quinta-feira, 31 de julho de 2014

Caveira de Bison



Ela sabia o quanto valia o saco.
Uma entrega que não deixaria nas mãos de nenhuma outra. Junto ao peito parecia-lhe mais confortável. Há semanas que preparava com todo o empenho esta entrega. Tudo deveria estar perfeito e desejava que chegasse o momento de libertar-se da encomenda. Para a proteger levava a seu lado a fera. Um bisonte meigo mas de irritação fácil. Conversando parecia que o peso se diluía no caminho.

-Não quero distúrbios Lúcio, olha em frente e caminha devagar. Logo logo chegaremos ao lugar.
-Como queiras - absolutamente alheio, de uma serenidade que não adivinharia a morte nos dentes.
A terra não era um lugar seguro, os assaltos eram permitidos, mesmo para aqueles que há gerações a partilhavam. A anarquia é a lei do mais forte. A cada esquina uma família diferente e rival. Na orla este da saída para o continente Mor, estaria o seu destino. Conhecia cada canto, cada casa, cada loja. Desde criança que a atravessava de ponta a ponta sem um pingo de respeito pela morte, mas hoje a encomenda era mais importante que a sua própria vida. Nascera para a entrega e se falhasse todo o propósito da sua vida se desvaneceria. Uns passos à frente, atravessando a praça controlada pelos Gors, três filhos começaram a segui-la. Era o saco, se não o fosse, passaria. Uma gota de suor escorreu-lhe pela testa. Olhando para a fera nos olhos, falou-lhe por dentro.

-Lúcio, prepara-te, temos companhia. Ao virarmos o próximo veio, atira-te a eles, sem dó. 
E ao contornar, a fera virou-se. Os três irmãos não tiveram tempo de levantar as catanas. Três cabeças rolaram ladeira abaixo de um só golpe rotativo. A fera pingava da boca papas de tecido cutâneo e restos de cabelo sangrento. Ela ergueu a mão aos céus e pediu-lhe para seguirem. Não havia tempo para banquetes e se não avançassem, os restantes irmãos viriam no seu encalço. Apressaram o passo até chegarem ao largo da igreja. 

-Não olhes lá para dentro Lúcio, vejo pequenos olhos na espreita. São os arcanjos. Têm asas e não será tão fácil nos livrarmos deles. 
-Posso ajudar-te a carregar, avançaríamos mais depressa.
-Não, preciso de ti disponível para lutar, hoje não posso usar a espada. Das minhas mãos não poderá correr sangue, caso contrário, a encomenda estará corrompida. 
No mercado a guerra era tão eufórica que ambos passaram como comerciantes. As suas costas doíam mas não podia parar para descansar. Antes do sol do meio dia deveria chegar. 

Na fonte dos alados, a fera pediu para beber água. 
-Não, sabes que a fonte é controlada, o saco tornaria a água envenenada. Há fugas de informação e eles sabem que estive a prepará-la. Não há família que não deseje esta criança. Vamos. Aguenta que não falta tudo. 

O percurso era agora a subir e mais longo. A parte mais deserta da terra onde criaturas selvagens se alojavam na escuridão, donde só saíam para sarilhos. Ela não tinha mais forças para correr e a fera não daria conta delas se viessem em matilha. Sabia-o e desta forma a única saída era o manto da transparência. Vestindo-o olhou para a fera com a maior ternura. Desde que nascera, do tamanho da sua mão, que cuidara dela como um filho. A transmissão de pensamento só se dá nas feras que são criadas por humanos desde que nascem, assumem um só parceiro, para toda a vida. O manto apenas cobria humanos. A fera estaria vulnerável. Um sacrifício que sabia à partida esperado mas desejava de todas as suas entranhas não ser necessário.
-Lúcio, enquanto eu tiver o manto elas não me podem ver, agora corre para longe. Sabes onde fica a janela das agruras não sabes? Lá nos encontraremos.
-Mas o manto só te protege em terreno sagrado, no topo da colina, finda. Estarás sozinha e visível. A janela fica distante da colina, irei contigo. 
-Não sejas teimoso, faz como te digo, temos mais chances de sermos bem sucedidos assim.
-Não posso Anaís, a minha função é esta desde que vim ao mundo, a morte chegaria-me mais depressa se falhasse na tua protecção. Iremos juntos. 
Raramente a fera a tratava pelo nome. Por isso sabia que não iria cumprir a sua ordem. Colocou então o manto pelas costas e desapareceu do campo de visão. Avançaram subindo. 

E nem muitos passos deram para estarem já rodeadas por elas. Criaturas caninas de pêlo eriçado e raivosas. Bem mais pequenas que Lúcio mas em tão maior número que cobriam o chão por uma milha. Não havia mais o que fazer. Elas não a podiam ver nem sentir mas a ele, estava condenado. Um aperto dentro do peito tremendo sentiu. Porque fora teimoso? Não estava preparada para se separar dele. Fora companheiro desde muito cedo, desde que a sua família fora dizimada por roubo. Uma história de injustiça que a fizera órfã há muitos anos atrás. Não, agir seria agora. Subiu à árvore mais alta  que avistou fora do caminho e colocando o saco nas costas retirou o manto. Nesse momento chamando por elas, a atenção fez de si o alvo. 
-Lúcio corre! Na janela, lá nos encontraremos mais tarde!
-Mas como?
-Vai? Eu sei como!

E a fera correu, sem olhar para trás, sabendo, mas deixando-a tranquila.

Anaís voltou a colocar o manto quando a distância da fera já não permitia às criaturas alcance. 
Desorientadas por não mais a verem começaram a dispersar grunhindo de raiva. Assim que pode, voltou ao chão e ao caminho. O manto permita-lhe andar despercebida e mais ágil mas apenas até ao fim do terreno sagrado. E a colina não tardaria no limite. Duas famílias ainda estavam no caminho até à janela. Sem a fera, tinha apenas um trunfo em troca da passagem. Uma promessa que lhe custaria a vida se fosse capturada. 
Por sorte ou acaso, a primeira casa estava deserta, as janelas escancaradas indicavam que tinham partido para a caça. Esperançosa avançou mais ligeira passando a criança para a cabeça para aliviar as costas. Era estranho o silêncio e o caminhar sozinha. Pela primeira vez, a fera não estava a seu lado. Procurou distrair-se com a beleza que tão raras vezes podia apreciar em seu redor. Alerta não é um estado que absorva beleza. E alerta era o seu estado mais habitual nas passagens anteriores por estas bandas. O que normalmente a fazia sair de casa eram mantimentos e para isso tinha as suas próprias culturas de vermes para a troca. Anaís era ainda das raras humanas que só consomem vegetais. 

A casa seguinte estava habitada. Ao longe avistavam-se os carniceiros em volta da fogueira no páteo. As labaredas erguiam-se aos céus e os cantos aos ouvidos. Não havia outra forma de passar que não fosse pelo círculo deles. Se fosse sem a criança ainda tinha chances de passar, mas com ela, seria abordada. Uma criança para estas famílias é uma relíquia gourmet. No Inverno a caça escasseia e os vermes não alimentam grande coisa. São conhecidos por comerem grande parte das suas próprias crias nessa altura. Mas um adulto como Anaís seria uma oferta melhor, daria para várias bocas. Um humano tem que se oferecer ao sacrifício para ser alimento de outros humanos, é a única lei que por estas bandas se impõe. A morte não tem lei mas alimentarem-se dos mortos sim. Ao se aproximar ela sabia o que oferecer na troca da vida da criança.
- Esta criança tem de ser entregue. Em troca da minha passagem ofereço a minha vida. O regresso impõe-se por este caminho não havendo outro. Além disso, na troca da criança, receberei uma estadia de repouso e alimento rico, regressarei mais robusta dentro de dias.
-Muito bem mulher. Passa. Por aqui voltarás e por cá ficarás.

Ela seguiu. A promessa seria cumprida, não tinha como dar a volta à situação. Não mais. Mas sabia-o desde sempre. Esta criança era muito mais importante que a sua própria vida. Esta criança seria entregue aos magos da orla este. A profecia falava de uma criança que nasceria sem mãe, no caldeirão de uma jovem maga e deveria ser entregue aos velhos magos para ser criada e protegida para impor a lei e a ordem na terra. 

Ao avistar a janela Anaís correu, como se as suas pernas ganhassem de súbito uma nova forma de vida. A saudade da fera! Estaria ela bem? Passando a janela, um vitral gigantesco de cores imensas, um prado verde a esperava. Como é perfeito este lugar! Correndo em volta chamou por ela. A extensão da sua vista era imensa. Mas os seus olhos não alcançavam a fera. Será que se havia perdido no caminho? Ou fora atacada? Correu, correu longe até a janela ser um pequeno postigo no horizonte. E deitada sobre uma pedra lá estava ela. Abraçou-se ao seu pescoço chorando.
-Meu companheiro! Aqui estás tu!
Mas a fera de olhos fechados respirando com dificuldade não falou. 
Em pensamento, chamou por ela.
-Estou fraco, eu avisei-te Anaís. As feras não podem deixar nunca os seus donos. E eu abandonei-te. Fico feliz de estares aqui, salva...mas não sei se tenho forças para continuar contigo. 
-Não -  gritando - levanta-te por favor! É quase meio dia, estamos quase lá, eles estão à nossa espera, levanta-te por favor! 
E puxando pelos cornos da fera, os joelhos se enterrando na terra, Anaís implorou aos céus para a levantarem. E então a fera levantou-se. 
-Vamos, assim, vamos devagar juntos, Lúcio, meu doce Lúcio. Vamos, força.

E lentamente seguiram. Aos poucos a fera foi recuperando. Como se um sopro de vida lhe voltasse a sentir o coração. E a pouco e pouco o prado deu lugar a um pequeno caminho que abria a uma casa. Era a casa da orla este. Felizes aproximaram-se à porta. Um velho corcunda abriu mesmo antes de baterem.
 -Anaís - sorrindo - foste bem sucedida! Entra.
Ajoelhando-se aos pés dos três magos, ergueu a criança, que pela primeira vez, chorou. Recebendo-a nos seus braços, o mais vellho agradeceu aos céus. 
- O fim do mandamento é o amor de um coração puro.
E deitou-a num berço dourado. 
-Como foi a viagem minha filha? 
Anaís olhou a fera. 
-Atribulada e perigosa mas finita. 
-Terás o descanso merecido de uma guerreira. 
-Estou prometida no regresso, meu pai, aos carniceiros. 
-Tudo tem solução, agora que a criança está segura, encontraremos uma saída para ti. Terás protecção eterna. 
-Mas a minha vida...
-Descansa minha filha...dentro de dias terei resposta para ti. 

Os dias que se seguiram foram de uma paz suspensa pela ideia de morte. Procurou abstrair-se e aproveitar. Desde criança que não se sentia em casa. Os magos eram como pais, nas suas visitas foram-lhe ensinando a magia do caldeirão e outras receitas de amor mais. Preparando-a para este momento. Com toda a sua dedicação e fé. 
Ao sétimo dia, o mago mais novo chamou-a.

-A partir deste dia a tua fera passará fome.
-Como? Mas porquê?
-Confia em nós, ela fará o sacrifício por ti.
-Não...ela não...
-Confia filha, chegarão ambas salvas a casa.

E assim a fera foi emagrecendo, definhando a água. As costelas saindo da bossa tal abóbada lavrada de fome. Temia por ela mas confiava nos pais magos. Ao décimo sétimo dia foi novamente chamada. À sua espera estava um caldeirão fervilhando de tons esverdeados.

-Bebe e caberás na cova de um dente por magia. Na cova do estômago do teu animal. Assim passarão ambas pelas provações do regresso, seguras. De tão magro que está, não será apetecível a nenhuma família. Olharão para uma caveira. 

E assim foi. Por muitos mais anos permaneceram fieis companheiras fera e mulher. A criança cresceu e tornou-se no chefe mais justo e harmonioso que a terra já conheceu. Terra que mais tarde foi batizada de Caveira de Bison. 





quarta-feira, 30 de julho de 2014

Valentina

onde vai o pescador no barco que pára
ao largo do horizonte que hoje anda
desalinhado, bancos de areia o mar
parece que a terra afinal não é redonda

parecem os sapatos de verniz do Tom
ou o vestido amarrotado da Jane Fonda

a prisão é sempre doce e é flamblé
o sinal está vermelho e a malta não vê
sombra que a brasa é uma chama teimosa
é chanté adocicando rocambolesco
ibisco nesse cabelo ao vento, fresco

jogamos batalha naval enquanto o mundo
se explode, Bonnie and Clyde, dupla fatal

que tal de dormirmos ao relento?
parece que a chuva de meteoritos hoje
não precisa de óculos 3D

e o pescador entretanto
já partiu do alinhamento talvez
porque a Maria tem um desperta dor

e espera que a terra nunca deixe de ser
redonda

é o amor


Soldados da Fraqueza

sentiu uma inquietação que não era
nem medo, nem desejo, nem fome
nos esconderijos da lógica refúgios
fazendo malha de veias, as agulhas
do tempo, são precisas mais peúgas
que os nossos meninos têm saudade
e acendeu a última vela por piedade
e ficou a vê-la dobrar-se de lamento
vão e não voltam, cães a um só osso
homens que vertem uma só lágrima
o azedume do pensamento a colidir
pode rir à vontade, esta casa a ruir
e examinando a peúga, o calcanhar
Aquiles solta um grito: remendar!
no âmbar o sentimento de paz fim
não lhe assiste mais o desejo saber
e como recusa, da própria espécie
a raiva do ressentimento amadurece
tenho mais pão na sacola, a escola
ainda agora está a começar, guerra
é dentro da alma outras são, oferta

O Óbvio, Ópio

o homem assassinado era contrabandista
morto a tiro no meio da testa
um publicano saído do inferno
-enforquemos os nossos companheiros
o verdadeiro crime é
a negligência à claridade
e a obstrução à verdade

meu zeloso guardador
era assim um segredo tão grande?
do fumo do nevoeiro um par de doidos
cantam a internacional
este mundo não nos pertence
leva-me ao colo que sou doente
aperta-me contra o peito
livrai-me do mal e do pecado
e de tudo o que sinto vago
faço contrabando de afectos
e por precaução, de inconscientes
no semicírculo da luz
agulhas do maldito cristianismo
foi apenas um motivo
como qualquer outro
para o extermínio


A raça portuguesa

de que servem os livros se ninguém os lê?
se morrem as livrarias para dar lugar a gelatarias
andamos todos a comer gelados com a testa!
a culpa é da estatística, da ganância, da política?
a culpa é do punho que só serve para bater
punheta!
daquele batalhar constante para não se sair nunca
da prateleira ou da gaveta
o espírito anda de costas ao arbítrio
fazem-se apostas para aliviar o pessimismo
roleta russa de uma vida atirada ao charco sem
braçadeira
onde ninguém ensina a nadar porque é perigoso
as mãos andam cansadas, abarrotadas de lodo
da fonte só sai o osso e a evidência é elementar
mas nem assim penetra nos muros anónimos
onde todos se lamentam e encostam
e ainda assim pendurada a meia haste a bandeira
porque a nação é sagrada e ordeira!

Ai Portugal, se fosses qualquer outro, partia
o peito ilustre lusitano é cristiano e eusébio
está tudo certo









terça-feira, 29 de julho de 2014

Uma mulher de idade

réstia de sal nas barbatanas
cintilação de abano sufoco
altares e púlpitos ao mar
na linha a vida vale pouco
que nem um alvo de putos
bola no pé e chutos
o peixe também reza a Deus
talvez peça para ser Homem
andorinha ao ninho adeus
herói à casa não volta
fruta da época madura
dialecto de mulheres
o engodo da primavera
punhos sobre a mesa
e jogos de força à morte

a natureza é um cruzeiro
no oceano da civilização

e da minha cabana
avista Nirvana





Automático

não tarda e encolheu os ombros
festas nos pés entre os escombros
de uma batalha de amorável
inautêntica roçando a anca
foi a sua mão esquerda
virada ao contrário
por caprichosa birra
e total profunda desesperança
exorcizada  em mil camas
-podíamos ser felizes
mas tudo isso é a alma mal lavada
ainda pouco acordada
à medida da queda do dia
soldam-se querubins de lata
-assim vale a pena ser artista

faz-se de conta que a vida é palco
nómada aplauso que com desdém
que chega para longe...da vista

-esta é a imagem mais bela que conheço



mas vou por gosto

a corrente impetuosa do ribeiro
emoção e secreto desfiladeiro
loucos caminhos atravesso nu
chegando ao lado de lá
do lado de fora somos outros
a meditação da escuridão
minha mãe deu-me um cordão
que me conecta ao chão
e logo que seja noite
sairei por aí em perdição

tão diferente do que me vejo
ao espelho neste rio tranquilo
um fato que me fica largo
o corpo ainda alheio ao frio
sou animal espantadiço
de hastes espantalhas ao infinito

e tudo o resto são
ramagens de espaço brejeiro
ou antes desfiladeiro

impetuoso que me acaricia o rosto

Andante

três almofadas de blue velvet
e na corda bambando lençóis
e descalços os pés gatinham
escorregando no verdete
aqui e ali um toque de parede
giram os sóis espiando a cria

para não acordar os depois

the last prophet, acredita

tudo fosse corda de violino
a mão do destino sinfonia
junca espiralada bordadeira
madrepérola encanta beleza
requerendo apenas paciência

gatinha o profeta ainda
para não acordar os depois

imaturo afã solitário de aliança
prometido aos mestres
da velha carreira de orquestra

fear as no power

sexo drogas e rock and roll







Bucólico


100% natural
puro de ego sintónico
a casa dos sinónimos

é tão forma de gente
o café que corre do saco
a torrada que arde na chapa
o naco de toucinho
o canivete suíço
e as tamancas que aguardam
à porta do quintal
o avental e o pente
a trança que vem aos pés
flores silvestres trepando
ao cós o laço aveludado

da lenha que nunca arde
carvoada e de barro jarro
a mesa posta no alpendre
o sol do meio dia ardente
esperando a pastorinha
de pelica e tarro vazio
ao dobrar da esquina
da casa que nunca gira

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A+S

depois a mulher mergulhou as mãos
e levando ao rosto água e sabão
ao espelho dando um jeito no cabelo
hoje seria dia de vê-lo, junto ao muro
lá está o castanheiro cravado a seixo
o coração meio tosco e marcado beijo
é hoje que te levo ao fim do mundo!
ouvindo falar de um lugar de absurdo
onde os sonhos não passam de tudo
se vieres prometo nunca mais serei
o mesmo, que por quem te embeicei
nem eu mesmo mais eu sei, doçura
como os teus beijos são loucura sã
e as tuas pernas obra de satã, miúda
os anos trouxeram-te a brancura lã
meu calvário é ainda, a hora partida
deixando-te ao ramo verde e ouriça
que à mesma terra voltaste escolhida

Minha amada A.
Espero por ti no muro ocidental
às 3 horas para partirmos de vez,
desta vez será de vez
tua promessa,
S.











O fado vai torto


temos nós nas mãos
que se dobram à razão
novelos nos olhos
que se enlaçam à ilusão
seda na pele que insiste
em vestir-se de vergonha
o outro nós é muralha
dominadora e vencida
talvez por isso haja tanta
estranha forma de vida

Tudo é tão breve...


e de tempos a tempos
ajoelhar e agradecer

há que o grão na palma moer
e um castelo de pedras ruir
aos ouvidos deixar surdir
as falas das gentes
os sopros dos sóis
as brigas dos bois
as sestas da sombra
na orbita da terra
que depressa há quem
se perca
na queda do aparente
da hora que fica
rente ao horizonte
como se fosse nossa
a estadia, a monte
de tudo ser um dia
terra bravia e silêncio
campos extensos de ninguém
de ser apenas filho da minha mãe






sexta-feira, 18 de julho de 2014

Arati

tinha as linhas da mão salientes
como diques em dias de tempestade
comunhão de frentes inimigas
fervilhando dentro da veia o sangue
tinha o pêlo eriçado e no dorso
uma linha hirta, coleira atirada longe
as unhas raspando na ameaça
para a corrida em fuga alada
tinha no mapa a lápis riscado o traço
o estômago atestado e água no regaço

para tudo se parte de um começo
na fera o inicio de dentro a espera
de não importa  para onde o trilho
rompendo na atmosfera cadente
a estrela que encontra a terra
e se desfaz em brilho no arrasto
de um desejo de encanto e mistério

depois, de ideia incubadora parteira
nascendo a metáfora ainda abstrata
aos poucos, nivelada tonificada de
pequenas implosões de aqui nada
a fera abandona finalmente o abrigo
ainda descompassada avança ávida
descompensando todas as amarras
de não à vida

e um dia
luzidio intramuros um jardim
de um palácio de estátuas retinas
a milhas de longe das montanhas
a fera encontra a bela:
-Carmen, trago cravo e um desejo
cujo nome desconheço e alimento
e aqui me trouxe aos teus beijos
de joelhos

e do seu rosto descoberto
cabelos negros e uma lágrima
do vestido vermelho a magia
dançando flamenca a cigana:
-ao longo do teu caminho verás
os rostos do delírio de uma paz
que jamais encontrarás...jamais

a fera partiu em maior desgosto
perdida sem força dorida
de bússola avaria transtorno
de esperança
se antes não tinha destino, agora
era uma demanda inglória
-toda a estrela se torna cadente?
e eis que a resposta estava
onde sempre esteve guardada

estrelas cadentes não são estrelas
são rastos de ser que o foi e vagueiam
pelo espaço e ao penetrarem em algo
queimam com o atrito, por isso...
só existem enquanto caminho
luminoso, livre...
E assim,  porque cansada apenas isso
a fera encontrando um abismo
oferece-se ao fim: Aarti!




terça-feira, 15 de julho de 2014

ao longe cristo é apenas a cruz

Nos Palhais


que a água chegasse ao umbigo
nas mãos tilintando um abrigo
de longe cavalgando melodia
comichando princípio do dia
e os braços subindo ondulando
hipnotizante a dança do ventre
tango de sol no deserto cadente
num clarinete o sopro do voo
rasante nas dunas do peito
uma gaivota se chega aos palhais
bica o odor que vem do horizonte
do lugar do nascimento de zeus
e de todas as coisas que têm nome
trazendo o adeus do agora
de todas as horas de sofrimento
tal aurora feliz do esquecimento
acorda no levantamento da poeira
adeus cegueira e uma vida inteira

nos palhais se puxa a água do poço
se lava e escorre um desgosto
se moi e amassa o grão
se coze no chão o pão
e na distância que a vista alcança
se espera a visita de uma criança
mas os palhais são o que são
desertos silêncios extensão

na corda se estende um corpo
são as vestes que atravessam
o tempo da vida de um morto




domingo, 13 de julho de 2014

Filosofia da Ascensão

o amor enforcado para a frente e para trás
no baloiço da contradição, forças e tensão
não o reconheceu porque estava de desejo
oiro na boca e veludo agrura, vagabundo
manto azul santa madre aparição de luto
flora e fauna do afecto tentáculo cardíaco
ao abate mácula diabrura paz e beatitude
das suas bombas de cálculos matemáticos
nascendo aberrações mutilados corações
Não - a culpa é do homem
o amor é: uma forma de energia natural
sinergia que nas mãos erradas, agastadas
fracas, distraídas, desastradas: o abismal
o animal ama, o homem pensa e destrói

não mata mas mói
diz o poeta para a santa
-quero saber o sabor do sangue
o espírito da volúpia, da ventura
e a profunda solidão da morte
quero ser íntimo de tudo o que se move
e de longe sentir a falta, a saudade e a fome
quero ser mestre de oficina, evangelista
de uma doutrina a que darei o nome de
Vida





sexta-feira, 11 de julho de 2014

De boleia na teia


diz que foi o Demo
numa noite a roubou
conspirações da matéria
do coração um robot
dos braços o charriot
no estendal da preguiça
a alma da rapariga
na curva apertada a mão
que a leva de novo à estrada

e de que lhe vale
ter-lhe deixado a lágrima
nessa mochila carregada
à sua imagem quebrando
a vértebra da maldição
noite após noite andando
a velha da mesma canção
como alma penada

o Demo
tem mel na voz
e fel na foz
labaredas de colo
e voltas de engodo

o Demo
mostra a má língua
bate a porta à saída
sem levantar o dedo
deixa tudo do avesso

O Demo
fez dela lenda rainha
um castelo e uma teia
depois, como quem tira
alforria faz-te à estrada

a rapariga que pede boleia
à vida emprestada da aranha
diz que ainda se vê na sombra
a silhueta do Demo espadaúdo

de mãos dadas no escuro



-


o hífen és
do nascer ao partir

em mármore cor-de-rosa
repousa a bela adormecida

um cavalo branco, uma fada
um dente que cai na almofada

na proa a Vitória decapitada
no lugar de braços, asas
hímen levantado em glória

dentro de ti alguém
o mar e a terra por encontro

-aceita e verás
como os teus desejos nascerão
outros

o mar e a terra por encontro

dentro de ti alguém
que o tempo não tem de cravar
as unhas, espátulas, lixas, prensas
carpinteiro de existências

no leito de mármore
que repousar eterno
contam aqueles que se despedem
que sentem uma paz de graça
quando sentem
que não têm qualquer peso

entre o antes e o depois
as palavras que não ficam
partem

as asas de seda
pedem novos desejos
de panteista velejo

um falso eu que se desfaz
se liberta no caminho
pela fada do ensino
para quebrar o hífen
do antes ao depois
ser apenas estar íman
de tudo o que está

Voluntas ad necem
Zen e Amén









terça-feira, 8 de julho de 2014

Ainda há o início

do decote um laivo de vergonha
de um tostão de pudor se esconde
a máquina combate-se com corações
ao alto, ávidos e não serenos
tal pirilampos famintos de vício
de ser mais do que tudo isto
que se esconde nos segundos
que martelam o dia em anos
que nem monges tibetanos
ou anarquistas sem complexos
de ligação ao calendário concreto
agente não vê o que verdadeiramente
está, dimensões que se acamadam
brincando de esconde esconde
que adormece o escuro sem gesto
e de resto, a luz cega o cego
que depois de ver, se escurece
tal selvagem domesticando
a vontade de ser livre prendendo
ser pequeno ser alguém
ser toda a gente e afinal o espectro
de se ver ao espelho, ninguém
sonhei que era rei, escravo e mestre
criança, jovem pateta, cientista
e um velho que ao chegar ao final
se desconhece e contente se despede
sonhei de ser tanto e nada
de experimentos e deslumbramento
e o dia ao se ir acabando me foi dito
que amanhã ainda é dia, esperado
como se um livro sempre acabado
que se começa lendo da última página
só porque o início é um lugar
onde tudo ainda pode acontecer
a vida começada, ainda vale a pena
de viver

por isso, abri todo o decote
cortei-o e a serrote
abri o peito



domingo, 6 de julho de 2014

Porque é que há sempre buracos?


são as toupeiras do sonho
que pela noite dentro
esburacam

identidades do submundo
abrindo túneis do abstrato

me deito ao chão do inferno
o céu é um tecto incerto

intermitências do pulso
que só se sentem no escuro

escavando subcutâneas
as redes da verdade

o veneno da própria sede

nascem buracos do chão
e os meninos que sonham
perguntam:
-será que há toupeiras
no alcatrão?


quinta-feira, 3 de julho de 2014

nunca parou de bater

há um pássaro que
ficou para trás e o inverno chegando
de peito negro bico dourado e asas
de açucenas batendo com toda a força
comendo caminho poeira de nuvem
um pássaro que para trás se esqueceu
nas ondas do mar areia e sal de Agosto
nos fenos armados das planícies sem rosto
que em breve o coração há-de parar
que a cada batimento o sente enfraquecer

um pássaro que nunca há-de estar
verdadeiramente só
que é deus que o leva na sua grande asa
nessa asa onde cabem todas as açucenas
mesmo aquelas que ficam perdidas
e o pássaro de bico dourado
vivo ou morto há-de chegar
ao coração de um girassol
a uma nova estação de sol
de uma planície terrestre ou celestial


A chuva cai de repente

a chuva cai de repente
ainda que a promessa esteja no céu
e mesmo antes de cair
um banquete atmosférico de auras
que conversam entre elas
decidindo sobre que ruas
o véu desaba
aos olhos quase distraídos
numa suave aragem
que no rosto nos anuncia
a queda da primeira lágrima ácida
como cortina rasgada
ondulando de uma casa abandonada
numa rua escura onde não passa
criatura acordada
a chuva antes de cair
como o gesto que leva ao primeiro passo
onde se levanta uma criança e caminha
a princípio, desequilibrado
a chuva lava, levando a mágoa
cai pesada de zanga
desaba telhados de chapa
para voltar a ser suave e leve
como flocos de neve
como sopros de auras
que dos vidros quebrados a dentro
se recolhem da janela
momentos depois da queda





quarta-feira, 2 de julho de 2014

A Arca

-rúcula, morangos, queijos vários
acho que nos safámos bastante bem
dado que tudo parece estar racionado
serve aqui mais um copo de sangria
hostel, paquete, salão de eventos
campo de férias, colégio interno
talvez seja uma festa comunista
um piquenique ou acampamento
ou um dia de escola sem tempo
talvez estejamos em guerra
ou seja uma noite de Natal
para os sem abrigo
estão presentes todos os vivos
que encontro na memória
estou a fazer sandes para depois
nunca se sabe o que vem depois
e os gatos aparecem na hora
dos restos sobre as mesas

se fosse a Arca de Noé
quem escolherias para levar contigo?
penso que aos pares faz mais sentido