segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Calhas de Musgo


I

Os sapatos vermelhos de salto envernizados andando enviesados pela rua empedrada. Dias carregados de humidade, cinzentos e aéreos. O silêncio quebrado pelos estalidos e uma respiração pesada. Deambulando ao acaso, o casaco de peles afagando o peito cobrindo o vestido de crepe em base evasé. Um candeeiro deixado para trás e a lua se espelhando na água quieta. Assim chegou a noite caindo devagar. Na ponta do cigarro a cinza que ao vento desliza. Perdida, um anjo decadente. E no entanto, uma serenidade anestesiante. Pé ante pé, como se mais ninguém existisse. Como se dentro de um bosque encantado, verde transpirante de espelhos vagos. 

As pedras dos meus avós, ancestrais, caiadas do tempo de musgos juventos...levo-as no bolso para junto ao rio me atirar pesado. Lá estava ele, um homem debruçado na beira do rio que atravessava a cidade sem sair do mesmo sítio. Chorando muito, de joelhos quase caindo. Ela apressou o passo e aproximou-se Posso ajudar? Seja o que for eu estou aqui. O homem abraçou-se a ela molhando-lhe o rosto Ninguém pode, ninguém me pode calar esta dor. A mulher abraçou-o com mais força Eu estou aqui. 


II

Pegou nela ao colo e levou-a da cozinha para o quarto. Deitou-a sobre a cama e beijou-lhe o pescoço Ainda me estranhas? Ela deixou cair a cabeça sobre o ombro dele Estava só há muito tempo, estranho tudo. 
Ele tinha por hábito mudar-lhe as coisas de sítio e ela vinha e voltava a colocar tudo no lugar. Ele dizia que ela trabalhava demais e que não tinha tempo para ele. És tão meiga para mim, compunha depois. Como se um gato de rua, acolheu-o na sua casa e amava-o de todas as formas possíveis. Amava a necessidade que ele tinha dela e amava a força com que a amava, amava o olhar puro e singelo que ele tinha da vida e amava o olhar triste e quieto que às vezes lhe caía. Amava o presente em que viviam e amava até o passado dele que não conhecia. Amava-o como se ama algo que por dádiva nos cai nas mãos num momento único e por ser tão precioso, amava a vida que lhe dera. 
Gostava de poder satisfazer-te. Dizia ele por graça depois de fazerem o amor. E ela beijava-o e preparava-lhe o jantar com carinho. Depois passeavam pela noite fora num abraço longo e dormiam o sono do lugar sem tempo. E foi assim, até que as primeiras pedras voltaram a emergir como se mergulhadas estivessem ao longo de todo esse tempo ao rio atiradas. 
As primeiras discussões por nada, os primeiros amuos de horas, dias, semanas, as primeiras noites no sofá, as primeiras saídas de casa, o afastamento caindo como partículas sedimentando, a tormenta no lugar da paz. Um dia ela chegou a casa e encontrou-o chorando caído a um canto Porque choras? O nosso amor não é tudo? E ele cansado de não saber respondeu Não consigo mais viver por ti, tentei, agradeço-te por tudo mas não sou mais capaz. Ela revoltou-se e bateu com a porta gritando Pois então mata-te, mata-te de uma vez só, não quero mais saber. Mas ele não matou. Matava-a a ela, aos poucos, de dia para dia, consumindo-o de dor profunda e intolerável. 

III

És um sonho, um sonho de uma noite de Verão. Um tango e uma valsa, o arco-íris e a nuvem que o disfarça. És o meu sonho de criança. E assim, tudo voltava a ser como antes. Com o tempo ela foi aprendendo que ele se levantava mais depressa se o ignorasse, que a paisagem de uma morte certa era uma miragem e que juntos, construindo tempo de vida, eram felizes e ele era também feliz à sua maneira. Se a desgastava? Por demais, de certo. Envelhecera anos na presença dele, os seus cabelos pratearam e a esperança de uma outra vida se foi desvanecendo numa crença tão mais concreta, ele era a sua tarefa. A responsabilidade do salva-vidas. Mas se ela era também feliz ao lado dele? Se era e como era. Não foi assim que o desejara, não fora a ele que escolhera, o destino os escolhera por mero acaso. 

Finalmente chegou a minha vez de cuidar de ti, estarei aqui para todo o sempre. E ela que nesse dia descobrira a doença, absorta num misto de tristeza, caída de mágoa pela vida chorando O todo o sempre será para breve, o que será de ti depois de mim? Ele não sabia nem queria saber no agora Tu vais-te curar, tens de acreditar que sim, eu acredito que vais. Pela primeira vez na vida sentia o que era tomar conta de alguém, como se outro eu nascesse dentro de si, anulando-lhe a dor de antes, agora era essencial existir. Foram tempos de desespero e angústia. E ele nunca abandonou a cabeceira dela sempre insistindo na teimosia da cura, não tendo mais a que se agarrar. E ela curou-se.
A medicina não lhe deu explicação mas a espiritualidade sim, dizendo ter sido a força do amor. Debilitada mas viva, ela regressou a casa meses depois. Ele preparara tudo, flores espalhadas perfumando o quarto Tens de descansar, eu cuidarei de ti e ficarás de novo tu mesma. Ela olhou para o canto onde tantas vezes o vira encolhido como um animal ferido e ainda frágil disse-lhe ao ouvido Se for para voltares a ser tu mesmo, prefiro ficar assim para sempre. Ele apertou-lhe o braço com fúria Como podes dizer isso? Nada será como antes, sei o que é pensar que te perdera e sei o que sentes agora quando pensaste em me perder, como pude estar tão cego? A vida é um milagre, único. Só estamos de passagem uma vez. 

IV

Os sapatos vermelhos de salto envernizados andando enviesados pela rua empedrada. Dias carregados de humidade, cinzentos e aéreos.  O silêncio quebrado pelos estalidos e uma respiração pesada. Deambulando ao acaso, o casaco de peles afagando o peito cobrindo o vestido de crepe em base evasé. Um candeeiro deixado para trás e a lua se espelhando na água quieta. Assim chegou a noite caindo devagar. Na ponta do cigarro a cinza que ao vento desliza. Perdida, um anjo decadente. E no entanto, uma serenidade anestesiante. Pé ante pé, como se mais ninguém existisse. Como se dentro de um bosque encantado, verde transpirante de espelhos vagos. 

As pedras dos meus avós, ancestrais, caiadas do tempo de musgos juventos...levo-as no bolso para junto ao rio me atirar pesada. Lá estava ela debruçada na beira do rio que atravessava a cidade sem sair do mesmo sítio. Chorando muito, de joelhos quase caindo. Ele apressou o passo e aproximou-se Precisa de ajuda? Dessa forma ainda vai cair ao rio. Ela levantou o braço afastando-o Não preciso de nada, vá-se embora, ninguém me pode ajudar. O homem enternecido, sentou-se ao lado dela Se cair, caio consigo. Ela olhou para ele e procurou no seu olhar por algo de tão antigo que pudesse ainda lá estar, de uma outra vida, a presença dele Em que calha estamos? E nesse momento, dentro dos olhos dele, se iluminou o rosto do animal ferido e frágil Estaremos sempre aqui, como pedras atiradas ao rio, à espera de nos emergirmos. Sempre, aqui. Abraçou-o então sentindo nos braços dele a presença do outro Não estamos de passagem uma só vez pois não? Estamos infinitamente presos numa mesma calha que se muta, que nos muta, mas que ao mesmo rio aflua. 

Porque três meses depois de curada, falecera e ele ao rio regressara.
E esses sapatos vermelhos, porque andando enviesados pela rua empedrada, ao acaso, ao fundo do rio atirados, caiados então de musgos juventos...

domingo, 23 de novembro de 2014

A comédia Divina



I


Costumava acontecer com frequência no timbre um esgar de agressividade camuflada no sorriso. Assim era o seu sorriso. O palhaço triste ou o pateta alegre, talvez nem ele mesmo soubesse da composição do seu sorriso, era seu, era tudo quanto de certo tinha. E tanto o fazia sorrir uma lágrima no rosto de uma criança como uma piada de um amigo. A dor e a felicidade faziam-no sorrir, porque sentindo estava vivo. Todos rimos e choramos, uns com os outros, uns dos outros e até de nós próprios. A sua missão era espalhar o sorriso mas por vezes esse esgar escapulia-se, vindo de tão ínfimas profundezas que nem a si mesmo reconhecia. Sim, eu sei, o mundo tem maldade e eu tenho-a dentro de mim também. Ás vezes odeio, sinto-me amargo, invejo ou desdenho. Peco por todos e magoo. O meu sorriso também dói, por vezes. Mas ainda assim, sentia-se feliz porque errando estava vivendo. A perfeição foi moldada por quem? Tão pouco tempo estiveram na terra os profetas da perfeição que nem tempo tiveram de errar. É na linha do tempo que nos revelamos, mas para isso é preciso tempo de cá estar. Não há escritos sobre eles em criança, não há pois não? Quem os educou, em que moldes? Nasceram e logo logo se tornaram homens deuses. Mas é na criança que esse sorriso melhor se espelha, não é? É a criança que fica em nós que erra, é ela que de vez em quando nos perde, nos confunde, nos abandona da nossa alma. Por que o profeta adulto é perfeito, a sabedoria da idade, desse estado de permanente segurança que o permite ser e fazer os outros felizes.

As luzes acenderam-se e o monólogo terminou. As pessoas começaram a espreguiçar e levantando a saída foi deixando a sala vazia. Só ele permaneceu sentado em silêncio olhando o palco. Algo de muito seu estivera ali presente naquela noite. As suas palavras, as suas angústias, os seus medos. Um personagem de tanto seu quanto o próprio. E visto agora de fora, na voz de outro, foi como se tudo se revelasse enfim. Eu sou especial. Estas as palavras que lhe martelavam o pensamento. Os aplausos foram curtos e sem euforia, e os bocejos ao longo da peça mais que muitos. A crítica seria severa mas este estado em que encontrava era sublime. Como se estivesse acima de tudo isso e nada lhe pudesse tocar. Olhando de cima, ele era a cúpula onde respiravam todos os outros, onde permitia que existissem. Ascendendo a deus, seria mais ou menos isso. Mas deus tem tanto de perfeito como de torcido. Porque permite a dor, a morte, a doença e a solidão. Diz que é pelo equilíbrio que permite a existência do mal e que deu aos homens o poder da escolha para dele se refugiarem. Diz assim, mas para ele, a revelação era outra. 


II

De fato cinzento e mala de couro a tiracolo, ia andando despreocupado pelo passeio comendo de um pacote, batatas fritas. Dir-se-ia que caminhava ali uma criança num corpo de velho. Sorrindo, a quem passava, como se a todos conhecesse. A essa hora da manhã, crianças passavam em grupos para visitar o museu, na euforia de um dia diferente. Ele encostou-se a uma parede e sentiu-as passarem através de si. Uma mais pequena e frágil, deixando-se ficar para trás chamou-lhe a atenção. No momento em que passou por si, estendeu-lhe o pacote das batatas Queres? Pareces triste, o que se passa? E as outras se foram afastando e ela de olho no pacote São boas, posso comer outra? Podes comer as que quiseres, tenho mais em casa, vivo aqui ao lado, queres vir comigo? A criança olhou-o e vendo-o sorrir, confiou. Os dois seguiram atravessando a rua e entrando por um prédio um pouco à frente. No segundo andar de uma pequena casa arrumada vivia. Podes sentar-te aí, vou buscar um pacote só para ti. A menina ajeitou-se no sofá compondo a saia. Olhando em redor, uma sala um tanto despida de conforto. Ele regressou com o pacote Como te chamas? Podes tratar-me por Elias. Ela comendo com gosto perguntou Mas não é o teu nome? A mão dele procurou os cabelos dela mas recuou Estará na hora de te juntares aos outros, já devem estar preocupados, vou levar-te. E ela dando-lhe a mão Posso levar o pacote comigo? Saíram do prédio e ele apontou-lhe a entrada do museu zelando para que atravessasse a rua em segurança. Seguiu-a andando com o pacote na mão, sorrindo. É isto que é ser deus não é? A maldade conspirando-me  a vontade e eu dizendo-lhe que não com maior dos sorrisos. O sorriso de deus. E com este pensamento regressou a casa para continuar a escrever a próxima peça. 
Quando a porta se fechou atrás de si, escutou o telefone começando a tocar. Era o director do teatro, não haveria mais espaço na companhia para as suas peças, fora um fracasso. Desligou e apático voltou a sair de casa. Apanhou um autocarro com destino ao hospital. 


III

Inscreveu-se na recepção informando que tinha uma enorme dor de cabeça. Aguardou por duas horas para ser atendido, observando na sala de espera os doentes condoído de sorrisos. Quando conseguiu passar, contornou o gabinete onde deveria ser atendido e meteu-se no elevador. Subiu ao décimo piso e vagueou pelos quartos dos doentes. No quarto 29 estava um senhor de idade avançada ligado por fios e tubos acamado dormindo. Não havia flores, nem cartões desejando as melhoras, não havia sequer a preocupação de lhe abrir a janela para entrar a luz do dia. Seria um doente terminal deixado para morrer em silêncio. Aproximou-se do rosto sereno enrugado e beijo-o, retirando suavemente os cabos que o mantinham vivo, desligando a máquina. Não mais sofrerás. Parte em paz para junto do meu pai que está no céu.  Depois voltou-se e ligeiro regressou ao piso térreo procurando o gabinete para ser atendido com uma forte dor de cabeça. 

Regressou a casa, com um saco de analgésicos fortíssimos e ao passar por um mendigo que tombado estava na porta do supermercado baixou-se e entregou-lhe o saco Toma-os todos de uma vez, verás como tudo vai passar em breve. O outro entreabriu os olhos pegou no saco e abriu a caixa levando à boca um a um, de enfiada. Afastou-se e seguiu apanhando outro autocarro que o levava ao pior bairro da cidade. O dia invernoso começava a cair para a noite. O motorista vendo que a campainha fora tocada por ele disse preocupado Tem a certeza que quer sair aqui? Não parece pertencer lá e a noite está a chegar. Ele sorriu e desceu metendo-se pelas vielas cadavéricas do degredo. Escutavam-se gritos e choros de crianças e o cheiro era nauseabundo. As portas não eram portas, eram portões blindados que fechavam as barracas só por favor, como se uma corrente de ar mais forte não entrasse como furacão e levasse pelos ares o tecto falso. Subiu ao topo do monte e contemplou a encosta de cartão deixando que a noite cerrada se instalasse. 
Lá em baixo na estrada havia um posto de gasolina, enchendo um garrafão passou porta a porta deixando o rasto sem ser visto. E puxando de um fósforo a encosta se iluminou de labaredas e explosões de bilhas de gás. O espectáculo era dantesco. Partiu sorrindo feliz. 

IV

Quando acordou na sua cama as suas roupas cheiravam a gasolina e a morte alheia. Mas uma satisfação estrondosa lhe tomava o peito Bom dia meu pai, qual é a minha missão para hoje? Levantou-se deitou o pó castanho perfumado à cafeteira e olhou para o pacote de bolachas onde uma mosca se nutria. As fábricas? Os políticos? Os doentes ou os asilos? Os ladrões ou os mendigos? Os mentirosos ou os airosos? Aponta-me o dedo para algo que eu possa matar em nosso nome.

Foi quando uma dor intensa lhe tomou o coração. O braço paralisando e o rosto desfigurando. Agarrando-se ao frigorífico Meu pai, não, a minha missão só agora vai no início, não. Com o outro braço deitou a loiça toda ao chão e o barulho fez despertar a atenção dos vizinhos que pouco tempo depois estavam a bater à porta. Acordou numa cama de hospital despido das suas roupas e respirando por um tubo ligado a uma máquina. Num quarto obscuro e deserto. A cama 29 do décimo andar. E nesse momento alguém entra pelo quarto, um homem sorrateiro. Sente-o aproximar do seu rosto, beijando-o. Quer falar, desenvencilhar-se do homem e da cama mas não consegue e sente-o então desprender-lhe o tubo desligando-lhe a máquina. A inspiração reteve-se nos seus pulmões e o coração doeu de uma só vez, apagando-se os sentidos. 
Acordou deitado numa calçada com a aproximação do mesmo homem que lhe estendia um saco. Era ele novamente, queria dizer que não mas este corpo não lhe obedecia. Sentiu a sua própria mão a levar à boca um a um os comprimidos e uma sensação de nova dormência tomou conta de si até cair novamente no nada. Ao acordar, o horror tomava-lhe toda a alma, o corpo consumia-se em chamas, os cabelos, as unhas, a pele se rasgando de dor imensa e ele gritando que não até cair de exaustão na morte ardente. 

Acordou novamente na sua cama, dorido e confuso. E a campainha toca. Levanta-se vestindo o roupão e abre, era a menina Olá, venho visitar-te Elias, desta vez trouxe-te eu batatas. E sorriu-lhe docemente. Ele espantado aponta-lhe o sofá e fica a observar a naturalidade da confiança dela. Se eu matasse agora meu pai? Seria esta a última das mortes que me levaria para junto de ti? Ela ofereceu-lhe uma batata. Como sabes que eu sou uma pessoa boa? Ela não compreendeu a questão. Como sabes que não te faço mal? Ela olhou para o chão chorando Pior do que o meu pai não és de certeza, acredito em ti. Ele abraçou-a, um abraço tão antigo que o fez sentir a alma do mundo inteiro. Meu pai, meu deus, falhei em tudo não falhei? E tudo o que eu queria era ser perfeito e especial. Sentir-me abraçado por ti mas vejo agora, que estás aqui, que este abraço são os teus braços e que não sou senão humano. Escreverei a minha confissão, será a última das minhas peças.


V

E o pano subiu. Elias sentado na primeira fila da plateia inchado de orgulho, aguardando pelo último acto, pela última pessoa abandonar a sala, para que o viessem buscar. Mas tal como na peça anterior, no teatro anterior, na plateia anterior, nada de extraordinário aconteceu. Ficou ali, depois de tudo, no silêncio de uma expectativa desastrosamente só. Em fúria, levantou-se e correu ao átrio onde ainda muita gente de encontrava. Da varanda majestoso gritou Foi tudo verdade, fui eu, eu, prendam-me! Depois de segundos de espasmo os aplausos eufóricos surgiram Bravo, bravo! Genial, bravo! E alguém correu à varanda e o ergueu nos braços. Elias desesperado esperneava de agonia Não vocês não entendem, foi tudo uma confissão, fui eu, eu! E mais ainda as palmas se multiplicaram e os comentários levantaram voz Bravo! De génio! Genial, o personagem vem até cá fora na boca do autor, bravo, o teatro da vida, bravo! 
E Elias libertando-se dos braços que o erguiam no ar, salta pela varanda voando estatelando-se no chão. Os aplausos deram lugar a um silêncio absoluto! E logo alguém volta à euforia Bravo, é um duplo, bravo! Que estrondo de peça! Aguardando que ele se levantasse aplaudindo mais e mais excentricamente. Mas o sangue alastrava-se agora pelo chão de mármore e o realismo da cena abria o cenário do pânico. Envergonhados de si mesmos, os espectadores correram pelas portas e chegando à rua, a explosão foi final, uns rindo de histeria outros rindo de choro e agonia, mas rindo porque vivos. 


sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O salteador da Íris



I


Se o limiar do toque pudesse ser interposto pelo imaginário, tocarias no seu rosto? Em quantas faces se perde um olhar, depois de o deixar pousar, ainda que por apenas um instante? No rubro, na ponta do nariz, no canto de um sorriso. Ás vezes sinto falta de não ser eu, poderia explicar-te mas assim como assim, também não estás aqui para o escutares. 
Quem te disse que não estou?
Não sei, acredito que não. 

Esta metade de si muitas vezes se irritava com a outra. E por isso talvez a deixasse em casa, dormindo sobre a cama, desse turbilhão de palavras que nada diziam mas que pesavam, saía a leveza à rua. E o calibre das balas se media na gentileza com que se iludia. Serei sempre um verdadeiro cientista, inchado sob o efeito de grandes revelações. O outro de mim se esconde debaixo dos lençóis, dando voltas de noite, acotovelando-me a sorte da destreza com que salto de sonho em sonho, profético. E os seus restantes órgãos se revoltavam, como podiam concorrer com tamanha extensão se as suas células eram apenas reais? 


II

Pediu ao coveiro que o enterrasse mais abaixo por causa do cheiro. O que são aquelas coisas brancas que ascendem pelo ar? E o homem pesaroso de tanta terra encardida revoltar explicou São bruxinhas, entidades que os nossos desejos levam para a terra das falésias. As falésias, o horror indiscritível abriu-se no seu espírito. Quer dizer que a própria violência dos meus actos me pode levar para longe desses mantos flutuantes? O fino sorriso irónico do coveiro não deixou margem para mais questões e ele afastou-se despedindo-se de uma cara conhecida que à terra se devolvia. Conhecia realmente esse outro rosto no outro? E a sua bengala encalhou numa outra campa enfeitada. Se o vires por lá, diz-lhe que não volte, que aqui apenas o espera a morte. Para lá das falésias, essas células serão intermináveis. E sem vontade de mais conversa saiu do cemitério levando a letra para pagar noutra altura.  


III

Acreditas que não, mas as tuas crenças serão a tua cegueira.
É como a neve que se deposita nos ramos despidos invernosos, nesse mesmo tempo infantil, mandalas de perfeitas formas. É não é? É esse o problema, vermos como vêm as crianças.
Um dia hei-de levar-te à terra das falésias para veres com os teus próprios olhos que só lá estão crianças.
Verdade?
Absoluta.


IV

O coveiro terminou o trabalho e regressou à sua casa simplória no extremo oposto do terreno sagrado. Da porta pendurados os espantalhos torceram os seus braços, afastando os espíritos desenfriados e perdidos. Raios partam esta vida, nem depois de enterrados me dão descanso. Quantos são hoje para o jantar? Deixa cá ver quem se sentou à mesa. A pequena cabana de madeira tresandava a cânfora e buscando a caixa de fósforos alinhou os pequenos troncos para criar uma lareira. Pois vocês não têm frio, mas eu cá já não posso com o reumático, maldito Inverno que não se vai. Pegando no tacho deitou-lhe água para que fervesse e as couves cozesse. Lá fora batiam à porta.

Desculpe incomodá-lo mas seria possível lá voltar?
O quê a esta hora desenterrar um morto? Mas a que propósito amigo?
Temo que tenha levado com ele um segredo de extrema importância, de valor incalculável. 
Se me explicar a situação talvez eu a entenda...mas entre, estou a fazer uma sopa. Não se incomode com eles, são pacíficos.
Não vejo ninguém mas como queira, aceito e explico. O meu comparsa foi a enterrar pelas suas mãos hoje como se recorda. Pois eu imaginei que antes de falecer ele me entregasse o mapa. E lutamos por isso, mas até ao último momento nada...
O mapa? Então mas foi você que o matou?
Sim, acidentalmente, eu não queria. O mapa para a terra das falésias, foi lá que enterrou o nosso tesouro seguro que se apenas um de nós o soubesse que a tentação de o roubarmos um ao outro seria menor, pouco inteligente bem vejo agora mas na altura não lhe vi qualquer segunda intenção.
Para a terra das falésias? Mas na terra das falésias está ele.
Certo, de certo está. Mas nós tínhamos um mapa e quem o conhecesse poderia voltar, esse era o nosso tesouro, a imortalidade entende. E se ele o levou para lá e se ele lá está...temo que regresse para...
Para se vingar por certo. Olhe para esta mesa amigo, o que não falta aqui são mortos, espectros na verdade, porque não podem regressar. Se isso fosse possível, ele já não estaria debaixo da terra pois não?
Pois não, é por isso que preciso que venha comigo com toda a urgência.
Se assim é, não percamos tempo. E foram os dois pelo cemitério fora de pá em riste. 


V

Deixou então o outro eu a dormir e foi com a crença de que esse estaria correcto, o cientista, que avançou pela íris. Não sou eu que não creio, é ele que é louco. Pensou quando não mais que escuridão encontrou mas aos poucos, mínimos flocos de neve começaram a cair e uma claridade se foi revelando e os flocos deram lugar a estruturas mais arabescas, as bruxinhas. Ele estava certo então, se eu pedir um desejo, encontrarei a terra das falésias. Mas se eu a encontrar como posso regressar? As crianças saberão. Farei um mapa, o meu mais precioso tesouro, ah meu cientista, tu podes ter descoberto o céu mas eu descobri o ouro!

VI

O coveiro cheio de paciência começou a retirar a terra metros e metros debaixo dos seus pés. Quando alcançou o caixote de madeira precária, puxou do pé de cabra.
Preparado?
Nunca estive tanto. 
E quando o tampo se revelou, o pânico tomou o rosto do homem.
Eu sabia, eu sabia, ele já voltou e anda por aí para me atormentar, maldito, maldito e agora?
O coveiro sentou-se na borda da terra elevada e puxando de um cachimbo falou calmamente.
Amigo, se fosse o primeiro a bater-me à porta nessas circunstâncias eu até me espantava, mas como lhe disse tenho sempre a mesa cheia de mortos que não são convidados a entrar. Mas que posso eu fazer, já o meu avô era coveiro, já o meu pai o era e eu coveiro sou. 
Não compreendo...
Pois, a maior parte nem percebe o que lhe aconteceu e quando me vêm bater à porta que posso eu fazer, ninguém me paga mais por isso mas eu também nada mais tenho para fazer...e no seu caso até não o consideraria uma situação assim tão banal, pois assistiu ao seu próprio enterro.
Eu? Do outro, o cientista.
Não amigo, uma parte de si até acredito, mas tente a consciência. Pode ser que o reencontre e possa para lá voltar, eu coloco-lhe a terra por cima e vou jantar e ficamos todos serenos, que lhe parece?
Mas o mapa...
O mapa, pois, a nossa mente prega-nos partidas sabe, a imortalidade ou o desejo da mesma leva-nos a cometer actos permanentes. Não há nada a fazer, está morto, siga ou venha juntar-se aos outros para jantar, mais um menos um, tem é que decidir depressa que me estou a impacientar e as couves a empapar. 
E as crianças?
Estão na terra das falésias, ele não lhe mentiu não, nem todos sabem disso, mas você já o sabia antes de o saber. Vai ou fica?
Nesse caso parto. Assim como assim, não tenho apetite para o jantar.
Nem você nem os outros, tenho eu, faça uma boa viagem. 
E a pá voltou à terra.




quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Direitinhos ao Céu




With a word she can get what she came for...


I

Deitou na água as farripas do chá e cortou uma casca de laranja. Estava o dia perfeito para ficar em casa. Lá fora chovia torrencialmente. Ultimamente todos os dias eram dias perfeitos para estar em casa, há muito tempo que chovia na cidade que não via a luz do sol há meses. Um Inverno nocturno demais para ser Inverno, uma noite de Inverno sem fim. Para quem viera do país do sol, Alex sentia uma tremenda falta da luz. Tudo o que o rodeava era artificial, do acordar ao deitar. Tanto que a ideia de abrir a janela de manhã era apenas um acto falhado de outros tempos, abria-a para arejar mas sempre com a esperança de se revelar um dia diferente. Não é que não achasse uma certa beleza nesta noite interminável, achava sem dúvida, mas sentia falta de uma outra vibração, de um outro estado de espírito. 
Esse encanto remetia-lhe para os contos fantásticos que lia em criança onde personagens animalescas se misturavam com criminosos temidos e destemidos, andando de mota, tatuados e selvagens, assassinos de becos e mistérios obscuros. Sentou-se junto da pequena janela circular do seu sótão. Lá fora tubagens libertavam vapores, carros passavam a voar, mulheres de saltos caminhavam ziguezagueando as suas gabardines esvoaçantes e guarda-chuvas sem cor se tocavam numa perícia caoticamente organizada. Tudo era de um tom cinzento e negro e ocasionalmente letreiros berrantes piscando nomes de lugares convidando a entrar, tal como os lábios roxos das mulheres da vida que encostadas ao poste se riam extasiadas de droga. 

Alex vivia num bairro chinês, nesta parte da cidade tudo era possível, tudo era permitido e tudo era real e ao mesmo tempo fastasmagórico. A constipação que o tomara há duas semanas obrigara-o a ficar em casa. Vivemos num tempo em que tudo o que se conhecia como civilizado desaparecera e apesar de estarmos no apogeu do desenvolvimento tecnológico a ciência fora extinta dando lugar à indústria exclusiva de narcóticos. Porque se compreendeu que a ciência não tinha qualquer utilidade uma vez que a população mundial estava para lá dos níveis suportáveis e agora a ideia era que a selecção natural havia de fazer o seu trabalho, trabalho que iniciara há muitos quartos de séculos atrás e que o homem tentara contrariar até aí. Agora a ciência era apenas uma prática de produção, aliviar a dor mas não curar. Esse é o grande laboratório da humanidade, tornando-se no maior negócio de sempre. A humanidade deu lugar à aditivo-humanidade.  Por isso Alex receava que uma leve constipação pudesse resultar em morte e refugiara-se encubado em casa abastecido de analgésicos e outros sedativos mais. 


II

Nessa manhã estava então observando a vida de fora, tomando o chá, quando algo em si mudou. Não sabe bem ao certo se tomou uma overdose ou se não tomou sequer a dose necessária mas o que sentia não podia ser normal. Como se o seu corpo não fosse seu, Alex via-se simultaneamente do lado de fora e do lado de dentro. Escutava os pensamentos das mulheres de gabardine e ao mesmo tempo escutava a abertura e o fechamento dos seus próprios ventrículos cardíacos. Sentia a caneca a tocar na sua mão e sentia a sua mão a tocar na caneca. Logo pensou ter sido enganado pelo farmacêutico do botequim do bairro e temendo o pior despejou pela retrete os restantes comprimidos. Procurou então no armário da casa de banho por alternativas e encontrou um outro frasco que adquirira numa outra vez quando tivera uma dor de dentes. Tomou dois comprimidos. Aguardou tomando o chá. O tempo correu no relógio digital e nada. Sentia-se exatamente na mesma. Procurou por uma explicação lógica e pensou que se a causa estivesse nos primeiros comprimidos deveria então aguardar que fossem absorvidos e eliminados da corrente sanguínea. Tomou então outros dois comprimidos para adormecer de forma a que a presente situação não fosse tão paralisante. E voltou a sentar-se na beira da janela redonda encostado na almofada, aguardando adormecer. E foi nesse momento que a viu.

Uma mulher de gabardine vermelha passando do outro lado do passeio, tal uma rosa num jardim descolorado pela chuva que escorria na vidraça. Abriu a janela para ver melhor. Ninguém usa aquela cor nos dias de hoje, quem seria essa mulher misteriosa? Alex seguiu-a com o olhar absorvido até que ela desapareceu por uma outra rua. E foi nesse momento que perdeu a consciência. 


III

Abriu os olhos meio acabrunhado e logo sentiu um puxão como se uma forte corrente de ar o estivesse a levar. Estava montado numa mota, uma Harley a toda a velocidade no meio de um transito louco, logo se agarrou aos punhos da mota para não ser levado. A mota tomou então os seus pulsos e guiou-o. Nas suas costas, uma capa negra levantava voo e não demorou muito a perceber que na sua boca, a dentição de cima era de ouro, toda ela. Como podia ser? Lembrava-lhe um personagem mas faltava-lhe o elemento essencial. A bem dizer não se recordava do pormenor dos dentes e a nova dentição estranhava-lhe na boca, mas recordava-se do corvo. E foi então que sentiu no seu ombro direito pousar um grande corvo negro. Foi quando entre carros que voavam e outros que rodavam, de frente, dos lados, de cima e até por baixo, em viadutos múltiplos, se recordou da última imagem, a mulher de vermelho. E nesse momento sentiu no seu dorso o abraçar de um corpo, olhando então para trás, agarrada a si, estava ela. Deslumbrante de cabelos ao vento e séria. Desnorteado voltou o pensamento à estrada e quando olhou para as suas pernas não pôde crer, estava de ceroulas, umas ceroulas cor de laranja.
Deu uma guinada e a mota parou curvando junto de um passeio. Não chovia mais. A rapariga desmontou-se e ajeitava agora a gola da gabardine, levantando-a. Pareces desorientado? Não sabes para onde vamos? Alex que nem sabia mais se era Alex respondeu balbuciando Não, tu sabes? A rapariga pareceu espantada, Há-de ser a primeira vez! Tens de mudar de fornecedor, busca no olhar dele! E o corvo levantou voo, planando sobre eles. Alex recordou-se então de que o seu personagem conseguia ver através do olho do corvo e pensou em tentar o mesmo, tudo era tão estranho de qualquer forma. E tomando-lhe o corpo, imagens várias apareceram; um armazém sinistro, alguém produzindo num laboratório, uma arma apontada na cabeça de um homem tatuado com um corvo. Alex piscou os olhos e ao voltar a ver a rapariga disse Temos de ir a um armazém, creio que o reconheço. É melhor ficares por aqui, parece-me perigoso. A rapariga colocou os braços na cintura dele beijando-o Estás mesmo estranho hoje, como se nós não amassemos o perigo! Também não percebo o que fazes de ceroulas, onde deixaste as tuas calças? Não quero nem saber...Vamos então. E seguiram voando na Harley pela cidade fora.


IV

Ao se aproximarem do armazém, a mota abrandou. De longe avistaram dois homens de plantão armados. E na sua capa negra, Alex sentiu uma carabina e nos seus pés, enfiada numa das botas, uma faca. Pensou para si mesmo Saberei eu usar isto? Parece que tudo é lógico menos eu próprio. Inspirou de coragem, embeiçado pela rapariga de formas alucinantes e dando-lhe a mão dirigiram-se para a entrada. Puxou da carabina e atirou nos homens. Entraram. Por uma porta entreaberta passaram e ao fundo de um corredor uma outra dava para umas escadas que desciam. Lá estava o laboratório, amplo e deserto. A rapariga sacou então da mala duas granadas e disse Uma para cada um, lança-a para o fundo e corre! Mas nesse momento ele sentiu algo duro tocar na sua cabeça. A arma, estava a ser-lhe apontada a arma. Ela apercebeu-se e recuou dois passos, dizendo para o homem Se atirares nele, rebento connosco aqui mesmo, agora! E exibiu a granada convicta. Mas o homem estava treinado para o sacrifício e rindo-se premiu o gatilho. Alex sentiu um estalar nos ouvidos e um calor alastrante no crânio. O corvo lá fora voando em círculos sobre a mota e um enorme estrondo mandou o armazém pelos ares.


V

O sol rompeu o céu, inundando o dia de luz dourada. Alex abriu os olhos. Estava deitado sobre a areia numa praia deserta. Olhando para o que tinha vestido, uns calções cor de laranja que também não reconheceu como seus e a uns metros alguém também dormia sobre a areia. Levantou-se ainda meio aturdido e foi ao encontro da pessoa. Era uma rapariga com um fato de banho vermelho, dormindo serena, com a cabeça sobre os braços. Tocou nos cabelos dela e ela despertou. Alex! Estás aqui! Onde estamos? Ele, que não a reconhecia, que não reconhecia a praia e a bem dizer, nem se reconhecia a si mesmo disse Eu...não sei, sabes o que aconteceu? Ela esfregou os olhos e admirou o mar Que frescura! Sei bem Alex, sei que nunca mais compro droga àquele imbecil. Eu já tinha ouvido falar dela, chamam-lhe Led, mas nunca pensei que fosse isso que estivessemos a tomar. Alex sentiu a areia entre as mãos Led? Drogas? Meu Deus, eu nem sei quem sou. Ela tocou-lhe nos lábios com um ar preocupado Então a ti bateu mais forte ainda, maldito dealer! Dizem que independentemente de quem sejas, de onde estejas ou de com quem estejas que essa Led te leva ao céu, literalmente ao céu. Creio que estamos encalhados nele. Não o imaginava como uma praia! Alex levantou-se frenético em pânico Queres dizer que estamos mortos? É isso? Ela levantou-se e caiu em si. Deixou-se chorar Não, tu ainda não, ficaste lá, quer dizer em parte, é por isso que não te lembras de quem és, mas eu...sim, eu lembro, eu estou e abraçou-se a ele. Tu tens de voltar Alex, tens de impedir que aconteça a mais gente, tens de destruir o laboratório, a raiz deste mal. Vai! Ele ficou apático...mas como? E depois do silêncio ela vibrou O corvo! Entra no olhar dele, é ele o caminho de volta! E Alex fechou os olhos e sentiu-se sugado para dentro da escuridão, por um túnel de enjoo indefinido, acordando por fim, deitado sobre a sua cama junto à janela do seu sótão. 
E espreitando lá para fora, lá estava ela, a rapariga da gabardine vermelha. Alex levantou-se e procurou pelo frasco dos comprimidos deixando sair da boca...Led. 






quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Fragmento de Sonho



I

Que tal a clarividência? Dizia o mestre para o discípulo passando por um caminho de pedras rolantes, assimétricas num dia de chuva intenso. As alpercatas chapinhando e as nesgas de lama um escorrega de criança. Creio que vejo apenas o que lá está. A copa de uma árvore, uma folha caindo leve, uma nuvem deslizando, um pedaço de terra que afago nas mãos. Cheiro, sinto a textura mas nada mais que isso. Que é isso da alma das coisas? Perguntava o discípulo ansiando respostas para calar a dor da ausência dela. Tudo a seu tempo, para já é preciso olhar, escutar e sentir. 
O caminho dava a um desfiladeiro e no seu sonho a inclinação o sugava como de um abismo se caísse. No outro lado do desfiladeiro estava ela, olhando para ele, impaciente. Puxando o corpo atrás procurava a gravidade no ponto central do ventre, mas sonial de fraqueza o seu equilíbrio cedia sempre e rente ao chão, escorregava para a escuridão. Vendo então o desfiladeiro na beira dos seus pés comentou a receio Mestre, porque caímos nos sonhos? O mestre estancou e olhando para um pica-pau alheio, falou "So seid ihr Gotterbilder auch zu Staub", mestre não compreendo essas palavras e o mestre explicou Tu que és o rebento dos deuses ou dos godos ou do esterco. O discípulo escutou a explicação e um pensamento lhe tomou o espírito as minhas acções serão a prova. E inspirando de um só trago, desceu convicto a ladeira, gritando eufórico ao chegar lá a baixo Estou vivo, vivo!


II


Enquanto a música tocava, o seu coração caía por uma pauta tombada onde as notas se escorregavam caindo da folha para o nada do chão peganhento do bar. Se te sentasses ao meu colo? Mas ela não escutou, mergulhada num pesar não deixando rasto no trajecto para ser perseguida. Eis a fenda. Foram as palavras que sussurrou. Desculpa não compreendi disse ele. Está muito alta a música, vou lá para fora berrou ela ao seu ouvido. Vou contigo. E ela respondeu Não, agora ainda não, dá-me um momento, espero por ti daqui mais lá fora. 

Ele esperou pelo final da música e quando lá chegou, ela já lá não estava. Como pudeste partir sem mim? E cabisbaixo regressou aos níveis insuportáveis de vibrações sufocantes entre todos os outros. Como parado no centro da pista de dança, o ponto central originário do movimento orbital alinhado no ritmo da solidão. Foi quando regressava já a casa, procurando a paragem de autocarro para o apanhar que deu com ela sentada esperando. As mãos arrumando no colo uma expressão de total apatia. Os olhos abertos apenas por cortesia. Quando o viu aproximar-se levantou-se e abraçou-o. Perdoa-me, não sei o que me deu. Talvez tenha sido da bebida. Dei por mim a andar por aí e acabei aqui sentada, não sei se estou aqui há muito tempo.  Ele sentou-se ao seu lado e deitou a cabeça dela no ombro dele. Descansa, vamos para casa. 


III

A rapariga retirou do bolso o saco dos berlindes que brilhavam luzidios como azeitonas polidas. Vais jogar ou vais ficar a olhar? O rapaz encolhido no baloiço levantou-se e envergonhado mas de pé advertiu Só se for para perderes, mas como sabes perdi as bazucas todas ontem com o Trelas. A rapariga continuou Não seja por isso -  e do saco retirou três berlindes  - toma, agora não tens desculpas. O rapaz pegou nos berlindes e encolheu os ombros com escárnio Cobras de Água, se fosse para jogar com isso jogava com esferas. Ela desesperando insistiu Vais perdê-las de qualquer maneira, por isso, não te apegues a elas. O rapaz desafiado agachou-se e fez o buraco, deu sete passos atrás e tomou então as rédeas do assunto Se perderes, levantas a saia. Ela corou e riu-se, ainda bem que és um zero à esquerda, vamos a isso, desafio aceite. 

Depois desse dia, os berlindes não passaram de pretexto, e do levantar da saia ao baixar das calças ao deixa cá ver se sabes beijar, os dois eram namorados sem saber. E o tempo da escola acabou e o tempo da faculdade chegou e os dois partiram para a cidade juntos para estudarem. 

IV

Mestre creio que estou pronto. E o mestre terminando de descascar a maçaroca inquiriu E como sabes disso? O rapaz arrumou as barbas todas a um canto deixando espaço para as próximas. Estou como o milho. Pronto para a mó. O mestre voltou O milho só sabe que está pronto quando a mão do homem o colhe e com um gesto certeiro arrancou a cabeça do corpo clorofílico. Esta noite sonhei com ela. Ela pedia-me para partir. Que estava pronto para seguir viagem e que me despedisse dela para sempre. Por isso mestre, sinto no fundo da minha alma que chegou a hora e que todos estes ensinamentos me servirão para me guiar num caminho. Mas que está na hora de seguir sozinho. O outro ajeitou as pernas na direcção dele em lótus, levou as mãos às mãos dele e passou-as pelo seu rosto. Fecha os olhos, o que vês? O rapaz voltou a ser rapaz e chorou Vejo-a a ela, como se fosse hoje, trazendo um laço no cabelo e o bibe desapertado. O mestre desceu então as mãos ao peito dele e falou Vês então a minha alma, como sofro por ti, por saber que nunca vais esquecer o rosto dela e que mesmo assim acreditas, que é essa a viagem. Mas mestre...e o mestre entregou-lhe as mãos retirando as suas Estás pronto sim. 

V

Duvido que mais alguém pudesse reconhecer essa melodia. Tu conheceste alguém chamado Lídia? A jovem cantarolava pela ponte carregando os sapatos numa mão e a taça de champagne na outra. Dançava como doida agora pendurada no braço de pedra que a escassos centímetros a levava ao rio da escuridão que lá em baixo dormia.  Ainda vais cair, vem cá. E ele levou as mãos ao rosto dela e uma vez mais, no rosto dela, chorando, o rosto de Lídia. Abraçou-a e gritou eufórico, correndo com ela pela ponte fora Estamos vivos Mia, estamos vivos! E as luzes da cidade foram-se apagando e a madrugada acordando uma cidade tão distante quanto próxima. 

Tu que és o rebento dos deuses ou dos godos ou do esterco e o mestre lá do seu milheiral ria, sentindo com ele a alegria da sublimação do amor eterno. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

ME LIGA VAI!

https://www.youtube.com/watch?v=xWE4rrrfahQ&feature=youtu.be

Amanhã estarei também em linha, ME LIGA VAI!

Tempus fugit



I

O dilema da eternidade, o ter que ser para sempre. Quando era novo incomodavam-lhe estes pensamentos, depois os anos foram serenando e a eternidade se foi relativizando. Mais tarde o para sempre já se media nos anos que faltavam, e mais tarde cada vez seriam menos. O agora tinha então um sabor especial, a preciosidade da contagem decrescente. Invertendo a ampulheta, mais tempo para trás do que para a frente. 

A câmara abria o diafragma com a fome do olhar de um recém nascido. É a primeira vez que te vejo assim. Da janela o frio entrava mergulhando o corpo, ondulando uma vela trémula, as mãos se escondiam nas dela. Estamos a andar para trás, em breve seremos criança. E ciclava no botão retendo o momento do nascimento num retrato sépia. Não se recorda ao certo do exacto segundo em que o vira pela primeira vez. Não sabia se nos braços da mãe se no berço embrulhado. O mundo se abriu como mácula de um branco cegante. O mundo há-de ser tão grande. E os seus retratos deram a volta à terra, mais tarde, no tempo em que o tempo já se devorava a si mesmo como onda enrolada num fundão, onde tudo é areia.

A poesia não é senão uma câmara, e a dor e o deslumbre ou a paixão, são as lentes do tubarão. 
Querias dizer lentes de peixe?
Não, peixe é miúdo, poeta é tubarão mesmo.



II

Foi numa tarde de Inverno que andando em sentido contrário, se cruzaram. No passeio estreito, foram os dois para a esquerda e bateram de frente, e foram os dois para a direita e bateram de frente. E então ele disse para o outro Creio que estamos encalhados. O outro riu-se e estendeu a mão. 
Chamo-me Chronos, é estranho o nome bem sei, mas foi o que me deram. 
Por curiosidade, chamo-me Kairós. 
Do acaso nasceu uma amizade carente de fronteiras, onde um estava, o outro também, o que um sentia, o outro pressentia e de mãos dadas os anos foram passando. 
Chronos tinha um temperamento fácil, era terreno e organizado, meigo e dedicado a cada segundo do tempo que passavam juntos. Kairós era o oposto, lábil, deslumbrado, encantado, embriagado de tudo. Gostavam de passear pela cidade, da praia, do campo, do sol, das plantas, dos animais e gostavam da noite, da folia, dos amigos, da música e das festas. Os anos foram passando felizes, mas a passagem do tempo foi-lhes trazendo a quebra de um nem se saber bem o quê, caindo o espaço entre ambos numa rotina demasiado esperada. Esquecendo-se, confiando-se de que seria para sempre só porque seria. Mas o tempo trouxe a falta de algo ou o excesso de não sei o quê. 

E foi assim que apareceu o outro. E o ritmo se alterou para sempre. Estavam os dois, vinte anos mais tarde sentados numa paragem de autocarro, em silêncio. E o terceiro aproximou-se, delicado pedindo para partilhar o banco. Ele está em toda a parte não está? Os dois olharam um para o outro e nenhum respondeu. O terceiro continuou. Ele está no meio de nós. Chamo-me Aeon, muito prazer em conhecer-vos. Há muito tempo que vos procurava, mas o tempo foge e nós corremos atrás. Kairós colérico levantou-se enciumado. Afinal vou a pé. 
Aeon ficou a vê-lo partir e tocou na mão de Chronos que se preparava paciente para ir atrás do outro. Não te preocupes, ele sem nós não pode existir. Ele volta. Voltaremos sempre uns aos outros, ainda que cada era seja a última, voltaremos sempre a reencontrar-nos, neste ou em qualquer outro mundo. Chronos não entendeu mas confessou um certo de cansaço do outro, não fora sempre feliz nem sempre fácil, mas amava-o mais que tudo. Quando o outro caía em tédio, porque a vida não pode ser sempre um carrossel na feira das novidades, ele abraçava-o e no seu peito o outro serenava. Quando ele estava em bloqueio na fixação de uma tarefa impossível, o outro vinha na hora certa e desalinhava delirantemente tudo, libertando-o dessas correntes. Onde um falhava o outro completava, mas o tempo também nos cansa de sermos sempre nós mesmos e sobretudo, nos cansa o outro ser sempre ele mesmo. E foi nessa fenda que Aeon, nesta era, conseguiu entrar. Aeon era o único que tinha consciência desta repetição cósmica, deste trio que tantas formas já tomara e que voltava sempre a ele mesmo e geralmente era Aeon o último a aparecer e era ele mesmo o responsável por tudo acontecer da forma que estava escrita. 

III

Os filhos são o espelho das nossas falhas no futuro e a possibilidade de as corrigirmos e nos aperfeiçoarmos numa continuidade de utopia perfeição. Os filhos são aquilo que começamos quando nos começamos. No tempo de nos sermos criamos a possibilidade de continuarmos a ser na continuidade de um tempo em que já cá não estamos. 
O infinito queres dizer? 
Sim, o para sempre. 
E já escolheste o nome?
Pensei que tínhamos acordado sobre isso, não era o nome do teu avô? 
Mas o meu avô foi um homem perturbado.
Mas genial.
Mas genial, concordo. 

IV

Chronos não levou muito tempo a amar Aeon, foi fácil. Aeon era sereno como ele, mas acrescentava-lhe aos pés assentes na terra a espiritualidade celestial. O sonho como tranquilo, diferente da agitação infantil e cega de Kairós. Este por sua vez, não aceitava a presença de Aeon nem por nada, mas o amor que tinha a Chronos levava-o a tolerar o outro. Não sabia ao certo o porquê de tanta aversão a essa paz divina, como se toda essa segurança de Aeon o irritasse. Para Kairós a vida era uma paixão, para Chronos uma tarefa e para Aeon uma missão. E mal sabiam eles, que os três, estavam destinados e condenados a um só. 


V

Olha como está crescido! Os anos vão passando e está cada vez mais parecido contigo.
Não, está parecido é contigo!
O tempo voa, ainda ontem estava a tira-lhe o primeiro retrato e hoje, vai-se casar.
O tempo foge. Talvez não.  Não é o tempo que foge, nós é que fugimos do tempo que já fomos e corremos atrás de mais tempo para sermos. 
Acho o tempo tão relativo.
E é, é a forma como o vivemos que nos condiciona.
Lembraste do tempo em que nos conhecemos?
Foi a primeira vez que te vi assim. Feliz.
Esse assim, às vezes assim-assim, mas tenho a certeza de para ti ser assim para sempre e por isso para mim, assim é assim.
Foi sempre assim não foi?
É.


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O Amor de Cassavetes



I

Eu te irei contar a história de um amor, logo depois, logo logo. 

Entretanto, um soldado dizia para o outro Sentinela Alerta, um descuido é morte certa. Respeito a minha felicidade quando por ela me alieno, dela me alieno e de longe aceno. O cérebro pensando as emoções e o tempo marcando a cadência. O tempo permite-nos a existência. Então, quando esse soldado era ainda menino, os caminhos iam dar a um só destino, a rua. Das regras fazia brincadeiras, dos restos, brinquedos e do tempo, recomeços. Nada me arrependo, tudo foi pago no tempo da letra em vigor, a bem dizer, com a própria vida. Tudo o que dei, nunca deixou de ser meu, na continuidade da memória, seremos sempre muitos. Mas entretanto o país caía, de um despenhadeiro colapsando na queda do momento. É que é a terra que gira, nunca nos podemos esquecer, olhar o céu antes de partir. 


II

E no baile das Açoteias, balões de papel colorido e uma concertina serpenteando. Olharei sempre para ti dessa maneira, sempre. Os soldados bebiam por canecas num à vontade sem guerra. Sempre me perguntei o que guiava esses homens para a morte. Heroísmo ou suicídio? Patriotismo ou cegueira? Também aqui serão sempre precisos homens para fazer uma guerra ou não fosse por eles a sua existência. Já vai sendo tempo de pôr fim a isto tudo. Um apagão humano, e que os novos homens sejam dotados da ausência do ego. E no mundo animal, não as há também? Tudo uma questão de espaço, territórios, posse, donde me pergunto se os animais não terão ego também? Quando o soldado completou cinquenta anos, estes foram os problemas criados pelo seu próprio ego. E ela, na impotência da distância que não mais o unia, pedia, pedia por tudo para que voltasse para si. Ás vezes perdia-se pela casa, buscando as razões de tudo. Olhava o céu, na adivinhação do tempo que há muito tempo, chuvoso. Se não existisse no agora, quem gostaria de ser? O que gostaria de ser, como poderia ser diferente? Escuta-me, eu te imploro, de ti me perco de dia para dia. E depois escrevia-lhe cartas, que deixava do lado da mesa de cabeceira dele. Partia para o trabalho e quando regressava a casa estava fria e vazia e as cartas, por abrir. 

Quando era criança a minha mãe mandava-me aos recados, aqui era o pão, aqui o vinho e além os tremoços. Corríamos isto tudo. Não foi isto que cresceu, foi a cidade que se aproximou e sufocou os contornos da minha pequena terra. Aqui era o terreiro, via-os passar nos carros de combate. Quando fiz dezoito anos a minha mãe deu-me a escolher entre a oficina do meu pai e a vida militar. A bem dizer, não tive escolha.

III

Olharei sempre para ti dessa maneira, sempre. E rodopiava à volta dela, confundindo-a, embriagando os seus sentidos de promessas de sorriso para todo o sempre. Casa comigo, casa amanhã mesmo, não percamos mais tempo, se soubesses o que sinto por ti...apetece-me esmurrar as paredes, bater com a cabeça nas árvores, atirar-me para debaixo de um carro. Quando se ama alguém assim desta maneira, é assim, não acreditas? Mas tens de acreditar...o que queres que faça para te mostrar? Casa Minnie, casa por favor. 

E casou. Ela que achava que os homens da tela do cinema eram uma fraude, que não existiam ou que haviam sido criados para iludir as mulheres. E tudo não passa de um cenário cinematográfico, além nos campos de guerra a morte é real e muitos foram os que não voltaram. Mas ele voltou, em parte, voltou. A concertina serpenteando e dois corpos dançando como se nada mais existisse em volta. É preciso olhar o céu, medir a espessura das nuvens, calcular o seu trajeto, no espectro das cores, defini-las. É que há muitos tipos de nuvens, sabias Minnie?
E rodopiavam, contrariando a rotação da terra, baloiçando aéreos, saltando de nuvem em nuvem, rodopiaram até que o ego os serenou. E foi nesse dia, que deixaram de dançar. Esse monstro que a concertina calou e o céu fechou. 

IV

Se tu partires neste dia de Verão, levando contigo o sol do meu coração, partirei contigo, para parte incerta. Partirei distanciando-me de ti, para parte incerta. Ficarei e não ficarei. Tudo dependerá de como voltares. E assim foi. Pergunta-se hoje se a presença de filhos teria mudado alguma coisa, se cada partícula do corpo dele se projectasse na continuação da espécie, talvez não se deixasse à morte, à extinção do amor. Mas quando ele voltou era tarde demais. E ficava por ali um espaço que em nada tinha de mais seu. Que este ego, não se tratava mais de querer mas de não haver mais o que querer. E no lugar da sua vontade ficara um espaço de nada, uns dias de tristeza ainda, mas tantos outros de mera contemplação do tempo marcado pela exclusiva cadência do mesmo. 

Minnie observava à sua volta os restantes membros da comunidade e lá no fundo, bem no fundo, sentia-se contudo agradecida por ter vivido o que viveram. Quando fecha os olhos, consegue recordar-se de cada momento, de cada gesto, de cada palavra. Um amor assim, só mesmo no cinema. Por isso te escrevo estas palavras. Por dentro de mim, memórias de ontem alumiam ainda a esperança. Se for preciso irei contigo, percorrerei esses caminhos negros, encontrarei essas memórias de culpa e juntos, poderemos então regressar. Se for preciso irei contigo até ao inferno, que aquilo que ainda trago no fundo é suficiente para nos trazer os dois ao limbo. Mas terás de querer ir comigo. Lá onde ficaste, só pode estar um. E nós fomos sempre dois. E depois chorava, as cartas sempre fechadas e o silêncio pesando, martelando o nada. 

V

Um dia ele partiu. Mas partiu de morte voluntária. E as cartas ficaram na gaveta, por abrir. Uma vida inteira de uma promessa quebrada. E Minnie regressou à tela, aos homens de sonho, aos amores de Cassavetes. Por aqui ficaram muitos soldados mancos, quebrados de vida, atirados aos anos de não esquecimento como balas no vazio. E o país cresceu, a guerra esmoreceu e outras formas de poder tomaram posse. 

Eu te irei contar a história de um amor, logo depois, logo logo. 
Entretanto a terra há-de continuar a girar, numa rotação certa e a vida, longe das telas, uma paleta de nuvens donde se adivinha o tempo. É que há muitos tipos de nuvens, sabias Minnie?

domingo, 9 de novembro de 2014

Dominós


I

Ainda nem mal abrira os olhos e já o dia se adiantara para uma manhã de luz mesclada de cinzento a descoberto. O despertador tocou pouco depois. Gostava de ter visto o nascer do sol, o mundo começando a arder por entre as paredes de betão. A máquina a despertar na engrenagem oleada pelo suor e pelo esforço dos que a mantêm. Serão sempre precisos homens, nem que seja para a conceberem que a natureza essa, não precisa de senhor imaginário. Se revela, mutando da mais perfeita das harmonias. Está demasiado frio lá fora para os anjos voarem. 

As fundações do afecto retidas no ego. Abraçados as asas são casacos ternos de Inverno. Caminhando uns entre os outros pelas ruas contornadas de fumo, vapores do subsolo escoando das entranhas. É esse olhar que me prende. Hoje, é o tempo que me cativa numa era proibida de existência. Porque as escadas não sobem só descem. Seriam precisos mais dois braços. Que essa desventura nos condena a fronteiras demasiado duras. E passando pela catedral parou um instante. Recordas-te da nossa última conversa? Eu sentei-me no banco de madeira corrido e olhei-te. Em toda a tua serenidade há uma queda do sofrimento à terra, é o gesto da tua mão, a curva da tua testa, a posição dos teus pés e o aperto que tens no coração. Me tomando de compaixão o espírito. Em todos nós cai esse sacrifício. E em tudo no dar é contentamento. Hoje não entro na tua casa, não me sinto convidada. Tenho amargura no lugar de amor. 
Seguiu porque seria hora de começar qualquer coisa. 

II

E se todos vivêssemos na rua? 
É lindo aqui não é? Vives por aqui? 
Inclinou um pouco o pescoço na direcção oposta, caindo o olhar de obrigação no jornal seguro pelas duas mãos. O café já estaria frio mas importava toma-lo até ao fim. As mesas dispostas na linha do rio. E os de fora procurando reter o momento numa câmara de gelo. Sentindo-o levantar e partir, pode finalmente olhar para o outro lado. De entre a brancura das paredes em socalcos encosta acima havia uma diferente, como que florida de roupa pendurada, um arco-íris microcosmos idiossincrásico. 
E se todos vivêssemos na rua? Se as paredes não fossem senão os nossos olhos? 
Assim dormia num banco de pedra, na mais desprovida infância dos conformes da vida. E os outros passando, como se de um cão se tratasse. Em plena luz do dia, este passeio é meu, meu! 
Olhou o céu, uma cúpula pesada onde um pássaro de nuvem figurava de asas abertas inerte. É isto não é? É para isto que servem os nossos olhos? Diz-me, o que podem as minhas mãos fazer? Que uma cegueira repentina me pudesse consumir de inocência! 
Desceu e parou novamente. Não sabendo se pela rua de cima ou pela rua de baixo. Porquê fazer o mesmo caminho duas vezes? E escolhendo a rua que descia, por onde o eléctrico haveria de passar avistou a mercearia, a tal mercearia que nas suas histórias já aparecera, a tal que imaginara, tal e qual ali mesmo. Pois se nunca havia olhado para lá como podia saber que lá estava? E procurando pela rua, nos labirintos do bairro, que haveria de ter duas casas frente a frente, janela com janela, mais estreita que um fio de cabelo, encontrou-a. E se ele era ele? Então eu seria eu? 
Se ela fosse ela, estaria a trabalhar a essa hora na mercearia. Voltou atrás. Entrou, a campainha deu sinal da sua presença. Atravessou o corredor das massas e parou diante dos enlatados. Uma lata de sardinhas. Virou e procurou a caixa registadora. Lá estava uma rapariga, tal e qual, imaginara Elisa. E atrás de si, alguém falou Eu gostava de convidar-te para jantar. A mim? Foi Elisa quem respondeu por fim depois de rir E é isso que vais oferecer-me para jantar? Não era para si de facto o convite, percebeu que nem sequer a podiam ver, que não estava ali, estavam apenas eles os dois, dando seguimento à sua história. Saiu porta fora agoniada. Ele vira-a na esplanada, não vira? Ele falara consigo não falara? Ou não teria falado para si? 
Até que ponto a realidade é ela própria? Diz-me tu que em tudo pareces ter a certeza. Não consigo entender o que me queres mostrar? Não compreendo os teus desígnios! O desalento. 


III

Regressou a casa. O mundo estava muito confuso lá fora. 
Procurou pelo texto que havia escrito meses antes. Não o imaginara bem assim, era pequeno e franzino, o outro era alto e de olhos claros. Mas Elisa era tal e qual e ocorreu-lhe que se ela era ela que podia conhece-la melhor, uma vontade inexplicável de estar perto de si, de senti-la, de escutar o seu pensamento, sentir a sua pele. Sabia que estaria em casa no dia seguinte, Domingo, o seu único dia de descanso. Iria visita-la, a questão era como havia de ser vista por ela, necessitaria de uma ponte.  Posso pedir-te umas asas emprestadas? Necessito de ir a um lugar conhecer uma pessoa. E só um anjo poderá fazê-lo. Deixas-me ser anjo por um dia, uma tarde, uma hora? Imploro-te, faz-me anjo por um momento. Dá-me asas. 

Nessa noite sonhou que as suas costas doíam, que delas emergiam armações e nessas armações multiplicavam-se penas. E as palavras cuidado com o que desejas caíam nos momentos oníricos como folhas de outono, umas atrás das outras, deixando desnuda a sua demanda. Estaria a desejar algo de tão próximo assim do fim? Acordou com o corpo todo dorido e ao levantar-se sentiu um peso extra nas costas, ao espelho lá estavam elas, as tão pedidas imaculadas majestosas asas. Imóveis, desejou levanta-las para experimentar a sensação, nada. Imóveis. Então lembrou-se do homem que vira dormir no banco de pedra na praça, à luz do dia esquecido. E uma lágrima caiu e as asas levantaram. Como se marioneta de uma leveza subtil chegou ao tecto. A vista de cima. Vestiu um casaco grosso comprido e procurou disfarça-las para sair. Se saísse de casa a voar seria estranho. Mas será que todos a podiam ver? Faltava um manual de instrução para ser anjo. 


IV

Gesticulava girando o cigarro, ora para fora ora para dentro da boca. Mimo, de copo de tinto na mão, procurava a atenção dos jovens que jogavam dominó. De olhar turvo e sapatos amarrotados. Os rapazes olhando esbugalhados, depois de voltas e reviravoltas, ansiando o final do truque que não vinha. Depois de alguns minutos a gargalhada surgiu.
Queres ver qual é o truque dele - dizia o outro - o truque dele é ter sempre o copo de tinto cheio e quem é que lho vai pagar? Pois, já estão a perceber o truque. 
E o cigarro apagando-se, saindo outro do maço e um cheiro de ponta queimada nas mãos por toda sala. A rapariga vendo os outros já arfando de falta de paciência e o gozo a crescer sem dolência, falou para ele.
Como é que se chama? Vem aqui muitas vezes? Mora por aqui?
E a atenção do homem caiu nela. Alguns grunhidos lhe saíram da boca, e o mistério do cigarro lá escondido debaixo da língua mantinha-se. 
Não se queima? Vá fale lá connosco, já percebemos que gosta de truques mas nós queremos palavras. Conte lá quem é.
O homem levantou-se indicando que demoraria três segundos, eles olharam uns para os outros rindo, quando voltou trazia um livro. 
Não me diga que além de mimo também escreve? É seu o livro? Também se chama António o autor, deixe ver a fotografia, ah mas não parece o senhor, este tem menos cabelo. Não é o senhor pois não.
O outro riu-se.
Então não estás a ver que não.
Com a ponta do cigarro na mão recolheu um pouco de cinza ainda ardendo e faíscas caíram pelas pernas da rapariga.
Ai veja lá as minhas meias, ainda me queima Sr. António. 
Abrindo então o livro na última página começou a borrar com o dedo aquilo que parecia o início de um desenho. Concentrado, continuou, borrão a borrão olhando o rosto dela. 
Está a fazer o meu retrato! Incrível!
Quando terminou abriu o livro na primeira folha e lá estava um outro rosto, com os mesmos contornos do mesmo. 
É sempre o mesmo rosto! É uma mulher! Quem é?
Essa é questão para o prémio final, já estás a ver o cenário não estás? - rindo-se um dos outros.
Quem é Sr. António? É sua esposa, sua filha?
Tenho uma filha que deve ter a sua idade, é linda de morrer.  
Sim? E onde mora?
Não sei, não falo com ela há anos. Batia-lhe muito quando era pequena. É tudo uma grande merda, eu não valho nada, uma merda é o que sou - atirando o livro ao chão pisando-o.
Não diga isso, tem muito talento.
Tenho bilhete pago, tudo pago para ir para a Suíça mostra-los em Abril, tenho mais de dois mil guardados. Já foi à casa de banho? 
Atrás de si dois homens pegavam-se agora à pancada e a rapariga levantou-se pegando-lhe na mão.
Desculpe António, o ambiente aqui já não é para meninas, tenho de ir, gostei muito de conhecê-lo e espero ver uma exposição sua por aqui, irei com gosto.
E o homem regressou à mímica gesticulando agora para outro grupo que estava ao lado. 
Quando saíram, passaram pela casa de banho e as paredes estavam cobertas de borrões. No corredor das escadas que desciam à porta, a mesma coisa, sempre o mesmo rosto, arrastado de linhas curvas negras. 


V


O voo, a corrente de ar no rosto. Pensou em aproveitar esta nova sensação. Foi a pé até ao cimo da colina. Da varanda da cidade, encontrando-se sozinha, despiu o casaco, pensou em toda a tristeza do mundo e levantou voo vertiginosamente até lá abaixo. Ainda não sabendo como desacelerar ou parar andou em círculos, contornando telhados, gaivotas e nuvens. Lá do alto experimentou fazer adeus a uma criança que baloiçava no jardim e recebeu de volta esse adeus, mas com os outros isso não aconteceu. Será que Elisa a poderia ver? O voo era uma sensação de liberdade absurdamente louca. Sentia como se estivesse num carro a alta velocidade sem qualquer obstáculo, mas passando tortamente por uma chaminé que quase a descalçou, apercebeu-se de que havia na verdade obstáculos, e que os seus reflexos eram essenciais, que não se distraísse demasiado não fosse um choque quebrar-lhe uma asa. Pensou no porquê de estar calçada e achou que não faziam falta os sapatos. Deixou-os cair cuidando de não acertar em alguém. 
Parou na janela de Elisa.

VI
E se os homens fossem dotados de asas? Será que caminhavam descalços?
Ela estava em casa. Através da cortina que esvoaçava sentia-lhe os passos da sala para a cozinha, apressada. Entrou e vendo-a sentar-se no sofá com um prato de comida, sentou-se a seu lado. Ela não a podia ver, ainda. Aproximou-se do pescoço dela para sentir o seu perfume e um arrepio tomou Elisa. Tocou-lhe nos cabelos vermelhos, nas sardas ao longo do nariz, no pulso sentindo o batimento da vida. Do prato a massa libertava ondas de calor. Olhou em volta procurando algo que pudesse dar sinal da sua presença. Só querendo ser vistos, eles nos podem ver. Não sabia como de repente sabia isto. E o seu olhar pousou no retrato de um homem sobre uma pilha de livros em desequilíbrio a um canto. Um homem mais velho com alguns traços parecidos com os de Elisa. Seria seu pai? Levantou-se e tocou na pilha de livros que como dominó se espalharam pelo chão deixando cair o retrato. Elisa assustou-se. Pai, não. Largou o prato de comida, correu ao quarto e calçando os sapatos, bateu com a porta. Ela seguia-a voando sobre o seu ombro. Elisa avançou pelas ruas, subindo à praça. Lá estava o banco de pedra e o homem dormindo a serenidade da morte.



quarta-feira, 5 de novembro de 2014

FaceCook

enclave cósmico
a aritmética do tempo
é lindo não é?
bitaites
cartografia de andróides
pega monstro
a refletir a contemporaneidade
...
qual é o caminho mais curto entre
dois pontos?

judiando
era um outro angulo
imodéstia
curiosidade de lóbis
febras assadas e uma estaca
reunião plenária
choque frontal de perfis
o helicóptero é o elemento
beleza e estrutura militar

com profundidade e quadris
atracando só para manutenção

sempre tive uma paixão
por desenhadores de preto
ficou contente com o produto?
boas razões para sair de órbita

tecido do espaço e tempo
torcido

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A venda das raparigas


I

Vivemos para morrer aos poucos cada dia e que essa visão fatalista nos aproxima ainda mais da morte que nos rouba o sopro da vida, de dia para dia. Redundante, crónico, imperdoável porque ninguém nos explica esta condição no acto de nascer.  É por isso que me dedico à morte, que me fascina a mesma na oposição à vida, que me encantam os idosos e os doentes terminais, que sabem estar tão próximo dela que a aceitam na sua maioria como natural. De resto todos os outros corremos na maratona contra cronómetro, contra a maré, tentando vencê-la, derrota-la, engana-la. A ela, a invencível ponta da navalha onde nos procuramos equilibrar sem nos ferirmos, como se fosse possível, como se a nossa pele fosse impenetrável, como se fossemos imortais. 

Foi o discurso dele antes de mandar entrar o grupo de raparigas pela carrinha adentro, amarradas e amordaçadas. Enviadas para a morte. Para um destino adiado por algumas horas de caminho. Raptadas, roubadas do seu quotidiano, da sua juventude, da sua inocência. 


II

Foda-se! Foda-se pra isto tudo! Puta de vida caralho, puta de vida! Tás-te a rir sua puta? Foda-se - gritando desesperado pela rua fora arrastando o carrinho de mão e dois sacos de plástico, depois de muitos pontapés na porta improvisada de um resto de portão - Agradece a Deus caralho, agradece a Deus teres comida no prato para ti e para os teus filhos, agradece caralho, ai foda-se, foda-se que puta de vida, quero morrer caralho, morrer!

Pela rua os seus gritos viraram a esquina e os moradores acompanharam a cena de guarda-chuva, impávidos. Quando ja ia longe, sentiram alívio para o comentário...
Já vais tarde! Haviam de morrer todos, miséria...

III

Despediu-se da neta chorando. Há sete anos que ali fora depositada e nem uma visita da mesma. Nesse dia de surpresa a neta apareceu. Sorrindo, pedindo perdão pela ausência, acusando a vergonha e uma saudade inteira.
Eramos tão amigas quando eras pequena. Oh D. Alice esta é a minha netinha, é doutora, você não a conhece porque ela nunca cá veio. É alta não é? Oh Sr. Custódio olhe a minha rica netinha, já viu? É parecida comigo? Vem-me visitar mais vezes, prometes que sim Anita? Elas aqui são muito ruins pra mim, sabes lá. Oh trouxeste-me chocolates,  mas os meus diabetes não podem, estão altos, ando sempre a controlar, ah mas não os deixes aí que elas levam tudo, mete aí dentro do armário atrás. Eu até já tinha pensado se estarias chateada comigo por algum motivo. No outro dia levaram-me os pijamas todos, que estavam velhos e depois compraram uns tão apertados, reclamei, pois depois sou chata, tenho de ser, isto aqui tem de ser assim, senão para as outras é sempre tudo antes de mim, deixam-me sempre para depois. Ah esse casaco não, a outra parva chamou-me pinguim, isto aqui é só disto. Pois esse, esse serve, está frio lá fora? Oh mas eu é uma chatice depois quero ir à casa de banho. 

IV

A pata do cavalo ainda lá está. 
Estava um casal a passear na praia, olha lá em baixo, que imensidão de facto, as ondas chegam até lá onde vês aquelas casas, agora fazem escavações para travar o mar, isto há uns anos não havia nada disto, como cresceu, íamos para a praia com as francesas, isso é que eram tempos! O casal estava a passear de noite junto ao mar, veio uma onda, a sétima, e levou o rapaz. As pessoas não conhecem este mar, deviam teme-lo, não é para brincadeiras. A onda chegou ao farol, como é possível? Andaram a meter veneno por aí para matar as gaivotas, eram demais, isto aqui não se podia estar. De vez em quando lá cai um a tirar a fotografia, chegam-se muito à beira. Um abismo medonho. Que imensidão de facto. Além o porto, dizem que é o mais seguro da Europa, ah pois em Peniche agora é que está a dar, grandes investimentos por lá, é o presidente, um grande homem com visão. Ai isso daqui não há hipótese, é um fundão. Elas são gigantes por causa do canhão, um fenómeno irado. 


José A. Moreira. 1928-1997. Abandonado. 
Lia-se na mais branca das campas de mármore quando atravessaram o cemitério chovendo a potes.
Venha ver o jazigo, venha lá a ver, cuidado com os pés, está tudo enlameado, apoie-se aqui não tropece, está todo limpo, foi arranjado. As colchas sim foram lavadas. Precisam dos nossos terrenos para ampliar as terras do cemitério. Ali está a madrinha, por cima está o padrinho, além o avô e agora já temos espaço para si. Está bonito está, todo florido, o rapaz fez um bom trabalho. 

Fez-me a vida negra. Vinte anos de casamento, tu Anita nunca te cases, estás muito bem assim na tua casinha com o teu trabalho. O que eu perdi, podia ter casado novamente, claro que podia, mas não queria, nem pensar. É, vocês escondiam-se debaixo da cama. Comunistas, todos comunistas gritava nessa noite. Malvado, era mesmo ruim. E a outra, essa a que me meteu os cornos, outro dia diziam-me lá no lar que a viram, pois viram, está velha e gorda, sem dentes. Era de madrugada pois saía e era lá no vão das escadas, sabem lá o que ele ia fazer, pão no forno pelo cu da pá. Vamos embora que tenho de ir à casa de banho, olha está-se tudo lá a estragar, tu não precisas de cobertores. Estão lá a ser comidos pelas traças e pelos ratos, ai pelos ratos não? Veneno? Oh, mas o que é que vocês percebem disso? As cobras, ai quando eu tinha juventude, era pela cabeça que as matava. Oh D. Maria há quanto tempo tá boazinha? Esta é a minha netinha, lembra-se? Não lembra que esta era aquela que nunca queria ir lá aos recados. 

VI

Ao passarem pela pequena terra andando estrada fora, a placa próxima indicava Venda das raparigas.  A sua mente pregava pequenos truques tentando projectar uma saída para o cativeiro. Pela laringe dele a sua voz soara a promessa de morte e o tom faria cumpri-la na certa. Doze jovens, provavelmente como ela, aliciadas pela ideia de um trabalho no exterior. Viajara até este país para isto, para morrer longe dos seus, sem poderem sequer receber essa notícia. Para isto vivera 22 anos, anos de treino em escolas de dança, anos de choro de extensão de corpo, anos de miséria numa nação desmantelada. E um adeus que seria para sempre. 

Foda-se caralho sai-me da frente, sai-me da frente que eu nem sei de que terra hoje sou. Tou capaz de morrer ou de matar alguém hoje, queres morrer caralho, queres morrer caralho? Tás mesmo a pedi-las foda-se ai foda-se puta de vida que só apetece a morte, toma lá meu grande cabrão, toma lá a ver se aguentas com esta, esta é pesada não é filho da puta? Aí no chão seu cabrão! E na carrinha caralho, que é que trazes aí, vamos a ver, ah pois agora não falas não é cabrão. Ai foda-se que loucura de dia!

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Reabilitação ao Realismo

Dia 1

Desconectou-se e escutou então a chuva que caía lá fora.
Tal como se escutasse o silêncio pela primeira vez.

Nós ainda somos do tempo em que não havia internet. Do tempo em que o tempo era vivido com os pés assentes no solo, cara a cara. Mas já não o sabemos ser, pelo menos a maior parte não sabe. Temo por aqueles que já nasceram incorporados nesta globalização fictícia.

 Um escudo protector, uma redoma ventral para tentar voltar ao início. Por quanto tempo? Por quanto tempo seria capaz de se manter nesse cativeiro auto proposto e em consciência aceite? Esse seria o seu desafio maior. Renunciar aos vícios que a incorporação na sociedade atual impunham, mas ao contrário de outros que procuravam a terra, ela queria a caverna.  Na verdade o seu maior receio era o preenchimento de um vazio que nascera da ausência de um falso estar em contacto, de um falso existir num perfil via chat, email ou sms. A sua porta estaria aberta para visitas de carne e osso, a sua mente estaria disponível para livros, revistas, jornais, mas não televisão. Cada pedaço seu partilhado ou fabulado em rede deveria desaparecer para que emergisse dentro de si a verdadeira consciência de partilha real com o mundo. Desintoxicando-se.

Como disse, num primeiro momento o que escutei foi a chuva lá fora. Os carros passando, as ambulâncias, os cães do bairro, as palavras de um ou outro vizinho, alguém colocando a chave na porta de entrada do prédio. Depois levantei os olhos, fechando o computador pela última vez. E os meus olhos pousaram nas paredes, nas prateleiras dos livros, no sono tranquilo dos animais, na roupa perdida ao acaso pelo quarto. Depois levantei-me, fui até à janela, olhei o céu cinzento que escorria, o dia anoitecendo, senti a brisa da frescura no rosto e regressei ao sofá. Fumei um cigarro. Creio que nesse dia chorei imenso, chorei mais do que no dia em que a minha melhor amiga falecera. Chorei por mim, pela vida que levara até aí, pelos que vivem dessa mesma maneira e sofrem, pelos que vivem dessa mesma maneira e nem sabem que sofrem. Depois de chorar, apercebi-me de que tinha fome, antes não tinha dado pela vontade de comer. 

Não sabia ao certo que horas eram, não tinha importância, procuraria encontrar o horário natural do seu corpo biológico. O frigorífico estava quase vazio. Procurou com alguma criatividade elaborar uma refeição com um pedaço de pão, um pedaço de queijo já seco, um ovo e café. Sair para ir ao supermercado estava dentro das poucas tarefas que tinha permitido realizar fora de casa. Essa e a de passear o cão. Provavelmente a de comprar tabaco estaria associada ao passeio do cão.

Penso que o silêncio visual é neste momento o meu maior incómodo. A passagem de janela em janela, a procura de informação ou novidades na navegação. E a ideia de estar ausente, desligada de tudo. A nível auditivo não faltam estímulos, tenho ainda música que pode ser escutada na velha aparelhagem e o meu pensamento escuta-se em voz alta pelas paredes. E há sempre uma ou duas frases constantes de represália aos disparates dos gatos. Começa-me a ocorrer a questão do porquê desta decisão, se terei a ganhar com isso, se o mundo terá a ganhar com isso? É provavelmente a minha mente já em fuga, preparando desculpas para a rápida recaída. Dir-lhe-ei que não. Que ainda muito há para perceber. Que me ocupe de atividades prazerosas, como tomar um longo banho, limpar os cantos à casa, ler um dos muitos livros que ainda não foram lidos, arrumar os armários, pensar na agenda e no que de trabalho exterior há para cumprir.

Dia 4

Creio que uma certa melancolia está a tomar conta de mim. Digo isto porque passei uma hora deitada no chão ao lado do cão, olhando dentro dos olhos dele, procurando entender como ele se situa no mundo que eu lhe proporciono todos os dias.  Levei a minha mão à pata dele e falei com ele durante algum tempo sobre a minha infância, de como gostaria de ter tido um cão nessa altura e não tive, depois senti-me inútil e incapaz pela forma negligente como cuido dele, penso que morrerá mais cedo por minha causa. E assim passou uma hora. A tentativa de vencer o tempo alheio prende-se com a habilidade de ocupações curtas mas eficazes. Até à data ainda nenhuma visita apareceu. Não creio que venha a aparecer tão cedo. Não estou online para convidar e não tenho telefone para atender. Perante estas circunstâncias, ninguém nos dias de hoje se dirige a casa de outro alguém. Ou quase ninguém. Ocorreu-me a ideia de começar a ler vários livros ao mesmo tempo, como se fossem páginas, perfis, histórias individuais e paralelas correndo na web. Sei que é novamente a minha mente a tentar reproduzir moldes de comportamento anterior. Mas ainda assim, parece-me admissível e nesse sentido manterei esta atividade. Ajudar-me-à a manter a minha sanidade ou abrirei aqui uma porta para a realidade esquizofrenica se tomar mais tempo dentro dos livros do que no registo quotidiano meu. É um risco que assumirei com gosto, dado que a leitura já estava presente antes. Percebi a importância de manter certas rotinas, que a estrutura do dia e o trabalho me conseguem distrair desta ausência. Daí, elaborei uma tabela de atividades com horário e cronómetro para me alertar dos tempos. Neste momento não sei se estarei a ficar obsessiva com o tempo. 

Dia 7

Mandei o computador pela janela fora. A tentação pela sua presença era demasiado inquietante. Sofro agora de insónia, acordo várias vezes durante a noite para comer ou fumar cigarros e uma angústia aterradora começa a contagiar-me os sentidos. Para contornar ideias suicidas comecei a estender o tempo de passeio do cão. A ideia é cansar o corpo para que a mente se cale. Até à data nenhuma visita registada. Mas chegaram cartas de contas para pagar no correio. 

Dia 12

O meu pai esteve cá em casa. Preocupado com a ausência telefónia. Contei-lhe que tinha tido esta ideia de clausura, expliquei-lhe as razões e pareceu escandalizado, chegou a insultar-me por não poder dar-lhe notícias minhas e que isso só iria acrescentar uma preocupação à sua vida. Disse-me para me deixar de disparates e dedicar-me ao meu trabalho, que por este andar ainda iria por água abaixo. A propósito, sou ou era webdesigner freelancer, neste momento não tenho ferramenta de trabalho porque a mandei pela janela fora, nem estou contactável para novos desafios, nem podia fazê-lo porque me retirei da web. Deveria ter pensado nisso mas na altura foi como foi. Tenho pensado sobre o assunto. Escolhi esta profissão como podia ter escolhido outra qualquer, embora a minha queda para os computadores, os jogos e a clausura desde sempre se tenha verificado. Parecia-me algo fácil e minimamente criativo, e o facto de trabalhar em casa permitia-me fazer os meus próprios horários. Todas essas decisões me levaram onde me encontro hoje. E todas elas poderiam ter sido evitadas se tivesse uma maior escuta de mim mesma, agora compreendo, na altura não fazia ideia. 

Dia 16

A rotina instalou-se e o seu pensamento sossegou. Dos passeios do cão passou a passeios espontâneos pela cidade, andar só pelo prazer de andar. Conseguiu visitar amigos e isso devolveu-lhe a socialização de que necessitava para recuperar algum equilíbrio. Surpreendidos, eles próprios concordaram que era urgente recuperar a humanidade das relações mas que eles por eles não estavam dispostos a isso. "Muito corajosa que tu és, ou então louca, mas só tu para teres essas ideias". Ideias engraçadas mas para os outros. "Não precisavas de ser tão radical, podias manter o telefone" ao que respondeu "Quando eras garoto usavas telemóvel?" ao que responderam "Mas havia telefone fixo" ao que respondeu "E era preciso para alguma coisa?" ao que responderam "Não, apenas para falar com alguém de longe, era mais os pais que ligavam para os pais deles". E a conversa foi-se estendendo em argumentações que só lhe davam mais força para manter a sua convicção. Era importante encontrar uma outra profissão. E para isso, era necessário conjugar as oportunidades de trabalho com aptidões e currículo. Criar uma nova vida numa página real, era uma tarefa que agora, agora já conseguia ver como positiva, conquistando a todo o vapor terreno contra o desespero e a dependência de antes. 

Dia 25

Descobri que tinha jeito para costura quando decidi redecorar a casa a partir de material que já tinha, e cortando e cosendo foi tudo a eito desde cortinas a capas de almofadas. O acto de coser transmite-me uma calma inexplicável e o facto de no final conseguir tocar o objecto, sentir a peça pronta é a aproximação ao real de que necessitava. Assim, fui ao centro de emprego e procurei por empregos na área da costura, pedindo pessoas sem grande técnica ou experiência. Encontrei trabalho numa pequena loja de arranjos rápidos. Lá trabalham duas senhoras mais velhas. São seis horas de trabalho por dia e um salário minimamente confortável para o básico.  Sinto-me mais pessoa do que antes. Consegui que os meus amigos instalassem a rotina de nos encontrarmos num café fixo sempre ao fim da tarde, quem pode aparece nem que seja para dizer olá. Coisa que era hábito fazer-se quando eramos garotos lá na santa terrinha. Depois da escola, o café. E não era preciso combinar nada, havia sempre alguém lá. Isso e a esquina da rua, mas na esquina confesso que já não é bem para a minha idade, muito desconfortável. O que mais mudou? Comprei uma máquina fotográfica de rolo, estou a fazer um album real de vida, as caminhadas mantêm-se o que me dá uma robustez física mais simpática e o acto de passear faz-me bem, passei a comprar o jornal, gosto de lê-lo na esplanada antes do trabalho, escrevo cartas agora para os meus pais, penso que contribuo para a longa vida dos correios do nosso país. 
A vida está a melhorar, foi muito doloroso fazer este corte. Ainda hoje tenho momentos em que me apetece entrar numa loja de indianos com computadores ou naquilo que se chamava há uns tempos cyber café e que hoje raros são os que ainda existem. As salas de chat também já só em alguns contextos académicos, os telemóveis de última geração arruinaram esses negócios porque afinal hoje toda a gente tem um cyber telemóvel. Aos poucos sinto que fui capaz de mudar o meu mundo e acredito que isso possa influenciar outras pessoas a fazerem o mesmo. Ainda sonho com o mundo como ele era antes. Sim a tecnologia tem vantagens, não sejamos hipócritas, mas deve ter limites e esses limites, só nós, pessoas podemos impô-los. 

P.S. A escolha da profissão para este pequeno texto nada tem de ataque pessoal à mesma e lamento que a forma de divulgação do mesmo necessite dos mesmos moldes que critico acima.