quinta-feira, 31 de julho de 2014

Caveira de Bison



Ela sabia o quanto valia o saco.
Uma entrega que não deixaria nas mãos de nenhuma outra. Junto ao peito parecia-lhe mais confortável. Há semanas que preparava com todo o empenho esta entrega. Tudo deveria estar perfeito e desejava que chegasse o momento de libertar-se da encomenda. Para a proteger levava a seu lado a fera. Um bisonte meigo mas de irritação fácil. Conversando parecia que o peso se diluía no caminho.

-Não quero distúrbios Lúcio, olha em frente e caminha devagar. Logo logo chegaremos ao lugar.
-Como queiras - absolutamente alheio, de uma serenidade que não adivinharia a morte nos dentes.
A terra não era um lugar seguro, os assaltos eram permitidos, mesmo para aqueles que há gerações a partilhavam. A anarquia é a lei do mais forte. A cada esquina uma família diferente e rival. Na orla este da saída para o continente Mor, estaria o seu destino. Conhecia cada canto, cada casa, cada loja. Desde criança que a atravessava de ponta a ponta sem um pingo de respeito pela morte, mas hoje a encomenda era mais importante que a sua própria vida. Nascera para a entrega e se falhasse todo o propósito da sua vida se desvaneceria. Uns passos à frente, atravessando a praça controlada pelos Gors, três filhos começaram a segui-la. Era o saco, se não o fosse, passaria. Uma gota de suor escorreu-lhe pela testa. Olhando para a fera nos olhos, falou-lhe por dentro.

-Lúcio, prepara-te, temos companhia. Ao virarmos o próximo veio, atira-te a eles, sem dó. 
E ao contornar, a fera virou-se. Os três irmãos não tiveram tempo de levantar as catanas. Três cabeças rolaram ladeira abaixo de um só golpe rotativo. A fera pingava da boca papas de tecido cutâneo e restos de cabelo sangrento. Ela ergueu a mão aos céus e pediu-lhe para seguirem. Não havia tempo para banquetes e se não avançassem, os restantes irmãos viriam no seu encalço. Apressaram o passo até chegarem ao largo da igreja. 

-Não olhes lá para dentro Lúcio, vejo pequenos olhos na espreita. São os arcanjos. Têm asas e não será tão fácil nos livrarmos deles. 
-Posso ajudar-te a carregar, avançaríamos mais depressa.
-Não, preciso de ti disponível para lutar, hoje não posso usar a espada. Das minhas mãos não poderá correr sangue, caso contrário, a encomenda estará corrompida. 
No mercado a guerra era tão eufórica que ambos passaram como comerciantes. As suas costas doíam mas não podia parar para descansar. Antes do sol do meio dia deveria chegar. 

Na fonte dos alados, a fera pediu para beber água. 
-Não, sabes que a fonte é controlada, o saco tornaria a água envenenada. Há fugas de informação e eles sabem que estive a prepará-la. Não há família que não deseje esta criança. Vamos. Aguenta que não falta tudo. 

O percurso era agora a subir e mais longo. A parte mais deserta da terra onde criaturas selvagens se alojavam na escuridão, donde só saíam para sarilhos. Ela não tinha mais forças para correr e a fera não daria conta delas se viessem em matilha. Sabia-o e desta forma a única saída era o manto da transparência. Vestindo-o olhou para a fera com a maior ternura. Desde que nascera, do tamanho da sua mão, que cuidara dela como um filho. A transmissão de pensamento só se dá nas feras que são criadas por humanos desde que nascem, assumem um só parceiro, para toda a vida. O manto apenas cobria humanos. A fera estaria vulnerável. Um sacrifício que sabia à partida esperado mas desejava de todas as suas entranhas não ser necessário.
-Lúcio, enquanto eu tiver o manto elas não me podem ver, agora corre para longe. Sabes onde fica a janela das agruras não sabes? Lá nos encontraremos.
-Mas o manto só te protege em terreno sagrado, no topo da colina, finda. Estarás sozinha e visível. A janela fica distante da colina, irei contigo. 
-Não sejas teimoso, faz como te digo, temos mais chances de sermos bem sucedidos assim.
-Não posso Anaís, a minha função é esta desde que vim ao mundo, a morte chegaria-me mais depressa se falhasse na tua protecção. Iremos juntos. 
Raramente a fera a tratava pelo nome. Por isso sabia que não iria cumprir a sua ordem. Colocou então o manto pelas costas e desapareceu do campo de visão. Avançaram subindo. 

E nem muitos passos deram para estarem já rodeadas por elas. Criaturas caninas de pêlo eriçado e raivosas. Bem mais pequenas que Lúcio mas em tão maior número que cobriam o chão por uma milha. Não havia mais o que fazer. Elas não a podiam ver nem sentir mas a ele, estava condenado. Um aperto dentro do peito tremendo sentiu. Porque fora teimoso? Não estava preparada para se separar dele. Fora companheiro desde muito cedo, desde que a sua família fora dizimada por roubo. Uma história de injustiça que a fizera órfã há muitos anos atrás. Não, agir seria agora. Subiu à árvore mais alta  que avistou fora do caminho e colocando o saco nas costas retirou o manto. Nesse momento chamando por elas, a atenção fez de si o alvo. 
-Lúcio corre! Na janela, lá nos encontraremos mais tarde!
-Mas como?
-Vai? Eu sei como!

E a fera correu, sem olhar para trás, sabendo, mas deixando-a tranquila.

Anaís voltou a colocar o manto quando a distância da fera já não permitia às criaturas alcance. 
Desorientadas por não mais a verem começaram a dispersar grunhindo de raiva. Assim que pode, voltou ao chão e ao caminho. O manto permita-lhe andar despercebida e mais ágil mas apenas até ao fim do terreno sagrado. E a colina não tardaria no limite. Duas famílias ainda estavam no caminho até à janela. Sem a fera, tinha apenas um trunfo em troca da passagem. Uma promessa que lhe custaria a vida se fosse capturada. 
Por sorte ou acaso, a primeira casa estava deserta, as janelas escancaradas indicavam que tinham partido para a caça. Esperançosa avançou mais ligeira passando a criança para a cabeça para aliviar as costas. Era estranho o silêncio e o caminhar sozinha. Pela primeira vez, a fera não estava a seu lado. Procurou distrair-se com a beleza que tão raras vezes podia apreciar em seu redor. Alerta não é um estado que absorva beleza. E alerta era o seu estado mais habitual nas passagens anteriores por estas bandas. O que normalmente a fazia sair de casa eram mantimentos e para isso tinha as suas próprias culturas de vermes para a troca. Anaís era ainda das raras humanas que só consomem vegetais. 

A casa seguinte estava habitada. Ao longe avistavam-se os carniceiros em volta da fogueira no páteo. As labaredas erguiam-se aos céus e os cantos aos ouvidos. Não havia outra forma de passar que não fosse pelo círculo deles. Se fosse sem a criança ainda tinha chances de passar, mas com ela, seria abordada. Uma criança para estas famílias é uma relíquia gourmet. No Inverno a caça escasseia e os vermes não alimentam grande coisa. São conhecidos por comerem grande parte das suas próprias crias nessa altura. Mas um adulto como Anaís seria uma oferta melhor, daria para várias bocas. Um humano tem que se oferecer ao sacrifício para ser alimento de outros humanos, é a única lei que por estas bandas se impõe. A morte não tem lei mas alimentarem-se dos mortos sim. Ao se aproximar ela sabia o que oferecer na troca da vida da criança.
- Esta criança tem de ser entregue. Em troca da minha passagem ofereço a minha vida. O regresso impõe-se por este caminho não havendo outro. Além disso, na troca da criança, receberei uma estadia de repouso e alimento rico, regressarei mais robusta dentro de dias.
-Muito bem mulher. Passa. Por aqui voltarás e por cá ficarás.

Ela seguiu. A promessa seria cumprida, não tinha como dar a volta à situação. Não mais. Mas sabia-o desde sempre. Esta criança era muito mais importante que a sua própria vida. Esta criança seria entregue aos magos da orla este. A profecia falava de uma criança que nasceria sem mãe, no caldeirão de uma jovem maga e deveria ser entregue aos velhos magos para ser criada e protegida para impor a lei e a ordem na terra. 

Ao avistar a janela Anaís correu, como se as suas pernas ganhassem de súbito uma nova forma de vida. A saudade da fera! Estaria ela bem? Passando a janela, um vitral gigantesco de cores imensas, um prado verde a esperava. Como é perfeito este lugar! Correndo em volta chamou por ela. A extensão da sua vista era imensa. Mas os seus olhos não alcançavam a fera. Será que se havia perdido no caminho? Ou fora atacada? Correu, correu longe até a janela ser um pequeno postigo no horizonte. E deitada sobre uma pedra lá estava ela. Abraçou-se ao seu pescoço chorando.
-Meu companheiro! Aqui estás tu!
Mas a fera de olhos fechados respirando com dificuldade não falou. 
Em pensamento, chamou por ela.
-Estou fraco, eu avisei-te Anaís. As feras não podem deixar nunca os seus donos. E eu abandonei-te. Fico feliz de estares aqui, salva...mas não sei se tenho forças para continuar contigo. 
-Não -  gritando - levanta-te por favor! É quase meio dia, estamos quase lá, eles estão à nossa espera, levanta-te por favor! 
E puxando pelos cornos da fera, os joelhos se enterrando na terra, Anaís implorou aos céus para a levantarem. E então a fera levantou-se. 
-Vamos, assim, vamos devagar juntos, Lúcio, meu doce Lúcio. Vamos, força.

E lentamente seguiram. Aos poucos a fera foi recuperando. Como se um sopro de vida lhe voltasse a sentir o coração. E a pouco e pouco o prado deu lugar a um pequeno caminho que abria a uma casa. Era a casa da orla este. Felizes aproximaram-se à porta. Um velho corcunda abriu mesmo antes de baterem.
 -Anaís - sorrindo - foste bem sucedida! Entra.
Ajoelhando-se aos pés dos três magos, ergueu a criança, que pela primeira vez, chorou. Recebendo-a nos seus braços, o mais vellho agradeceu aos céus. 
- O fim do mandamento é o amor de um coração puro.
E deitou-a num berço dourado. 
-Como foi a viagem minha filha? 
Anaís olhou a fera. 
-Atribulada e perigosa mas finita. 
-Terás o descanso merecido de uma guerreira. 
-Estou prometida no regresso, meu pai, aos carniceiros. 
-Tudo tem solução, agora que a criança está segura, encontraremos uma saída para ti. Terás protecção eterna. 
-Mas a minha vida...
-Descansa minha filha...dentro de dias terei resposta para ti. 

Os dias que se seguiram foram de uma paz suspensa pela ideia de morte. Procurou abstrair-se e aproveitar. Desde criança que não se sentia em casa. Os magos eram como pais, nas suas visitas foram-lhe ensinando a magia do caldeirão e outras receitas de amor mais. Preparando-a para este momento. Com toda a sua dedicação e fé. 
Ao sétimo dia, o mago mais novo chamou-a.

-A partir deste dia a tua fera passará fome.
-Como? Mas porquê?
-Confia em nós, ela fará o sacrifício por ti.
-Não...ela não...
-Confia filha, chegarão ambas salvas a casa.

E assim a fera foi emagrecendo, definhando a água. As costelas saindo da bossa tal abóbada lavrada de fome. Temia por ela mas confiava nos pais magos. Ao décimo sétimo dia foi novamente chamada. À sua espera estava um caldeirão fervilhando de tons esverdeados.

-Bebe e caberás na cova de um dente por magia. Na cova do estômago do teu animal. Assim passarão ambas pelas provações do regresso, seguras. De tão magro que está, não será apetecível a nenhuma família. Olharão para uma caveira. 

E assim foi. Por muitos mais anos permaneceram fieis companheiras fera e mulher. A criança cresceu e tornou-se no chefe mais justo e harmonioso que a terra já conheceu. Terra que mais tarde foi batizada de Caveira de Bison. 





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