose
de um amor morte
gatafunho de ostra
ou pérola beleza
borboleta agora
voando poesia a fora
platónica nesses versos
tónica de sofrimentos
e dentro do peito
onde se esconde o jeito
abóbora saudade
soberba a eternidade
de um momento
de um encontro

ora dança, ora amansa
o cabo da boa esperança
borboleta roleta cega
da valeta uma ideia
de promessa na teia
caçarola traulitando
nas voltas cozinhando
a vida ao trambolhão
acertando no coração

ora dança, anda vá
tão bonita e nós lá
na calha bifurcada
da distância imposta
Fly my birds
go away find the skies
touch the freedom
la libertad

os garotos queimados do sol
correndo pela areia descalços
folhas que pendem do lençol
nauseas nos mamilos
flamingos ao longo da costa
deslizando um papagaio
o salto de um gato ao telhado
à boleia na camioneta
lábios de mulher carnudos
ao fundo da rua estreita
de tudo boas maneiras
de vagabundear
veleiro de tijolos de linho
pilar da fundação de amar
eterna arborização mãe
se deter corpulento
espasmo compulsivo
passando o gesto polido
por dentro


The human faith
de pantufas descendo o asfalto
na narina o furor artificial
a milhas ainda da baía do amor
da decadência da reserva de si
cobrindo de poeira o torpor
numa opereta saída do calcanhar
tal bandalho bizarro gaguejando
ou torniquete de acaso arfando
talvez no último patamar
da cólera tangível camada
como lâminas crispando
a vida ladeada de nada
esperando, aceso vinco
ao canto do sorriso

wait little boy
just a little toy

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

À vida

Agradece cada passo que deste, sorri a quem foste
olha em frente de cabeça erguida, sem temer a vida
acolhe a natureza e a beleza, caminha leveza e sol
muda, experimenta, a pauta não tem uma só nota
sente, da palma dos pés à palma das mãos, vive
faz o bem, ama, cria, desenvolve, dança e festeja
abre o coração à poesia, embala-te no seu ritmo
escuta toda a música e cultura, conhece o vazio
aprende com o silêncio, recebe a voz do mundo
descansa, cansa-te, sonha, acredita. luta por Ti.

Só assim vale a pena, esta viagem tão pequena