Nota ao leitor:
O relato poético que se segue, segue à linha o cenário mas carecendo de investigação jornalística tudo o mais é ficção..fica o retrato aos olhos do poeta.
Dedicado à minha avó.
A Aldeia do PVC
I
no acender das luzes sob o pano tétrico da cidade
os pássaros esvoaçam como morcegos em volta da lâmpada
assim dois entardeceres, uma união extra terrestre de solidão
é ensurdecedor o cair da noite lento as cores desmaiando
e os pássaros voando em voltas emparedadas
agora mais que nunca, em silêncio, e voam com tanta energia
que alguns batem contra as janelas caindo no passeio esborrachados
desconcertante como o raio da bicicleta que chia subindo a encosta
sentada num banco de madeira uma velha de olhar quebrado
conta e desenha os voos aleatórios ou os anos que lhe doem nos ossos
do outro lado da margem, na aldeia do PVC, sentada no mesmo banco
no seu quarto de micro jardim detalhadamente cuidado como um bonsai
outra velha, de olhar infinito, virada de costas para a falésia
talvez cansada de uma paisagem extasiante, as gaivotas frenéticas
atrapalhadas na maré cheia, os barcos que não chegam, o peixe que não cai
na rede mais estreita da miséria, cada lote de pedaço de vida
conta a sua história em surdina, no silêncio da queda do dia
há 50 anos esta aldeia não existia, se foi criada por recriação
depressa se proliferou por necessidade ou por infortúnio
uns de férias, outros reformados, as caravanas foram estacionando
e ficando e outras, casas de chapa branca, mais tarde imitação e madeira
umas dir-se-ia quase de luxo outras verdadeiras lixeiras
as bandeiras anunciam que a A32 é uma casa portuguesa
a pantera negra esposada no telhado de zinco e a águia no bico da face solar
há para todos os gostos, micro regas para micro pedaços de relva,
canteiros e flores de plástico, estruturas para baloiços e churrascos
pequeníssimos lagos, o menino que faz xixi de pedra, o cão que ladra
o gato que foi proliferando em muitos gatos selvagens e o mar
sempre o mar de companhia rebentando na fúria da falésia
que lentamente se vai decompondo em areal e grutas e dunas
-tá a reclamar de quê pai? fica aqui com uma casinha à maneira
-se um dia chegasse a velho não me importava nada, vá vá lá jogar
os compadres tão à espera no tasco da Chica
Quando se entra nesta aldeia parque recreativo sente-se que é muito mais casa
do que qualquer estância de férias...talvez um lugar onde se é deixado
longe de tudo, numa pequena dimensão aquele que seria o sonho de muitos
hoje é a casa anual de outros...novos, velhos, habitantes do PVC
muitas são as casas que anunciam a ferrugem quer pela humidade marítima
quer pelo tempo da degradação da vida
as estruturas dos balneários estão arranjadas mas no pavilhão central é notório
o tempo, alvo de crescimento sem doma, alvo de falta de investimento
também o espaço se foi proliferando, duas grandes piscinas na zona sul
cortes de ténis, zonas de churrasco colectivo, tanques de lavar roupa
lavagem de carros, supermercado, cafés, e muitas bicas de água
porque nunca a água poderia faltar numa aldeia plantada à beira do mar
II
-pai, o pai precisa de andar, vá lá baixo à tasca. Olhe a Ti Jacinta ali na frente, tá na mesma.
-sinto-me cansado. cansado de não fazer nada.
-tão mas o pai tá velho, queria fazer o quê? O mar não é pra velhos com artrites e diabetes.
-merdas, os outros andam lá e eu aqui armado em finório doutor.
-doutor? oh pai nã me dê graça...os doutores estão nos condomínios privados...mas o pai aqui tem uma casinha à maneira, vá dar uma volta..precisa de mexer essas pernas, olhe pra esses canivetes...
-varas..já me tremem como varas...
Assim se chamava a nossa velha do B33, Jacinta. Jacinta Dias Ferreira tinha outra história. Nunca fora de boas falanças com a nora, desde que o filho se casara contra a sua vontade porque podia ter sido doutor em vez de emprenhar a rapariga aos 19 anos. Ficara-lhe entalado esse desgosto e mais o homem que lhe falecera de tumores vários. Havia uma história simples. Aqui a trouxeram um ano para passar férias, tanto foi o frenesim do costume que a nora lembrou-se de perguntar quanto custaria uma daquelas casinhas tão giras brancas de latão. Uma assim virada pró mar, ai não essas são mais caras, uma assim atão baratinha, pequena, é só para a sogra...não fazia já intenção de voltar a passar férias algumas por aqui mas a sogra sim, passaria o resto das suas vidas, aqui plantada de férias. Jacinta já nem se recorda bem do episódio. Calcula que lhe terão feito uma conversa de sonho. Convencida por castigo, sem outra alternativa e pensando já que seria bem pior num lar, cedeu e ficou. Uma semana mais tarde o filho voltou com muitos dos seus tarecos e até o tareco peludo. Até o gato havia sido repatriado. Fazia-lhe alergias, dizia a velhaca da nora que nunca prestara para mais que parir. Aqui estava também parida a sua grande dor, ficaria longe dos netos, sem poder vê-los crescer, os netos que tanto adorava. Todos os anos a espera do ano inteiro pelas férias grandes. Jacinta nesses primeiros anos acompanhara a família de férias. Passava os meses anteriores a preparar autênticos cabazes de açúcar, gulodices que faziam as delícias dos netos durante todo o verão. Claro que isso era um empecilho na hora de arrumar a carrinha para partir. Isso e mais as mantas que a velha sempre insistia em trazer atrás, não fosse fazer frio e não estarem devidamente acomodados, isso e as mercearias, os queijos e os chouriços, a saloiada toda que tinha de vir atrás caso não fosse o de passarem fome, isso e os ovos, que ai o que seria de um pequeno almoço sem ovo da galinha do campo, os ovos eram uma tragédia, metade partida no caminho nas curvas e contra curvas de uma carrinha já sem amortecedores, isso e a própria velha que toda ela era já um empecilho, porque a família aumentava e já não se cabia na dita carrinha. E o filho de coração apertado mas cedendo à nova cabeça da família, viu como um alívio a ideia da aldeia do PVC.
Pois nessa semana o filho voltou deixando-lhe os seus objectos, comida, que claro não lhe agradou pois era do supermercado - tão eu aqui não posso criar galinhas mê filho? - nã mãezinha, nã pode, aqui só se podem ter animais de companhia - atão mas as galinhas sã tã nossas amigas...
Nessa primeira semana ainda a encontrou em fase de incredulice, mas com o passar do tempo, o filho ia trazendo remessas maiores de alimentos, deixava dinheiro para que se habituasse a ir ao supermercado da aldeia e com esse passar do tempo visitava-a mês a mês, de seis em seis meses e por fim uma vez por ano, já nem trazendo os netos. Jacinta perdera tudo mas ganhara no consolo de quem espreita de fora o seu peito, uma nova vida e a ela teria de habituar-se. Mas nunca isso acontecera, os anos passaram e cada vez mais o seu pouso era aquele banco no seu micro jardim que carecia de mão de obra. As ervas haviam tomado as janelas e o seu lote mais parecia um grande bosque de escuridão e silêncio. Ti Jacinta era conhecida pela má vizinhança como a bruxa velha. E de facto quem passava por aquele lote e se cruzava com o seu olhar vazio, arrepiava-se de abismo de morte. A mim doeu-me qualquer coisa de só cá dentro. De fim de tempo e apocalipse humano carência. De fim de elos e toda uma espera dolor.
III
-oh pai já viu o que aqueles maganos andam pra li a montar no telhado...que raio será...parece uma varanda...olha agora uma varanda pra falésia...o Sô Vitor ainda se mata por ali abaixo. Aquela gente tem memo a mania das grandezas, tão não se pode construir pós lados, constrói-se pra cima..olha que ideias...
Do lado norte já bombava a aparelhagem em estéreo, há muito que o segurança desistira de por aqui impôr grandes normas, havia toda uma organização anárquica que ás vezes se resolvia à pancadaria. Na recepção tudo parecia organizado e legislado mas por estas pseudo ruas pombalinas a vida era outra. Passeando pelo parque escutavam-se diferentes línguas, mas maioritariamente francês e português.
No T20, nesse pedaço de terraço, a família Borralho já se instalara para as suas habituais férias de Verão, estavam todos sentados cá fora conversando sobre o que haveriam de fazer por estes tempos dado que este ano estava quase tudo encerrado devido à maldita peste que se instalara por todo o lado. Este lote trazia-lhes uma falsa segurança de isolamento da grande cidade, aqui podiam esquecer o perigo e a morte que proliferara durante os últimos três meses pelo mundo. Aqui estavam esperançados de poder descansar as suas cabeças, as miúdas poderiam brincar ao ar livre, tomar banhos no mar e as máscaras de protecção só seriam usadas em caso extremo de necessidade de usar o balneário público. Estavam por isso instalados na ala norte um pouco mais distantes das colunas do pumtstaa dos barraqueiros do R12. O R12 tinha muito má fama na aldeia. Não se sabia bem ao certo quantos lá dormiam, se é que dormiam porque infernizavam de barulho pelas altas horas da madrugada, quando iam para a praia fazer fogueiras era uma noite santa, mas pela praia a vigilância era agora outra, não eram permitidos ajuntamentos. Por isso com sorte entre as 5 e as 7 da manhã os vizinhos conseguiam pregar olho. Também se falava que ali vendiam droga e mais sabe-se lá o quê. ás vezes pegavam-se uns com os outros e quando a coisa era mais séria vinha então a polícia de fora.
Mas pagam a anuidade e tinham um contrato daqueles vitalícios que a nenhum deles pertencia.
Ao lado da família Borralho vivia um casal dos seus 70 anos, velhos mas muito frescos. Todos os dias o Sr Afonso se levantava às seis da manhã para ir para a fila do supermercado para se aviar de pão. Pelo caminho fazia a sua caminhada aproveitando ainda a frescura da manhã. Os Verões estavam cada vez mais quentes e abafados e eles já não aguentavam muitas horas de praia. Vivia-se mais no alpendre ou dentro de casa, que já tinha uma espécie de ar condicionado dentro dos watts permitidos frente à televisão, sempre altíssima porque a Sra Antónia estava surdíssima. Mas liam o jornal que vinha acompanhado do pão e faziam os seus grelhados, e muito amigos ainda, passeavam pelas ruas do parque, pela borda da piscina e em dias mais frescos iam até a pé até à aldeia, a verdadeira mais próxima. Passavam aqui a maior parte do tempo do ano, normalmente Dezembro e Janeiro regressavam à tua terra porque lá a casa era mais quente e aproveitavam para ir às consultas anuais e passar o Natal com a família que ainda vivia no País. Foram emigrantes na Suíça. Ela trabalhava nos quartos do hotel, tinha um álbum de fotografias com as recordações desse tempo. A farda de folhos brancos e o vestido preto, o quarto de casal onde tiveram a primeira filha, os jardins do hotel nas belíssimas montanhas. Aquele álbum era a sua relíquia de memórias felizes. Trabalharam muito, amealharam mas foram sobretudo muito felizes um com o outro. O Sr. Afonso trabalhava na cozinha, tinha boas mãos para amanhar a carne e para o tempero, sabia dos segredos da cozinha portuguesa e por isso foi fazendo carreira chegando a chefe de primeira. Quando a primeira filha começou a crescer perceberam que o quarto que lhes pertencia no hotel era muito pequeno e resolveram abandonar esses trabalhos, para algum desgosto do Sr Vitor e procurarem outra vida na cidade mais próxima. Ele passou dos amanhos da carne para aprendiz de fábrica de chapas de carros e ela empregou-se numa casa como cuidadora de meninos finos. Alugaram uma casa modesta e assim se passaram vinte anos. A filha cresceu licenciou-se em enfermagem, casou-se por lá e por lá vive. Eles regressaram para viver a reforma no seu país, comunicando na sua língua das pataniscas e do vinho tinto, achavam eles. Foi a Sra Antónia que escutou de uma vizinha que nesta aldeia se estava muito bem para a reforma e da falácia da vizinha a adquirirem o seu lote, foi pouco mais de um ano. Estão descansados embora aquele sonho de regressar tenha ficado em águas de bacalhau porque por aqui havia muitas gentes diferentes e muitos emigrantes mas na verdade, já pouco de fado e bacalhau. Aliás o bacalhau era uma relíquia que era preciso encomendar, quem tinha carro era diferente, mas o Sr Vitor já estava mal da vista e há uns anos que o vendeu.
-Vivi (assim o tratava), já viste isto, agora dizem que o vírus já andava por Barcelona antes da China
-agente sabe lá mulher, eles contam e remontam, parece uma telenovela...e agente aqui perdidos...já deve andar por aqui e pior agora vêm esses miúdos todos para as tendas, ainda bem que é lá para baixo.
-ah mas a Filipa da recepção já avisou que este ano a lotação dessa malta está apertada...oh Vivi então hoje não andam com isto para a frente..queria ver a novela..ai é tão linda esta dos pescadores...e a nossa Luísa como estará lá pela Suíça? Ela já deu notícias?
-não..ainda é cedo...ela costuma ligar às dez...credo mulher mete isso mais baixo, fico maluco com essa barulheira dos anúncios
-não sei pra quê, aqueles barraqueiros já ligaram as colunas...preferes aquela porcaria é?
-preferia os pássaros era o que eu preferia...
-pois, pois, também eu...que raio estávamos tão bem na Suíça
-dizes tu...eu cá prefiro ainda assim aqui e olha caso a senhora esteja esquecida, isto foi uma grande ideia sua...aos anos...aos anos
-ai meu querido Vi estamos velhos...que será de ti sem mim?
-será uma grande rambóia....rindo-se
-malvado velho - e beija-o ainda com aquela garotice de meninos de namoradeiras e janelas indiscretas
IV
Em cada braço leva um cão toy...autênticos brinquedos de colo. A menina tem um laçarote cor-de-rosa e o menino um clássico laço ao pescoço preto. Os cães brigam-se numa chinfrineira pela atenção da dona que procurando um lugar à sombra faz sinal ao rapaz da esplanada.
-tem de lá ir D. Berta, isto agora são novas regras.
-essa é boa, desde quando rapaz? Isto todos os anos inventam cá pra cima, então e os meus bebés?
-deixe-os aí amarrados que eles não vão longe, soltando uma valente gargalhada
-ri-te ri-te, aqui há tempos roubaram o chihuahua da Adelaide.
-não me diga...mas para que quereriam eles o bicho? Mas foi cá dentro?
-então não foi, ela foi à casa de banho do parque, deixou-o amarrado lá fora, quando voltou nikles de cão...nem sombra
-ah, não soube de nada
-a mulher anda por aí aos caídos de tristeza...eu bem sei o que é..ou melhor, não quero saber não..só de pensar..os meus bebés lindos..ai meus amores..meus docinhos
Na mesa do lado sentou-se uma rapariga com dois rapazes mais novos, talvez irmãos. Trazia um top amarelo uns calções pretos por onde as nádegas se estrafegavam para fora e umas unhas amarelas gigantes em bico. Aquelas agulhas seriam armas em dia de confusão, talvez dessem mesmo jeito para limpar os ouvidos mas as rapariga olha para a mesa e comenta com os miúdos que não largavam o telemóvel tocando funanás electrónicos
-isto está tudo sujo, vou lá dentro dizer a ela para vir limpar a mesa
-vais pedir o quê?
-caracóis e um tango, vocês querem mais alguma coisa?
Os rapazes negaram com a cabeça, estavam a terminar os copos que traziam o que parecia ser algo entre uma cerveja e um sumo, talvez uma dessas novas cervejas artesanais.
Nas mesas laterais encontrados à parede estavam quatro velhos a jogar dominós, a camisa deixava quase a nu a barriga, os calções todos da mesma fábrica e os chinelos sandália idênticos, Dois deles com meias. Um deles com o boné de sempre o outro com uns óculos fundo de garrafão. Dir-se-ia que era o fardamento mais comum de verão nesta faixa etária, variavam talvez as cores, mas a esta hora da noite pouca diferença fazia. Esta zona do parque estava estranhamente sossegada para o pingo do verão...
-o ti manel não vê que essa não pega ca outra...essa são três..ó homem componha os olhos...
-cala-te lá velho jarreta..tens a mania que és todo janota tens...
-ah já viram que este ano estão a arranjar o coiso do ténis?
-nã sei pra quê..só lá vão os francius e este ano ainda nem meteram cá os cotos...
-pois também não sei...vai mais uma?
-eu nah...a Maria depois da-me cabe da cabeça por causa da gota
-ah olha a gota..agora com a doença dos ricos..tá fino o homem tá
-parvoíce homem...vocemessê só diz disparates
-há que alegrar, há que alegrar...tão não soube do Sô Vitor? Aquele da varanda de luxo...parece que o homem se suicidou mesmo...recebeu umas notícias más lá da terra e atirou a corda ao pescoço
-oh oh tão ainda à bocado estava a passear o cão...você aldraba cada novela...queria ver o homem morto olha agora..isso é inveja homem...isso é inveja...deixe lá as vistas do outro
-ai..que eu caia aqui redondo...foi a miúda da recepção que estava a comentar..atão veio a ambulância e tudo aí à tarde...vocemessê devia tar a dormir a sesta é o que é
-ah pois sim...eu vi o homem todo roxo...ih o que era aquilo..parece que só foi encontrado de manhã..deve ter sido pela noite
-atão é mesmo verdade? olha olha há cada uma...raio do velho...também não lhe desejava tal definho
O relógio acima da recepção batia a meia noite, as esplanadas estavam a fechar e junto à cerca lá ao longe vinha um casal, muito bebido pelo tom da conversa...vinham a discutir estética e ao virar a esquina do portão do parque escuta-se o rapaz a gritar
-tu não percebes nada do que eu digo...ouve-me!
e a rapariga já enervada falava baixo
-opá fala baixo...eu não sou surda, eu já entendi o teu ponto de vista
e o rapaz gritava mais alto - mas ouve-me! Tu não percebes...o que eu disse foi que não me importava nada de ser velho e ter aqui uma destas casas caso...caso ( e berrava bem alto) não tivesse outra coisa melhor
Os velhos levantaram-se para ver o ocorrido.
-eu já percebi isso - dizia ela esbracejando - mas fala baixo que ainda ficas cá fora, eu estava a falar de estética, estética percebeste? isto é tudo feíssimo? ainda se construíssem as casas de madeira! Eu sou uma pessoa de estética, lamento ou não lamento..não é uma questão de snobismo é uma questão de beleza aos olhos. Que posso eu fazer? Fui educada assim..a minha mãe...tás a ouvir...não suportava uma garrafa de plástico na mesa, usávamos jarros de vidro.
Um dos velhos esticou mais a cabeça e comenta para os outros
-oh oh querem lá ver que se pegam..estes jovens não prestam pra nada...tão a falar de quê? Tética? Que é isso?
Os outros encolheram os ombros e começaram a arrumar as peças.
A rapariga calou-se e o rapaz lá seguiu atrás dela cabisbaixo cismando nas suas ideias. Amanhã seria outro dia. A culpa era da lua...devia ser...noites de lua cheia ela dava-he pra aquilo.
V
A aldeia levantou-se com um grande alarido. Perto dos balneários n5 escutavam-se gritos. A Ti Jacinta ia a caminho do pão com o seu saco de rede e o seu cabelo longo esgrenhado. Parou por momentos perto da situação observando com o seu olhar de sempre. Três mulheres berravam umas com as outras a ponto de se arranharem, dois homens tentavam acalma-las, com tanta berraria era difícil compreender o que se passava mas dado que estávamos perto da zona da entrada o segurança veio ver o ocorrido, mas veio com toda a lentidão de quem espera que tudo se resolva por si mesmo.
-sua vaca...eu bem vi ontem tu a saíres da minha barraca
-quê...tá maluca a mulher..eu tenho marido
-ah pois tens..mas nã te chega...agarrem-me que eu vou-me a ela...agarrem-me que é hoje
Não faltou muito para que os homens que estavam a tentar separa-las também eles se pegassem ora porque estavam a ofender a mulher do outro ora porque um dos dois era cornudo. Ti Jacinta inspirou fundo e antes que levasse com algum encontrão colateral seguiu em direcção ao supermercado.
Já vinham pessoas a correr para cuscar o ocorrido mas ela seguiu na direcção contrária. Poucas coisas mundanas lhe interessam, para falar a verdade, Ti Jacinta era menos mais que um vegetal que caminhava quando precisava de alimento ou libertar o seu excremento. Não tinha mais a sua alma consigo. Seria isso que tanto atormentava quem para ela olhava para dentro dos seus olhos opacos. Nada. Não se sentia existir mais nada lá dentro. Os mais religiosos chegavam a benzer-se quando se cruzavam com ela. Inventava-se muito. Que fazia candomblés lá para a praia de noite. Mas na verdade ela só saía de casa para ir ao supermercado.
Estava então na lenta fila do pão quando vem contra si...
-ai oh vizinha desculpe não a vi no caminho
Raramente alguém falava para ela. Por isso olhou-o indiferente compondo o casaquito.
-a vizinha desculpe sim...(e tocou-lhe na mão) - ela inquietou-se e proferiu uns grunhos meio baixo
-não tem mal. Deixe-me
Há muitos anos que se espreitam frente a frente por entre as gretas do arvoredo da velha. Primeiro veio ela, muito depois chegou ele. Nos primeiros dias, curioso velho viúvo ainda tentou aproximar-se do pátio dela com uns bons dias tímidos mas nunca ouvira resposta acabando por desistir. Ficara sempre a vizinha no canto do olho. E não, não era ao acaso que quando ela vinha ao pão ele seguia atrás, só para espia-la só para contempla-la só para se entreter de suspiros. Ela tinha algo de selvagem no olhos, aos seus olhos. Acreditava que era o único que a via dessa forma, especial. Mas aos olhos dela ele nunca existira, aos olhos dela já nada existia que valesse a pena olhar com olhos de ver. E não, não era ao acaso que a seguia portanto, mas foi por desleixo de tontice que se aproximou demasiado, talvez desorientado pela confusão do balneário, tropeçando nela.
-a vizinha sabe quem sou? Sou o seu vizinho da frente - esticou a mão - João, ao seu dispor. Mas a velha não reagiu - a vizinha desculpe, vejo-a muito sozinha. Eu se a vizinha quisesse arranjava-lhe o jardim, era assim uma maneira de me entreter sabe..e sempre ficava mais bonito.
O que ele na verdade queria para além de pode estar mais próximo dela ganhando esse tempo, era também poder vê-la melhor sem aquelas sebes todas emaranhadas. Mas a vizinha reagiu apenas com um encolher de ombros. Isso para ele bastou-lhe. Era tudo, era mais que nada, era maravilhoso. Uma faísca incendiou-se-lhe no olhar - Então logo depois da sesta passo lá. Não foi uma pergunta por recear que ela recusasse. Afirmou assim a sua visita e ela não contestou.
Nesse final de manhã, Joaquina regressou a casa com o saco cheio de pão. Tinha comprado marmelada e chá. Ocorreu-lhe que o seu devia estar podre de velho. Ao chegar a casa não avistou o vizinho. Já havia dentro de si algo novo, não sabia explicar o quê mas estava a acontecer sem que pudesse saber bem. Deixou o pão na mesita da cozinha e olhou em volta. Estava tudo num desmazelo doentio. Ela própria refletida no vidro do armário. Um retrato adesivo da morte. Alguém que nem se reconhecia de tão gasta e esquecida de si mesma. Levou as mãos ao cabelo e levantou-o enrolando-o no topo da cabeça. Prendido com ganchos parecia outra pessoa. Uma pessoa. Foi até ao quarto e abriu o armário das roupas. Já nada lhe serviria, tinha encolhido, mirrado o corpo dentro da pele. Retirou um vestido de corte direito meio esverdeado escuro. Procurou por uma fita e atou-a à cintura deixando a bata rota em cima da cama. Olhou-se então no espelhito ao lado da cama.
- Que disparate, que disparate tão grande...agora nesta idade. Que parva que sou - E procurou por debaixo da cama pela sua mala de viagem. Sentou-se ao lado dela em cima da cama. Pensativa. Foi como se tivesse aberto o peito, um fecho por onde começaram a sair todas as coisas dolorosas que se encontravam lá dentro cristalizadas. E chorou, muito. Como não sabia fazer há muito. Poderia partir. Poderia partir na carreira dos veraneantes que passa junto à praia. Poderia ir visitar um dos netos ou...qualquer coisa como fugir dali para outro lugar. Mas que lugar? Não havia mais lugar para uma velha como ela e o mundo lá fora da aldeia do PVC era um sitio hostil. Arrumou a mala novamente debaixo da cama e foi arrumar a cozinha. Depois sentou-se no seu banquito de madeira e esperou. Parecia que agora, agora havia algo mais para esperar para além do voo emparedado da vida.