Estava na esplanada, tinha acabado de sair do partido onde a título de convite aceitara participar nas jornadas de trabalho. Deu-se conta da maravilha de estar vivo. Quando temos a chance de recomeçar e observar os caminhos a emergirem de todos os lados. A possibilidade de escolhê-los enchia-lhe os olhos de água. É isto viver! Poder escolher! Absolutamente divino esse poder e deteve-se mais pouco imaginando-se encaixado em cada uma das diferentes alternativas de futuro. Posso ser o que eu quiser daqui para a frente. Posso fazer o que eu bem entender. Escolher um trabalho (dentro das hipóteses que se apresentam), escolher amigos, escolher um amor, escolher uma atividade desportiva, escolher...E os anos vieram-lhe à memória. Quantas mais vezes poderei eu fazer isto? Recomeçar do nada. Quantas mais chances a vida me proporcionará? A idade avança e alguns impedimentos se vão instalando como maior incapacidade física, menor beleza, menor destreza intelectual, menor esperança. Andando para trás dá-se conta de que a inconstância tem sido a sua única constante, essa fome insaciável de viver, experimentar e conhecer. Histórias que já dariam um livro. As histórias dessas vidas. E foi então que a cidade se tornou mais bela. Só aqui ou fora do país poderei ser assim, aqui onde ainda há lugares que não conheço, pessoas e ideias, tarefas e caminhos múltiplos. Aqui onde o espaço parece estender-se à medida da vontade e isto confere-lhe uma beleza única. Essa rede de ligações infinitas, real e concreta.
Terminou a imperial e o cigarro e seguiu andando lentamente, sem qualquer intenção de pressa. Queria apreciar o paladar desta redescoberta. Este encanto que há tanto tempo estava silenciado dentro de si. Observar os recantos, as pessoas caminhando, as peculiaridades de um passado arquitectónico erguido ao longo do rio, que hoje o encantava uma vez mais. Seguiu em direcção à baixa. Parou na frente de um prédio alto que subia ao Carmo. Talvez tudo tenha começado por aqui. Talvez não, se estivesse na Estrela ou em S.João ou na Graça ou mesmo no Intendente diria o mesmo. Sim, no Intendente, a sua primeira residência na cidade. Já lá iam quatorze anos. O tempo voara mais depressa que a consciência dele. Chegara com uma mala às costas e uma vontade gigantesca de existir. Tinha a certeza de ser nesta cidade feliz. Era jovem, muito jovem. Não tinha nenhum plano definido a não ser estudar e divertir-se. Sim, e deslumbrar-se com a dimensão da cidade. Cedo começou a percorrê-la a pé. Horas andando e observando. Donde partira tudo era demasiado pequeno. As pessoas pareciam-lhe pequenas, acomodadas, encostadas à muralha que as cercava protegendo de um mundo inteiro desconhecido. Hoje sabe que quase todos acabaram por partir. Cada um ao seu ritmo. Talvez também eles tenham saudade e desejo de lá envelhecer. Outro pensamento lhe tomou o caminho, não havia reparado que aqui ficara por tantos anos que se tornara ele numa dessas pessoas, pequenas e acomodadas. Não, acomodado no espaço, pois não, dentro de si não tinha encontrado outra coisa senão desassossego. Desarredou a ideia. Voltou a ver-se ao espelho numa montra. Envelheci, de repente. Ao descobrir novos restaurantes já na subida à graça que competiam musicalmente, sorriu, os santos continuam por aqui, é bom para o turismo. Comer e beber, conversar jantando numa esplanada, é isto agora. Noites, bares...não mais. Já uns dias atrás tinha encontrado fotografias suas e reparado que até há bem pouco tempo a sua idade não era a real. E de repente sentira-a na pele. Assim de um dia para o outro, envelhecera. Nos gostos, no rosto, na maneira de viver e de querer vivê-la. Não ficara triste com isso, pelo contrário. Um certo prazer nesse novo estado dentro de si surgia em novas expressões de querer existir. Isso era mudança. Sempre bem aceite no seu perfil andarilho. Mudança sem nostalgia, sem dor nem imposição. Perfeitamente assente em si porque natural.
Começara a cair a noite. As luzes acendendo-se. E aquele quebrar da luz. Estava um pouco cansado da subida e parou num banco de jardim perto do miradouro. Começou a enrolar um cigarro. Mais adiante noutro banco reparou num rapaz talvez da sua idade, que contemplava um mapa, virando e revirando-o ao contrário. Estaria perdido? Levantou-se e aproximou-se dele. Hello. O outro respondeu com um sorriso. Era delicado, franzino e pálido. Da sua voz saiam tons femininos. Talvez seja como eu, pensou. Em inglês pareceram encontrar-se. O outro estava de facto perdido. Procurava um Hostel que pelo nome da rua acabaram por perceber que era logo ali. Não estava estranhamente identificado. Partilharam então o cigarro e algumas coisas de si mesmos. Era afinal francês. Estava em viagem já há uns meses. Partira porque queria conhecer outros lugares antes de assentar no trabalho para que estudara, medicina. Sentia ainda dentro de si vontades que o desprendiam de uma vida sedentária e por isso ali estava ele. Pierre.
Ao chegar à porta do Hostel estavam três indivíduos que discutiam e a palavra passaporte chamou-lhe a atenção. Chegaram mais perto para escutar. Tinham o passaporte de um deles retido lá dentro e afirmavam não conhecê-los. Estavam desesperados e iam chamar as autoridades. Aquele ambiente não adivinhava coisa boa da estadia de Pierre. Olharam um para o outro. Do you have some ideia? Other place to stay? Ele respondeu que não, tinha encontrado e reservado este pela internet e parecera-lhe aceitável. You can stay at my house. Esta frase saiu-lhe com entusiasmo, o outro atraia-o. Não queria incomodá-lo mas acabou por aceitar.
A primeira noite. Fizeram jantar para os dois. Decidiu cozinhar-lhe algo português e seguindo a receita que a mãe lhe enviara uns dias antes, saiu-se bem. Beberam e conversaram muito sobre a vida de cada um. Cada vez Pierre o cativava mais pela forma descontraída como encarava a vida. Não havia pressa em ser alguém integrado em sociedade. Passara por experiências que o inclinavam cada vez mais para uma alternativa que o afastava de os demais. E isso encantava-o, precisamente por se encontrar no mesmo ponto. Qual ponto? O ponto em que tudo para trás foi experiência e tudo para a frente será descoberta. Porque tudo vivido até aqui como se nada estivesse planeado. Como não podia deixar de ser, saíram para lhe dar a conhecer a noite de Lisboa. Nenhum dos dois mostrava grande vontade de envolvimento em multidões mas conhecer o ambiente fazia parte de qualquer roteiro da cidade. E a pergunta surgiu...Do you want to know some gay bar? Pierre respondeu que sim, chegando-se próximo do outro. Não seriam precisas mais palavras, estavam em sintonia. Ficou feliz, não estava à espera de ser tão cedo. Encontrar alguém interessante tão rapidamente. E uma certa angústia tomou-lhe o peito. Alguma coisa deve estar errada. Não é possível que lá em cima me estejam a premiar com algo bom depois de ter feito o que fiz à última pessoa que esteve comigo. Deteve-se de medo e impôs dentro de si um certo afastamento para não cair em abismo pelo outro. Além disso Pierre regressaria ao seu país, seria apenas um encontro feliz numa viagem, passageiro e talvez inesquecível, mas passageiro. E tentou manter isso presente dentro de si. Dançaram um pouco, beberam mais, beijaram-se, passearam mais um pouco pela multidão de gente de todos os lados e seguiram para casa de taxi. Em casa, partilharam uma só cama. Contentes por estarem juntos neste feliz acaso.
No dia seguinte tinha alguns compromissos e Pierre seguindo as suas indicações foi passear pela cidade. Combinaram de jantar juntos numa tasquinha de fado ali perto. Pierre apenas escutara algumas coisas pelo Youtube e fascinava-o o sentimento que vinha desse modo tão nosso de cantá-lo. Na voz de uma mulher gorda descreveu-o como a coisa mais bela que escutara até aqui, onde a beleza se funde com uma profunda dor de viver. Deixou cair algumas lágrimas emocionado. Agradeceu-lhe por este momento. Contou-lhe que ouvira o flamenco cigano em Sevilha e que fora o mais próximo que conseguira alcançar. Que também lá se emocionara com uma força que parecia brotar das entranhas de quem o dançava e cantava, que o encantara por demais. Confessou ser essa força a sua grande procura nesta viagem. Essa paixão pela vida, esse sentimento tão forte que lhe provocava o choro pela emoção de não conseguir caber dentro do peito. Que não o encontrara até então na sua vida em nada.
Foi como se estivesse a ver-se ao espelho. E continuaram viajando por lugares onde já tinham estado ou gostavam de conhecer, ou partilhando um ao outro momentos de viagens de cada um. Viajar. Sim, eram ambos viajantes embora ele tenha viajado nos últimos anos dentro de si e no mesmo lugar.
No segundo dia choveu densamente na cidade.
Não havia compromissos e por isso permaneceram estendidos na cama por horas e horas, amando, falando, dormindo, comendo..ficando-se. Como se nada mais existisse fora daquele quarto. O tempo caindo sobre o corpo feliz. Ao final da tarde parou finalmente de chover e puderam assim sair. Deu-se conta de não ser assim tão bom anfitrião por incapacidade de sugestão de lugares, para si, a cidade era a parte antiga do castelo, de alfama e da graça, pouco mais lhe importava ou digno de turismo. Jantaram junto ao rio perto do cais do Sodré e deambularam pelas ruas conversando até altas horas da madrugada. Combinaram para o dia seguinte, caso o tempo estivesse simpático de irem a Sintra. Descreveu a Pierre um cenário idílico de bosque encantado. Por Colares haveria certamente mercados e produtos da terra e as praias por lá eram frescas e saudáveis. E assim foi, nada menos que isso. Pierre amou os lugares, o palácio, a serra, as pequenas terras por onde passaram e as praias paradisíacas. À noite ao regresso passaram por uma aldeia que estava em festa e decidiram jantar por lá. Este Portugal era um outro país. Não menos que o da cidade, onde personagens caricatas desfilavam ao ritmo de uma música que repetidamente se infiltrava ao ouvido contagiando o bailarico de velhos, crianças e jovens animados pelos copos que se vendiam a um preço convidativo. Embebedados depois de muito rirem de tudo isto, a condução não era boa opção e por isso foi numa das praias do Guincho que adormeceram enrolados no saco de cama que sempre vinha na mala do carro. Acordar com o sol a nascer da linha do mar é qualquer coisa, nas palavras de Pierre, de mágico e sobrenatural. Aos poucos as pessoas começaram a chegar em família e o espaço transformou-se num apinhar de sufoco. Era fim de semana pois era. Tomaram banho no mar, apanharam um pouco mais de sol e seguiram viagem rumo ao outro lado, a Arrábida. Sem se darem conta, estavam ambos em viagem e agradavam-se na companhia descontraída um do outro. Mergulho, era um dos atractivos lá. E choco frito em Setúbal para o regresso. Algumas das suas coisas favoritas de sempre e estava a vivê-las com ele. Isso era perigoso e ao mesmo tempo certo. Sentia um encaixe tranquilo e isso descansa-lhe o espírito dos medos que de vez em quando reapareciam. Das suas conversas começaram a surgir ideias futuras de viagens conjuntas. Por onde gostariam de passar, fazendo o quê, em busca de quê. E tudo parecia bem. Pierre falou da hipótese de um dia ir viver para o campo, para uma aldeia, onde plantasse o que comesse e pudesse ser médico de pessoas que o amariam pela sua humildade e dedicação. Longe da riqueza e das doenças das grandes cidades. Uma vida simples. Falou do sonho de ter um filho ou dois. Das dificuldades que atravessaria por estar num meio pequeno e do preconceito que isso acarretaria. Falou da mudança de valores e mentalidades que era urgente acontecer nas sociedades de hoje. Do valor da terra, do amor e da família, longe do egocentrismo que se sentia em meios urbanos. Para si, era como escutar uma voz que há muito tempo lhe falava de dentro. O regresso à origem, donde tudo de si partira. E não é que não tenha encontrado no seu caminho anterior companheiros que achavam as suas ideias interessantes, mas até aqui não lhe parecera possível acreditar que a dois isso seria possível. Aos poucos dentro de si nascia essa idealização de relação, de vida partilhada.
No quinto dia, acordou com Pierre a fazer a sua mala. Ainda meio atordoado questionou-o. Estava só a arrumar as suas coisas. Mas aquele gesto não lhe pareceu natural no seguimento dos últimos dias. Sentaram-se a tomar o pequeno almoço em silêncio. Incomodado, puxou a conversa. Estaria o outro a sentir necessidade de partir? Não estavam bem juntos? Pierre falou de ter planeado inicialmente uma semana em Portugal e de estarem à sua espera em Marrocos para seguir por África uns companheiros de viagem que havia conhecido em Espanha. Donde o seu pensamento fez uma ligação aterradora, teria Pierre conhecido alguém em Sevilha e daí estar associada aquele emoção que falava na noite dos fados? A confirmação dessa suspeita seria uma desilusão gigantesca para si, como era possível ter-se enganado tanto ao longo destes dias, ter dado tanto de si a esta pessoa, que afinal tinha outra à sua espera. Para si era como se dois gémeos se tivessem encontrado para todo o sempre. Não era ingénuo a esse ponto mas a fantasia era-o. E pressionou o outro em busca de uma resposta que o descansasse. Irritado, Pierre levantou-se e começou a fazer a sua mala, na verdade, a terminar o que estava a fazer. I Hate when people pressure me! Pressionar? Estas palavras foram como facadas dentro de si. Chorou desesperado agarrado ao francês que parecia possuído por uma outra alminha demoníaca. Toda a sua delicadeza parecia transfigurada numa pessoa fria e má, ausente de afecto. Como era possível? Não, não tinha previsto este final, não assim tão rápido. Não neste momento de felicidade profunda. Teria sido usado pelo outro, iludido, elubriado e todas as palavras que lhe doíam rasgando dentro de si qualquer coisa que medonhamente temia não ser capaz de reparar. Tinha sido um tonto. Uma vez mais. Deixou-se cair sobre o sofá. O outro olhou-o uma última vez e pediu-lhe perdão. I m sorry, so sorry, i can not stay. E fechou a porta atrás de si.
Se não tivesse parado para fumar um cigarro no banco de jardim, se tivesse seguido pelo Martim Moniz em vez de pela Sé. Se tivesse ficado mais tempo na esplanada. Se naquele dia não tivesse saído de casa. Se não tivesse convidado o outro para ficar em sua casa. Se...Se não tivesse querido viver dessa forma efusiva. Se tivesse controlado as suas emoções. Se...não tivesse acreditado.
E os dias foram passando. Desencantados. Tristes. Dolorosos. Um após outro, tentando apenas recompor-se. Procurando esquecer essa semana. Numa solidão de reparação que dia após dia surgia como mais auto-destrutiva. Bebendo, fumando horrores. Donde todas as trajectórias futuras lhe pareciam inúteis. Nada daria a nada. Sem esperança. Revoltado porque no momento em que estava sereno deixou-se cair por um buraco. Antes de tudo acontecer, estava feliz consigo próprio. Dos muitos dias que passava fechado em casa, olhando para o tecto, chorando, um ou outro saía para caminhar. Nesses sentia-se mais próximo de si. E depois de várias semanas numa dessas caminhadas, voltou ao banco do jardim. Enrolou um cigarro e olhou para o lado. Naquele mesmo outro banco estava Pierre. Sentado olhando para um mapa com a mesma expressão de perdido. Incrédulo dirigiu-se a ele. Pierre? O outro fitou-o com um olhar de estranheza. Yes, how do you know my name?
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