terça-feira, 22 de dezembro de 2020

peixe morto

 
talvez
os tempos nos tenham baixado a proa
a mosca presa na teia ardilosa da metrópole
nem pássaros ou flores absolutos elos de dor
uma ideia de eclosão frágil do mundo
à roda do sereno retomar das aves 
o vocábulo prenho
escondido como bruxos apocalíticos
na beira de um poço seco e fundo
atira-se ao chão o que nos leva a reboque
a mulher terra um cocheiro desvairado
habitamos um pátio de galinhas
o ovo espreita no parapeito sem nascer de facto
acidentes que a goela socalca ao fundo
um sentimento de estar sempre atento
flores de beladona ao deus-dará
como se as manhãs já fossem tardes
e o envelhecer por três-vinténs fosse um disparate
no canto mais obscuro é lá que as gatas
têm os seus próprios filhos
braços telepáticos de amor incandescente 
o timbre dos elétricos volumes agudos
o coração dilatando de angústias de adeus
o fim da seiva abrindo as portas da grande selva
o felino solitário que se aventura pelos telhados
coisas banais que constroem o imaginário
a quem bebe sofregamente pela boca da verdade
e que verdade mais crua que o deglutir de um filho
para o proteger da enfermidade do vazio
se retirássemos o fundo e a mosca pudesse cair
um lugar de passagem lentíssima e imperecível
podermos vibrar conectados com as paredes do espaço
espécie de gaiolas de pássaro que não voa mas plana
pássaros ou peixes estáticos trementes e anulados 
é como se fossemos agora a própria gaiola
na aceitação de não haver mais pássaro ou peixe
haverá peixe no fundo do poço?
não é essa a paz que numa espécie de nó 
uma labora antiga e até agressiva
um céu de nimbos quase sufocante
o espelho do próprio espelho 
nos desconfia do quieto?
peixe quieto está morto
é que a miséria tem o seu próprio alimento
para os miseráveis do vento
e a dor tem a sua íntima presa
para os comiserados do tempo
tudo próprio do seu próprio lugar de fundo
que se mata mentalmente de boca a boca
                                     de hora a hora
                   de vocábulo em popa pelo mundo
                                          







sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

review do poeta

 

estas ruas dão para Oriente

polígrafos do silêncio que atravessa os antigos prédios 

a noite vê-se rogada de atalhos 

e candeeiros dirigíveis que apagam e acendem 

da janela marteladas de máquina 

uma queda húmida no arranque do carro

que insiste em não pegar na esquina

às vezes parece que as palavras estão gastas

o fio de prumo na asa pomba

esses mesmos glóbulos brancos que por monóculo extasiantes

talvez a vista nunca se canse

-não estão mortos, mas também não vivos

como pardais na linha de água estarrecidos

o teu rosto a quem se deu vida

esta cidade que nos volta costas 

que nos empurra suicida

são as colinas dos injustos

para a benção e misericórdia dos desejos

como quando deixamos a roupa estendida e chove

são montes estacionados em Meca

ou a alma arquitectada no além 

no primeiro andar mora o resistente do fogo

vai às putas deita-se com a calamidade

e quem não perdoa é a cinza viúva 

história...do oculto das paredes

a palavra fundação salta pela janela

traz o processo de arrasto

-me invoca, me invoca que sou fraco

anda filha, anda lá com isso que estou velho

um moinho torto de asco

e a corrupção de carne doente alucinose

alguns de nós deambulam espectros

bumerangues pelas causas nominais

ano após ano, incansáveis

a roupa balança na corda, amanhã está morta 

cada um de nós puxa pelos outros

na imagem de quem puxa as redes no areal

assim, quando se sente alguém ser escoado à margem

uma mão estendida agarra e trás de volta à vida 

diz-se. Que esses desígnios  estão saturados de rima mas esfomeados de sangue pulsante

esse mesmo deus fecha e abre a sua mão 

um fole de respiração combatida

vocábulo opcional a combalida. Melhor para ovelha

então olha-se para o senhor da bengala pé de cabra

pequenos gestos para longos passos de arrasto

pergunta-se o que move ainda o espírito 

que carrega às costas um corpo quase anjo

é tão lindo chegar-se a velho, tão bonito envelher-se

sem fenda, esmola, a alma em brasa lenta

e um jardim repleto de adendas

naquele tempo todos casavam uns com os outros, e quem não casa...viaja

sente saudade das avós, de um último dia 

um dia não calibrado de horas. Eterno.

a sensação de que todas as almas se parecem com petúnias

opulentos pentagramas carnados

é tão quieta a noite da deambulação 

-poderíamos estar horas nisto...

E os seus frutos duplicam, desejo de satisfazer-se no alto

as suas almas pertencem-se.

-é..como se parassemos o tempo

por favor não deixes de martelar no vazio 

de tanto bater...voou








quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

uma casa assombrada

 

é...quando me sento na beira da cama 
arrumada no canto do quarto
quando olho para as paredes
que dia após dia se vão cobrindo de figuras projetivas
melancólicas e bolorentas...
por vezes as casas respiram 
mesmo quando muitos anos depois 
mantendo-se firmes na luta contra o peso atmosférico da morte
casas como castelos de beira de bosque ou pequenos quartos de beira de rio
mesmo depois de vandalizadas, mesmo depois de roubados os vitrais
lá em baixo, nos seus alicerces, a água incessante
mesmo depois, quando os ramos se entranham a dentro
e as raízes rebentam o soalho, o que cresce pelo mesmo caminho
conivente como teia de aranha e enredo
a cabeça uma casa de tetos de folhas delgadas de carência de inverno
por toda a parte borboletas e lagartas, lâminas concomitantes de tempo
a noite escorrega para fora, como se cortinas aveludadas baloiçando 
para fora, é que há todo um movimento espírita interno
como se nos tivessemos tornado mais leves depois de mortos
parte das árvores, faias, agora fungos de beira de lareira cinza
troncos direitos esculpidos pelo vento dos dias seguidos
e lá das águas furtadas, espreitar o mundo atrás da copa inquieta
pedaços de terra mergulhados na penumbra 
é todo um sol matinal que desperta de noite
irrompe como procissão de gnomo ou pequenas criaturas etéreas
é...quando penso na leveza que ignoro a razão 
que não pode outra explicação que não a solidão
ao lugar só da própria casa que fica desabitada
e um lugar desabitado...é...perigoso
assim me vejo encurralada num dos cantos assimétricos
deixou-se ficar um altar de pedra e tudo o que a cal comporta
deixaram-se  acordados pedaços de outros mundos
o contorno dos objetos outrora pendurados com intento
creio no ferimento dessas paredes, a lágrima húmida que se condensa
placas de estuque e portas arrancadas, talvez
fosse capaz de entrar
por meio de uma palavra ou num risco de fumo suculento
na expressão soturna de um estômago vazio 
o movimento lento de uma larva que se vai astutamente compondo
para acolher o bosque dentro de si
Agora...somos nós os intrusos
a sombra negra que penetra no interior que incomoda que aflige
quem por lá mora
é como quando partimos e alguém nos visita a campa
nos acorda a dor suprema da ausência
e nos devora com o horror do vazio
Agora...esse lugar é promíscuo onírico abismal
tão mais fácil o abandono da alma nesse conceito 
que outrora habitava sem jeito...sem grito de socorro
sem cálculo ou fome de vácuo
e rápido como um raio de disparo...poder acordar 
o crânio docilmente depositado num vão de escada
um pulso delicadamente diluído numa beira de fonte
cabelos que se enrolam na fibra da madeira
e a seiva que em força pertence assim...a uma nova nascente

seria uma casa igual a tanta gente...
                                ....gente outra se não fosse a nossa



quarta-feira, 18 de novembro de 2020

na boca do estômago

 

O tempo eternizando na película do elemento
notas arrumadas de pó ao toque engavetado
no obsoletismo a necessidade de transgredirmos
emprestando-se a uma objectiva a alma
pixelizada a cicatriz parecendo curada
e vem-nos até o odor das plantas e dos passos
o bosque capturado no Outono mais esbatido
-Se pudesses ficar aqui comigo, ficarias de facto?
retido no magnético do exacto momento
esse mesmo instante preciso que não ficou
que por ali deambula incrédulo 
creio que nessas voltas ou nesses passeios exóticos
tudo o que se pode chamar de supremo sacro feliz
do ponto de vista óptico: o espanto

e porque do fingimento de que não partimos nunca
essa ópera do malandro trágico soturna 
porque afinal não habitava ninguém nessa urna
é como se sepultassemos uma campa de oxigénio
porque nas alturas tudo se propaga sem gravidade
talvez essas asas sejam de chumbo ou xisto
para nos derrubar de loucura e destroços 
lança chamas de flashes para nos ficarem os ossos 
e em nós peito e bomba de afecto 
...apenas a saudade de intelecto
como começo lento de uma bebedeira de vento
no radiador de um veículo arfante e ambulante
que não permite o movimento ao volante
-recordas-te do homem de palha que espantava medos?
ou da linha dos caminhos de ferro que ardia de espíritos
o grito no berço do animal de espinhos
e o sabor da minha boca que se dissolvia em ácidos
pois a vida é filet mignon com champagne 
e nós comemos o pão que a secura do silêncio amassou
no grande desejo que um dia possa dizê-lo: mais não
que possa sentir ter chegado ao fim da linha 
de um poema de satisfação





sexta-feira, 13 de novembro de 2020

solus peregrinus

 
Dois pés a solo na cadência frenética
de entre pisa sobe desce sufocante despe veste
o voo dos anteolhos furtado 
enganos quando nos cai o acto padecendo
e o pêlo curado e obstinado, ardendo
emparedados em beijos que porventura choram
lábios que sabem a sal e aurora sem redenção
e mais a fundo nessa atrofia de mundo
o purgatório de uma canção
na zombaria tétrica de uma vida raivosa
a folha posta para se devorarem vocábulos histamínicos
a pedra sobre pedra para se fornicarem de vazio
pingos de fogo que crescem em massa cósmica
e em tudo o que nos faz frio

pues porque es divina de noche sirve de manta
a la muerte con una sonrisa

e um tão alto o abismo
num peito curvo de fundamentalismo
foi-se essa ave perder-se

num rombo de pancada feroz teclas marteladas
ocos de bicho como porta dos fundos
no son sino corredores del dolor
de una intensa tristeza sem carne
que zomba para te aventar pelas cortinas da pele
para aterrar com almofadas de limalhas e fel
assim é tão fino e penetrante o rasgo 
na linha da noite mais finda que atravessa como garça 
o lado avesso da paisagem
algo que não possuo mais agarro enquanto mortal
como pode ser alheio este corpo a tal voo
está um homem armado sentinela de nudez
contra a vida descontente clara e evidente 
quien consiente ansí la vida consiente también la muerte
a fogo e ar que a língua custa a apagar
o poder a temperança ou a faca que custa a cortar
pela escotilha do quarto emerso apenas pontos de luz
que antes via como passagem agora secreta

assim estou espaciado
cada molécula granulado pixel amorfo
frenético frenético padecendo de objecto
o coração feito traça na linha desfeita
o entre o vago tempo que nos ocupa
para a virtude de viver sem tempo
fabril em turbinas espirálicas virais 
flutuar sem medidas gravitacionais
criar propósito agasalho para o estival da alma
que um dia o sol nasça espantoso e livre
e em palmos de matéria me perca e viva
suplicante virtuoso de mim vasto
en la tierra queda
e na terra quieta 
que la ausencia causa olvido
que a ausência seja o fluído
in vitro
invicto 







domingo, 20 de setembro de 2020

Olhos repostos em asa

 

a roda dos expostos desenjeitados

está um homem de pedra em rotação 
um homem feto  por habitação de alma
para que lhe baste um grande sonho
-anda à roda, a realidade mata quanto sobra
lágrimas de orfandade
o escuro sem cabos de trapézio elástico 
é como levantar voo no deserto
descarnado, os dedos compostos de ferro
é o cabo do mundo electrificado e pardacento
morro recortado fixo adornado de sede
e  um líquido perfurado de ramos em novelo 
a via sacra começa no momento zero
e há uma 2via na nossa vida, A2, a folha em branco 
cactos imóveis de hálito da luz
bilhas de vocábulo da fonte carregada e na mente 
a tela fresca
ofusca
gritam da carnificina os imutáveis 
nódoa de laivos
a cor da alma feroz
sobre pancadas
dentro de cavernas subabismais
os fios da areia para uma paisagem que morre 
o percurso dos cardumes incansável 
e uma barbatana à tona condensada à asfixia
talvez a armação retalhada de um bocado de terra 
Rendilhada
os cantos de uma embarcação redundante 
e avarenta de raízes 
nasce e morre pedindo por um estado sólido da alma
de respiração boca a boca líquida 
a desova lírica na cauda de uma andorinha 
sinal arrematado
a grande mutação com isco na extremidade 
quero assistir à lota tamborilosa de um negro peixe punhal
mais gordo polvo de alcofa
albatrozes de ruas tortuosas
a ira para a comoda seca ternura 
água empoçada de uma ave que  não pode  ser sua
respinga e fede
a cor avermelhada de uma colcha de pele
por milagre guarniceiro
um vasto campo funerário 
de um céu  compacto
há uma escama uma só escama
necessária para que os braços da ira
cavalgadura traineira da noite 
escama dos aparelhos da rede da Terra
e nós inesgotáveis cardumes 
matem me com dinamite 
mas nunca com um limite
os areais do peixe são a palavra
agarrem me a um cabo fixo
na baía do umbigo
porque nunca serei apenas um aparelho auditivo
Teima o sol bate em cheio
o horizonte é uma linha de trapézio 
onde como crianças baloiçamos
a luz do luar alastra
a malha encarnada no cooperativo do sono
remos para criar estruturas e pedaços de asas 
a cor do barro, ainda as espigas dunas
o arrasto da terra para criar castelos de sombra
um castelo azul revolto e verde
as águas adormecidas com a carga de uma espinha fria
viúvas recém nascidas
no lume da navalha e um pau atravessado
como quem fica de saudade
com os braços no ar
polir, desfazer se num sopro
a luz é fraca e ronda silenciosa
tal como a linha final na ponta da árvore 
uma ilha destacada para pescadores de fora
dramática edificação para zinco de jardins 
quero uns olhos repletos de ingenuidade
perigosa fome de alma tábua navalha
e os dentes todos salpicos de ondas
rasgando a carne suporte do corpo 
o instantâneo piloto cuspido de cristo
e alguns barcos passam
de águas mórbidas 
e sacode golpeando o cais
um cão de beira de cais
que veio em lágrimas 
pedir abrigo do mundo





quinta-feira, 10 de setembro de 2020

um rosto cor de cinza

 

o manobrar do leme por um cão insano
soar a tempestade em tarde de verão

o sacrifício de cordeiros pendurados em cordas musicais

com a força dos músculos de velhos sopros
e sobre pedras bicudas deixar cair a alma
sobre espinhos desvairar para suportar nascer
por ali fora aos coices por acção de ciclones e tormentas
aquando de um único momento e só
uma espécie de vazamento de tragédia
uma grande festa de imensa misericórdia
quando o espírito deixa de resistir e de ombros possantes
a carga espalhada ao chão
haverá sempre manhãs difusas 
para o tempo de clausura e asfixia
o encontro da noite e da chuva, as veias engolidas por mastigar
essa chuva de pregos repetidos
pesada como chumbo 

pegaram-me ao colo
vim a morrer da simples mordedura de um anjo
assim entregue ao sobrenatural
brincando de agulhas numa caixa de costura
e vendo-me partir até a sombra cambaleando
até ao centro do coração sugado
a simples metamorfose de um passado
uma febre de tétano 
a coluna tubular de ocos espaços onde me abro
de arcadas e armação de pássaro
sem mais delírio ou agonia

como cornos de bois as mãos que me lavam
o pecado a flutuar-me na carne e no espírito
para ser entregue a um peito materno
um peito de paredes de vidro e sonhos reais

tal um cavalo incendiado que corre para extinto
a grande noite ácida e intemporal
repassada de choro e sorriso letal
essa noite de delírio de morto

abrir os olhos para a busca de pássaros no alto
entidades que se rasgam do tecido de azul
a beleza das coisas que se tornam concertos
trata-se de um alvorecer que desliza da ampulheta 
uma clepsidra que desliza de uma lágrima
o sangue suíno que escorre nas horas
um grande alguidar onde se amanham as formas
e o lugar do corpo suspenso numa simples brisa

todo o corpo se faz fluir ou florir em memórias doces
abertas as comportas  da grande viagem
a hipnose de um gato que dorme 
e a dor de mutação de guerra 
porque há um semeador das perturbações do mundo
um cacto plantado em milhões de novos frutos
que lastima o vazio das colheitas perdidas


a vida nas filas de espera
um bezerro em desespero 
e onde qualquer eu estava só de passagem








domingo, 30 de agosto de 2020

A linha laranja



havia paisagens alagadas de sol
rijas de céu impetuoso de horizonte 
e secundárias entre colinas intermináveis 
a luz vai se reduzindo para lá dos baldios
graduados pelos parques colaterais de um fundo de cinzeiro 
uns por trás dos outros, periféricos 
como bairros à beira de cidade tecido 
avançando de povoação de passagem
a vida é tão estranha de voragem 
avivando de cores à luz de candeeiros
uma pensão familiar segundos depois de explodir 
duplicai vos nas portas dos espelhos
deixai um passaporte confiado de chaves
e uma tarde aberta em direção ao porto
somos velhos prédios portuários subúrbios 
de encantatória acumulada extensão sem forma
em bombas de gasolina de estrada forma
imaginei penosa essa pensão uma sala de restaurante
alguém saído morto
e um quase ódio fundido 
depois o sol esbatido na caixa registadora 
o balcão de ruas desertas
contrariando as malas
entre o mofo e a alfazema de fundo de armário 
Há tanto labirinto de fundo de armário 
e o banho da claridade da manhã 
a água caindo na impaciência imaginada 
actividade de hóspede enevoada ao vapor
e todo o precipício da tarde...
sinto impunidade acerca deste vapor
entregue e consumado natural
á identidade sombreada de qualquer riso democrático de um ser
paredes cegas portas desconcertantes 
e um jardim arrepiado de sequências de escamas de alma
e de subitamentes encontros de bem estar


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Escutei atenta mente

 telegrama de obsessão do ocaso parasita

a noite por estrear monumental 

cálculo da demora num post scriptum

no exagero de certas maneiras já o pranto

o que nos mantém afastados de lugares desesperados

para cá ficar o resto da vida instável 

talvez as coisas nunca cheguem a ser rasto

porque há o consumismo varrido da ânsia 

depois ser se vendaval esbatido

vigia se a morte como ave de rapina

a orquestra quieta no salão de baile

queimados do sol e ainda por atingir o horizonte que se achava preso realizado 

a técnica de andar à roda 

onde uma cicatriz que se descose na linha 

para cantar certos duetos de demência 

despiu se, atirou os sapatos ao rio

rasgou se aos poucos na pequenez do escárnio 

e no infalível abandono da composição 

para entrar no estupendo airoso e fictício 

massa analítica pneumática 

os botões ao peito sem mais arranjo

o relógio de pulso parado

no combate à paralisia de um rio já seco

depois um avião pessoal imaginário

pessoas rindo ou gritando no campanário 

por cima das mesas e das nuvens

um sítio em altura para pessoas sem morada

muro infame

(somos uma história comprida em poucas palavras)

trapos arrumados no chapéu do ceguinho

como se desligada a bateria de um velho ditado

e o insucesso do mundo 

debaixo da roda de um camião 

talvez criptografadas  para uma metrópole de linguagem corrente

mas há coisas que não têm explicação 

como o respirar de um incêndio aperto

dou comigo a pensar no inevitavelmente não aproveitado

aquilo que nem as chamas quiseram suas

se pagaria mais tarde 

seria uma figura em pose não artística 

numa quadra festiva que nunca deixou saudade

dizia para os peixes atordoados 

-não sei se falhei na última carta 

ou se a mão foi afinal sempre fraca 

gargantas roucas guinchos infernais

o ressoar lúgubre das velas queimadas

aquela ideia de enorme paredão 

para se entoar um fim afinado.

DEPOIS engoliu um trago demasiado

falei lhe das passagens para o outro conceito 

o mar abrindo o peito a essa velha bruxa de rio

e começava lentamente a bebedeira...

para lhe pendurar por uma corda

onde lhe servisse de forca

o cadáver 




terça-feira, 25 de agosto de 2020

intra Tejo

 


como um silêncio de lápide aberta

ou lugar escavado por ocupar

um alicerce de terreno por erguer

na casa por crescer, há um pós vida

que alguém ainda há-de...

corrompido por altifalantes serpenteando

as sementes dos vivos

um mar morto, petrolífero

onde o processo profundo de um latir

fere rasgando esse manto que abre caminho 

pelas margens dos precipícios 

desliza assim de noite um barco a remos

um pescador recitando linhas de prata

noites inteiras apanhadas na rede

e sempre ao longe um dique abismal

para quem adormece...

nesse sangue dessa ponte erguida

a boca um arpão de rapariga

diz que viemos da água...

desse rio mãe placenta

Ônix águas do espaço que nos separa

quando nascemos em alto mar, caravelas de branco 

mas é no rio que lentamente flui a morte

uma narrativa de luz baptismal

e nas margens, espantalhos de ramos ardidos

grifos mesclados na encosta rochosa

e ruínas de lugares termais

como pode um homem alinhavar as horas da noite 

sentado num baloiço de casco, um pico de topo, terror noturno 

algo que pasta por ali sem ser gado

apenas lamento 

leva a mão à água que bate contra a margem

a gélida presença no rosto que precisa despertar 

e num piscar de olhos, lá entre a sombra de nenhures 

Seu pai, acenando a boa sorte 

para a travessia mais esbatida da via lactea

a tarefa de se colher da água a alma

e dar de alimento, ao corpo 



quinta-feira, 16 de julho de 2020

A aldeia da Ladra



A aldeia da Ladra


Madrugada, dia de feira. O parque de estacionamento dá lugar a carrinhas e carros que chegam ainda de noite para garantir o seu lugar em dia de feira. Quem por aqui passou como feirante, sabe que é preciso ter sorte para encontrar um bom lugar à sombra, do lado de fora dos passeios, na parte lateral do mercado fixo, e espaçoso. Sabe também que apesar de muitos dos lugares serem fixos, há uns tantos outros que são de ocupação rotativa, as licenças ocasionais. Sabe também que a partir das 9 horas quem não ocupou o seu lugar pode ficar sem ele. Sabe ainda que é preciso ter sorte com o vizinho, com o fiscal, com o dia de sol tórrido ou chuvoso, com o cliente turista consoante há barcos aportados no cais e sobretudo, mais que tudo, é preciso ter sorte quando nenhuma licença se tem e se ocupa atento à polícia de fiscalização para fugir à multa. Para que corra bem um dia, quase meio dia pois a partir das 15h já menos se faz, é preciso um conjunto de alinhamentos quase astrais. 
Talvez seja por isso que a feira tenha o seu encanto, o seu vício, a sua longevidade neste mesmo lugar da cidade desde 1892. Por aqui vende-se tudo, até a alma, sobretudo a alma e com muita alma. Quem vende sabe que não basta atirar um cêntimo para o pano para se ter sorte na venda, é preciso dar voz ao pregão, ao desconto regateado, ao olho para adequar o preço a cada cliente, ao olho para se encontrar a peça ou o objecto para cada cliente. Mas a feira é também um lugar de decadência, de mesquinhice, de inveja, alguns diziam sobretudo na ala sul, que era uma selva. 
Por aqui vende-se de tudo usado, é uma feira maioritariamente de produtos usados, velharias, relíquias, livros, loiças, roupas, muitas roupas e calçado, malas e bijuteria e outras coisas do baú. Os mais finos dizem que é a feira dos mortos. E sim, muitos destes objectos são doados ou comprados em leilões de recheios inteiros de casas de falecidos. Outros são as peças do armário que a menina estudante já não quer, outros são roubados à família para a droga, outros e muitos deles, são encontrados diariamente no lixo pelas ruas da cidade.

O dia nasce com a temperatura já a adivinhar um dia tórrido de verão. 

No chão, Marisa estende o pano lilás, dizendo bom dia à vizinha. 
-hoje vai estar um dia quente, daqueles de morrer. sabe se a dona deste lugar hoje vem? a estas horas já não deve vir. ainda não encontrei o fiscal para perguntar.
-ai vai vai menina, já  queima. ela chega sempre atrasada mas não falha. eles devem andar lá pra baixo, daqui a nada estão a passar a pente fino cá em cima. mais ou menos às dez vêm tomar todos café ali à frente.
-pois mas às dez já perdi os lugares todos. 
-isto tem de se vir muito mais cedo. mas olhe tente, depois logo vê. ela é uma comichosa com o lugar, se fosse outra...tente ali o sr. Victor, aquele ali sentado na cadeira, tá a ver? ele não se importa de partilhar lugar, normalmente tem lá sempre jovens...também não vende nada...ehh vem pra aqui passar o tempo. 
Assim era a feira. A primeira grande luta era para arranjar lugar. Ninguém queria ir lá para a parte sul. Se dividíssemos a feira por secções poderíamos dizer que a norte, cá em cima, era lugar de vendedores mais idosos, coleccionadores uns de relíquias outros de tralha, no centro junto ao mercado, os melhores lugares fixos de artesanato e mesmo lá no centro da praça a grande máfia das "velhas". Ali ninguém desejava cair de vizinho, eram más, mesmo muito más vizinhas. Vendiam muito bem e não gostavam da concorrência. A caminho do sul era um passeio de boas vendas, muita passagem. Mas a sul, onde se vendiam na grande maioria equipamentos electrónicos com fama de roubados, era diferente. Mais caótico, desordenado, barulhento. Como se fosse um mercado clandestino dentro da grande feira. Um bom sitio para negócios menos legais e também para ser assaltado. 
A esta hora já Conceição tem a banca toda arranjada. Estacionada na entrada norte da feira, lugar limítrofe mas ilegal. Há três anos que vem sem falhar um único dia, sempre sem licença. Muitas foram as vezes em que foi avisada pela polícia ou pelos fiscais mas Conceição vende lixo ou tralha de pouco valor, tem cinquenta anos, muitíssimo magra, baixa e cabelo sempre pintado louro. As rugas no rosto escavam-lhe a dureza dos dias passados. Pobre, depois de cair no desemprego e já velha para novos empregos. Conceição era assim uma mulher solteira, seca e quem não a conhecesse melhor julgaria que seria uma má vizinha. Mas não. Era apenas uma mulher só, a tentar sobreviver.
Houve alturas em que a ilegalidade da feira se estendeu tanto que houve intervenção severa, motins e quase uma grande desgraça. A feira é um animal de sangue quente. Muitas são as nacionalidades, as idades, as condições económicas e muitas são sobretudo as desgraças na história de vida de cada um. É um lugar superpovoado mas de grande solidão. Cada um por si e o chão a todos.

-então está tudo bem? hoje chegaste tarde! tens lume! Epá os fiscais já ali passaram três vezes, isto cada vez está pior. não se vende nada, é uma porcaria. 
-vamos ter fé, há muito estrangeiro na cidade. vamos acreditar que sim, olhe eu não tarda se aparece aqui a do artesanato vou ter que me pirar daqui - Marisa ponderava ainda ir coabitar com o sr Vitor. 
-opá isto hoje está tudo cheio - conceição acendia o cigarro fumando-o como se fosse um homem muito direito, um homem com cabeça de faisão, sempre atenta aos movimentos dos clientes e dos fiscais. 
-não sei se vá ver ao pé do sr. Vitor...
-esse...puff..esse outro dia no final do dia era ver ele a partir a louça toda e a rasgar os livros...até metia dó...então não era de dar a alguém ou ao menos deixar ao lado do caixote para alguém levar...epá estas pessoas são tão miseráveis ...
-então e lá ao seu lado?
-ai ali? então mas tu hoje tens licença, tens direito ao teu canto...
-vou lá abaixo ao ucraniano, ele também não costuma importar-se
-podes ir à vontade que eu dou uma olhadela, é tudo a 3 euros não é?
-sim, menos os postais que são a 5, mas não te preocupes que a esta hora não anda aqui ninguém a comprar arte...obrigado, vou num pé e volto noutro. 
-olha traz-me um café
-yes

O "ucraniano" como Marisa o chamava era um homem dos países do leste, ela não sabia bem qual. Era um homem de estatura média, magro de olhos muito azuis e um temperamento muito doce. Era o vizinho predilecto e também aquele que qualquer um desejaria ter. Vendia livros e sapatos, falava bem português, era muito delicado, assim na casa dos sessenta. Ás vezes em horas de calmaria ele ia contando bocados da sua viagem. Tinha alguma ajuda do estado e a mulher trabalhava, muitas vezes ele dizia que vinha para aqui porque minha mulher muito chata em casa, dá muita dor de cabeça. Dizia aquilo com um pesar no olhar e um sorriso tímido. Nessa manhã Marisa encontrou-o na zona dos estudantes.  
-olá vizinho, então hoje arranjou-se por aqui?
-sim mas polícia muito chata, eu ter licença mas eles não querem agente aqui...
-disparate, então tanto lugar vazio...olhe venho pra aqui pro pé de si...guarde-me este tá bem?
-sim sim, não problema - compondo o livro que já caía fora do pano. 

 No caminho encontrou finalmente o fiscal. Há um ano que Marisa havia decidido fazer esta feira como segundo e às vezes primeiro emprego. Quer por teimosia quer porque lhe tomara o gosto, ia devagarinho conhecendo os cantos à casa. Eram dias difíceis mas sentia sempre que levava no final do dia mais do que trouxera, sobretudo por dentro. Havia quatro fiscais permanentes. Este, o sr. João era o que tinha mais fama de intransigente, este e a "velha branca" como lhe chamavam, a única dos quatro senhora. Marisa ia intercalando entre o legal e o ilegal. Mas desde as primeiras vezes de feira que simpatizou com este fiscal, ou ele simpatizava com ela e ajudava-a sempre que podia. Achava-lhe uma certa piada porque tinha uma postura muito fria e rígida mas no fundo era apenas um bom homem a fazer o seu trabalho e estaria provavelmente muitas vezes cansado de aturar pessoas mal educadas. Marisa não vinha propriamente de um meio de dificuldade mas na sua decisão de fazer da feira vida, encontrava agora mais dificuldades que antes, estava num limbo entre os feirantes que se podiam assim dividir entre os que faziam a venda por necessidade e aqueles que a faziam por desporto.  Mas a seu ver, encontrava ali mais verdade que em qualquer cadeira de escritório. Era uma existencialista já em finais de época hippy num mundo carente de época alguma ou antes sobrelotado de épocas sem expressão alguma. Era ainda jovem e quando disse em casa que deixara de procurar emprego na área em que se tinha formado para vender na feira, a mãe caiu à cadeira com um desgosto tremendo. Mas Marisa era um ser de  curiosidades e queria viver aquela vida ou talvez se tenha convencido de que essa era a sua escolha. 
-bom dia sr. João vou ali prós estudantes pode ser?
-sim, trouxe licença certo?
-sim, sim, está na minha mala lá em cima
Mentira, esse era um dos dias em que Marisa não a tinha e custava-lhe mentir a quem a ajudava mas não conseguira licença para esse mês, seria um mês difícil de encarar, seria um mês de fé. 
-então Saudade, como é que tá hoje a venda por aqui? - Saudade vendia artesanato feito de pacotes de leite e ainda umas pinturas suas, pequenos retratos surrealistas. 
-olha-me esta doida, ainda andas para a frente e para trás, assim não te safas...já  vendi uns quantos sacos...olha vais ao café? traz cerveja!
-já? dás cabo de mim...
Riu-se, Saudade era uma grande alegria. Tinha uma história de vida daquelas tramadas, dois filhos menores e um espírito muito livre. Sabia vender, tinha boa disposição e sempre, muita alegria. Marisa parou e voltou trás...
-olha lá, aqui entre nós para agente se rir, então o moço do carrinho do supermercado? isso deu em alguma coisa?  ri-me tanto ele a levar-te no final do dia dentro do carrinho...rica prenda que ele levava...ahahah
-nem me digas nada, ganda maluco...mas via-se logo eu é que gosto de inventa-las. Ia-me matando rua abaixo, quase que nos espetava contra o eléctrico. O rapaz é um traumatizado, andava praí a vender a tralha toda da namorada que o deixou...já vejo porquê...opá só rir, só eu
-mesmo!

Entrou no café ao lado do mercado. Lá estava o sorriso do Felipe sempre pronto.
-olha olha a princesa mais linda da feira...que é que precisas de mim?
-bons dias, tá  tudo bem por aqui? então duas cervejas e dois cafés, o meu bebo já aqui. Ando para aqui feita barata tonta, ainda não vendi nada
-não te preocupes tu fazes esses olhinhos lindos aos clientes e eles levam-te tudo
-levam levam...vá deixa te de lérias e despacha-te, tenho a banca entregue aos bichos
-antes aos bichos que às bichas. Irra até me benzo
-lá estás tu com tontices
-tão não os viste passar logo de manhã cedo? Ia um de cabelo cor de rosa e fato de banho e o outro vestido de robot..opá são mesmo maluquinhos
-mas eles costumam tocar ali no meio não é? já não os via há uns meses..vá té logo, beijinhos
-ai tantos...

Na esquina já o ti Joaquim andava às cabeçadas. O homem já chegava à feira torto. As pessoas perguntavam-se como é que ele dava conta do recado. Marisa já conhecia quase todos os fixos que valia a pena conhecer, claro está que as invejosas do centro da praça nem vê-las. O pano do ti Joaquim era um desconsolo, não tinha quase nada para vender e o que tinha...tinha um aspecto tão descaído quanto ele. Cruzou-se então com as três personagens mais caricatas da feira. Três senhoras muito velhas, sempre vestidas de rendas pretas e cabelos muito arranjados. Todos os dias de feira elas cá estavam. Pareciam saídas do filme do Dracula. Unhas alongadas e véus na cara. Lá estavam elas de volta dos baús pulguentos da associação de sem abrigo. A bem dizer tudo tinha pulga por aqui, mais não fosse porque estava no chão quase tudo, mas nada que uma lavagem não tratasse. Viravam e reviravam tudo até encontrarem mais peças de roupa preta, tudo ainda regateado não fosse o euro por duas peças ainda ser muito. Seguiu caminho sempre a subir pelas ruas apertadas da feira que a esta hora começava a atingir o pico de visitantes. Era a melhor hora para fazer dinheiro, era preciso correr mas o café quente na mão e as cervejas geladas na outra confundiam-lhe o espírito. 
-obrigadinho Conceição, toma lá o café..vou prós estudantes, passa lá logo, tens lugar e já não devem passar os fiscais
Arrumou as cervejas dentro da mala, pegou nos dois tróleis carregados e seguiu. De caminho deixou a cerveja à outra e a voar procurou então o seu lugar. Estendeu a roupa no chão e abriu a mala dos postais. Podia finalmente respirar fundo, abrir a cerveja e começar a vender. 
Já tinha conseguido vender algumas peças quando se aproxima o Luís dos discos...
-olha dás-me ali uma olhadela enquanto vou buscar almoço? 
-sim na boa...
-volto já, cuidado se vires aquele indivíduo do chapéu branco, o que traz o puto...eles roubam...tu sabes quem são
-sim, acho que sei, eu estou de olho
-queres alguma coisa?
-outra cerveja, daqui a bocado já passa aí a Tia com os croquetes...
-ya ya as chamuças são boas...
Era assim quando se vivia em boa vizinhança. Houve vezes em que ficou lá no sul. Nesses dias não era possível abandonar a banca e quase sempre a polícia estava de vigília o tempo todo estacionada ao lado. Uma vez correu o boato, foram apreendidos portáteis a um rapaz e afinal ele até tinha licença mas quando foi busca-los à esquadra já tinham desaparecido. Foi nesse dia que ocorreu uma grande confusão. Houve pancadaria e gente ferida, não se sabe bem porquê mas os boatos eram variados, como bons boatos a culpa era sempre da fiscalização e nunca dos feirantes. Ainda que alguns se odiassem quando era para se unirem, uniam. Por isso Marisa não se sentia nada segura na zona sul da feira. 
Mas os dias mais pesados de feira eram os dias de chuva. Raros feirantes tinham toldos, a maior parte trazia lonas para cobrir os artigos, mas a chuva encontrava sempre forma de entrar e estragar metade das coisas. Quando estava anunciada carga forte poucos se atreviam a montar banca, o pior era quando a chuva vinha do nada e apanhava desprevenidos a todos. Esses dias eram desesperantes. Não se conseguia vender, ia tudo encharcado para casa e na carteira nem o dinheiro gasto no almoço. O inverno era por isso doloroso para a venda. Quando fazia vento era ainda pior. As estruturas frágeis voavam, ramos das árvores a cair e um caos desagradável de páginas de livros em rodopio, fazendo um frio gelado para os ossos dos mais velhos. Mas havia a teimosia de mais nada ter para fazer, a insistência e persistência maior do que qualquer jovem em início de carreira, uma força de vontade que os unia e mantinha vivos. Porque eram eles que apareciam para tentar a sorte enquanto que os jovens ficavam no conforto das suas casas e os desgraçados nos lares de abrigo. 
Como já tinha sido referido, havia histórias para todos os gostos. 
O sr. Bragas tinha uma bem triste. Um dia Marisa calhou ficar ao lado da sua banca gigante de meias e cuecas. O dia foi passando e conversa para aqui conversa para ali ele conta...
-a minha mulher adorava a feira, já vinha quando era miudita com os pais. Casei-me porque a conheci  aqui, eu era um putozito sem eira nem beira pendurado de tasco em tasco pelo cais, era para ter ido para os barcos mas acaso do destino enjoava me todo. Depois da primeira viagem infernal desisti. Andava eu por aqui perdido quando a vi. Os meus olhos colaram-se, fiquei embasbacado, sabe menina, a minha mulher parecia uma actriz de cinema, daquelas americanas. Depois pronto foi aquelas coisas normais, começamos a namorar, o pai dela que já vendia este negócio começou a passa-lo para mim, casámos claro que naquele tempo não podia ser de outra maneira e eu encontrei assim a minha vida. Ah mentira, antes eram fatos e gravatas mas quando nasceu o nosso primeiro filho ela começou a dizer que já ninguém comprava fatos de alfaiate e que agora iam às grandes superfícies e tal e que vendêssemos antes meias..eu disse meias? que raio de negócio mais patético...mas assim foi, meias e cuecas novas...o negócio passou de tecidos e fatos para meias e cuecas e pegou, que isto na grande feira quem tem olho é rei e aqui anda sempre tudo cego com as tralhas. Pois eu com as cuecas comecei a safar-me bem. E realmente nesse dia vendeu bem. Era artigo novo, cheiro a lavado e sem pulga. Um dia, já aqui vão sete anos, ela diz pra mim...ai filho...era assim que me tratava...e zás cai redonda no meio das meias empilhadas. Foi assim, como os gatos, de repente. Foi-se. Uma grande facada no meu coração. E eu pra qui vim e continuei a vir, porque era aqui que estava alma dela. Cresceu e fez-se por baixo da banca e das saias da mãe feirante. Ás vezes parece que ainda a ouço a apregoar Comprem meninas comprem, com as meias da Tatá não há traça que lá vá... - riu-se - ela inventava muito, era muito boa vendedora...

Marisa encontrou muitas histórias de solidão, outras de compaixão e tantas outras insólitas. Como aquela velha gorda que todos os dias de feira chorava a potes a pobreza e depois apanhava um taxi para ir para casa, diziam que era tudo mentira, que era rica e estava senil ou a outra que estava mesmo senil e fazia xixi pelas pernas abaixo. Ou o outro que dançava pela feira fumando cachimbadas de paz e profetizando coisas impercetíveis, ria e espalhava o amor. Ou o outro que vendia electrodomésticos que não funcionavam e depois ia ao café pedir para ligarem para o cliente ver como estava tudo impecável e ai que não, hoje faltou a luz. 
Entre mentiras e histórias de azar, entre bons negócios e entreténs, a feira levantava-se todas as semanas à mesma hora para se voltar a deitar no silêncio do alcatrão de um parque de estacionamento. Alheia a rostos sujos, a lágrimas e desgostos, alheia a ricos ou pobres, a sonhos e devaneios. Como um organismo vivo, renovando-se, alimentando-se de alma gentil que aceita o chão  como tesouro. Aqui dizia-se que o lixo de uns era a relíquia de outros. Os objectos renasciam de mão em mão, partos que prolongavam a vida, que do chão rebentava orgulhosa e livre.  

Mas a feira entrou em queda, uma grande crise que tomou o mundo inteiro. Marisa que já antes tinha abandonado a feira, havia encontrado outros trabalhos. Ás vezes passava pelo parque, passeando agora com uma nostalgia de aperto. Era como se os visse por ali, personagens desempenhando o seu papel num palco holográfico. Como se o tempo tivesse sido congelado, o vento trazia as vozes do fado ao ouvido. Aqui, tudo tristes fados, tristes mas muito sentidos.
Saudade empregou-se a limpar quartos de hotel mas com a grande crise estava numa grande aflição porque não havendo turismo também não havia camas para fazer. Os idosos quase todos com reforma fecharam-se em casa, mais calados, mais pesados e mais sós. Os estudantes estavam também eles em casa, sem grandes farras nem feira alguma e os desabrigados continuavam no mesmo lugar de sempre. Porque para eles, aquele parque de estacionamento era a sua casa, e ninguém abandona a casa de ninguém.
Um dia, a feira voltaria a erguer-se. Por aqui desfilariam outras vidas e quem sabe mais das mesmas. Um dia, quando esse dia estiver para chegar, a filha de Marisa há-de ocupar o seu lugar.





quarta-feira, 8 de julho de 2020

A Aldeia do PVC

Nota ao leitor:
O relato poético que se segue, segue à linha o cenário mas carecendo de investigação jornalística tudo o mais é ficção..fica o retrato aos olhos do poeta.
Dedicado à minha avó.



A Aldeia do PVC


I
no acender das luzes sob o pano tétrico da cidade
os pássaros esvoaçam como morcegos em volta da lâmpada
assim dois entardeceres, uma união extra terrestre de solidão
é ensurdecedor o cair da noite lento as cores desmaiando
e os pássaros voando em voltas emparedadas
agora mais que nunca, em silêncio, e voam com tanta energia
que alguns batem contra as janelas caindo no passeio esborrachados
desconcertante como o raio da bicicleta que chia subindo a encosta
sentada num banco de madeira uma velha de olhar quebrado
conta e desenha os voos aleatórios ou os anos que lhe doem nos ossos
do outro lado da margem, na aldeia do PVC, sentada no mesmo banco
no seu quarto de micro jardim detalhadamente cuidado como um bonsai
outra velha, de olhar infinito, virada de costas para a falésia
talvez cansada de uma paisagem extasiante, as gaivotas frenéticas
atrapalhadas na maré cheia, os barcos que não chegam, o peixe que não cai
na rede mais estreita da miséria, cada lote de pedaço de vida
conta a sua história em surdina, no silêncio da queda do dia
há 50 anos esta aldeia não existia, se foi criada por recriação
depressa se proliferou por necessidade ou por infortúnio
uns de férias, outros reformados, as caravanas foram estacionando
e ficando e outras, casas de chapa branca, mais tarde imitação e madeira
umas dir-se-ia quase de luxo outras verdadeiras lixeiras
as bandeiras anunciam que a A32 é uma casa portuguesa
a pantera negra esposada no telhado de zinco e a águia no bico da face solar
há para todos os gostos, micro regas para micro pedaços de relva,
canteiros e flores de plástico, estruturas para baloiços e churrascos
pequeníssimos lagos, o menino que faz xixi de pedra, o cão que ladra
o gato que foi proliferando em muitos gatos selvagens e o mar
sempre o mar de companhia rebentando na fúria da falésia
que lentamente se vai decompondo em areal e grutas e dunas
-tá a reclamar de quê pai? fica aqui com uma casinha à maneira
-se um dia chegasse a velho não me importava nada, vá vá lá jogar
os compadres tão à espera no tasco da Chica
Quando se entra nesta aldeia parque recreativo sente-se que é muito mais casa
do que qualquer estância de férias...talvez um lugar onde se é deixado
longe de tudo, numa pequena dimensão aquele que seria o sonho de muitos
hoje é a casa anual de outros...novos, velhos, habitantes do PVC
muitas são as casas que anunciam a ferrugem quer pela humidade marítima
quer pelo tempo da degradação da vida
as estruturas dos balneários estão arranjadas mas no pavilhão central é notório
o tempo, alvo de crescimento sem doma, alvo de falta de investimento
também o espaço se foi proliferando, duas grandes piscinas na zona sul
cortes de ténis, zonas de churrasco colectivo, tanques de lavar roupa
lavagem de carros, supermercado, cafés, e muitas bicas de água
porque nunca a água poderia faltar numa aldeia plantada à beira do mar

II
-pai, o pai precisa de andar, vá lá baixo à tasca. Olhe a Ti Jacinta ali na frente, tá na mesma.
-sinto-me cansado. cansado de não fazer nada.
-tão mas o pai tá velho, queria fazer o quê? O mar não é pra velhos com artrites e diabetes.
-merdas, os outros andam lá e eu aqui armado em finório doutor.
-doutor? oh pai nã me dê graça...os doutores estão nos condomínios privados...mas o pai aqui tem uma casinha à maneira, vá dar uma volta..precisa de mexer essas pernas, olhe pra esses canivetes...
-varas..já me tremem como varas...
Assim se chamava a nossa velha do B33, Jacinta. Jacinta Dias Ferreira tinha outra história. Nunca fora de boas falanças com a nora, desde que o filho se casara contra a sua vontade porque podia ter sido doutor em vez de emprenhar a rapariga aos 19 anos. Ficara-lhe entalado esse desgosto e mais o homem que lhe falecera de tumores vários. Havia uma história simples. Aqui a trouxeram um ano para passar férias, tanto foi o frenesim do costume que a nora lembrou-se de perguntar quanto custaria uma daquelas casinhas tão giras brancas de latão. Uma assim virada pró mar, ai não essas são mais caras, uma assim atão baratinha, pequena, é só para a sogra...não fazia já intenção de voltar a passar férias algumas por aqui mas a sogra sim, passaria o resto das suas vidas, aqui plantada de férias. Jacinta já nem se recorda bem do episódio. Calcula que lhe terão feito uma conversa de sonho. Convencida por castigo, sem outra alternativa e pensando já que seria bem pior num lar, cedeu e ficou. Uma semana mais tarde o filho voltou com muitos dos seus tarecos e até o tareco peludo. Até o gato havia sido repatriado. Fazia-lhe alergias, dizia a velhaca da nora que nunca prestara para mais que parir. Aqui estava também parida a sua grande dor, ficaria longe dos netos, sem poder vê-los crescer, os netos que tanto adorava. Todos os anos a espera do ano inteiro pelas férias grandes. Jacinta    nesses primeiros anos acompanhara a família de férias. Passava os meses anteriores a preparar autênticos cabazes de açúcar, gulodices que faziam as delícias dos netos durante todo o verão. Claro que isso era um empecilho na hora de arrumar a carrinha para partir. Isso e mais as mantas que a velha sempre insistia em trazer atrás, não fosse fazer frio e não estarem devidamente acomodados, isso e as mercearias, os queijos e os chouriços, a saloiada toda que tinha de vir atrás caso não fosse o de passarem fome, isso e os ovos, que ai o que seria de um pequeno almoço sem ovo da galinha do campo, os ovos eram uma tragédia, metade partida no caminho nas curvas e contra curvas de uma carrinha já sem amortecedores, isso e a própria velha que toda ela era já um empecilho, porque a família aumentava e já não se cabia na dita carrinha. E o filho de coração apertado mas cedendo à nova cabeça da família, viu como um alívio a ideia da aldeia do PVC.
Pois nessa semana o filho voltou deixando-lhe os seus objectos, comida, que claro não lhe agradou pois era do supermercado - tão eu aqui não posso criar galinhas mê filho? - nã mãezinha, nã pode, aqui só se podem ter animais de companhia - atão mas as galinhas sã tã nossas amigas...
Nessa primeira semana ainda a encontrou em fase de incredulice, mas com o passar do tempo, o filho ia trazendo remessas maiores de alimentos, deixava dinheiro para que se habituasse a ir ao supermercado da aldeia e com esse passar do tempo visitava-a mês a mês, de seis em seis meses e por fim uma vez por ano, já nem trazendo os netos. Jacinta perdera tudo mas ganhara no consolo de quem espreita de fora o seu peito, uma nova vida e a ela teria de habituar-se. Mas nunca isso acontecera, os anos passaram e cada vez mais o seu pouso era aquele banco no seu micro jardim que carecia de mão de obra. As ervas haviam tomado as janelas e o seu lote mais parecia um grande bosque de escuridão e silêncio. Ti Jacinta era conhecida pela má vizinhança como a bruxa velha. E de facto quem passava por aquele lote e se cruzava com o seu olhar vazio, arrepiava-se de abismo de morte. A mim doeu-me qualquer coisa de só cá dentro. De fim de tempo e apocalipse humano carência. De fim de elos e toda uma espera dolor.

III
-oh pai já viu o que aqueles maganos andam pra li a montar no telhado...que raio será...parece uma varanda...olha agora uma varanda pra falésia...o Sô Vitor ainda se mata por ali abaixo. Aquela gente tem memo a mania das grandezas, tão não se pode construir pós lados, constrói-se pra cima..olha que ideias...
Do lado norte já bombava a aparelhagem em estéreo, há muito que o segurança desistira de por aqui impôr grandes normas, havia toda uma organização anárquica que ás vezes se resolvia à pancadaria. Na recepção tudo parecia organizado e legislado mas por estas pseudo ruas pombalinas a vida era outra. Passeando pelo parque escutavam-se diferentes línguas, mas maioritariamente francês e português.
No T20, nesse pedaço de terraço, a família Borralho já se instalara para as suas habituais férias de Verão, estavam todos sentados cá fora conversando sobre o que haveriam de fazer por estes tempos dado que este ano estava quase tudo encerrado devido à maldita peste que se instalara por todo o lado. Este lote trazia-lhes uma falsa segurança de isolamento da grande cidade, aqui podiam esquecer o perigo e a morte que proliferara durante os últimos três meses pelo mundo. Aqui estavam esperançados de poder descansar as suas cabeças, as miúdas poderiam brincar ao ar livre, tomar banhos no mar e as máscaras de protecção só seriam usadas em caso extremo de necessidade de usar o balneário público. Estavam por isso instalados na ala norte um pouco mais distantes das colunas do pumtstaa dos barraqueiros do R12. O R12 tinha muito má fama na aldeia. Não se sabia bem ao certo quantos lá dormiam, se é que dormiam porque infernizavam de barulho pelas altas horas da madrugada, quando iam para a praia fazer fogueiras era uma noite santa, mas pela praia a vigilância era agora outra, não eram permitidos ajuntamentos. Por isso com sorte entre as 5 e as 7 da manhã os vizinhos conseguiam pregar olho. Também se falava que ali vendiam droga e mais sabe-se lá o quê. ás vezes pegavam-se uns com os outros e quando a coisa era mais séria vinha então a polícia de fora.
Mas pagam a anuidade e tinham um contrato daqueles vitalícios que a nenhum deles pertencia.
Ao lado da família Borralho vivia um casal dos seus 70 anos, velhos mas muito frescos. Todos os dias o Sr Afonso se levantava às seis da manhã para ir para a fila do supermercado para se aviar de pão. Pelo caminho fazia a sua caminhada aproveitando ainda a frescura da manhã. Os Verões estavam cada vez mais quentes e abafados e eles já não aguentavam muitas horas de praia. Vivia-se mais no alpendre ou dentro de casa, que já tinha uma espécie de ar condicionado dentro dos watts permitidos frente à televisão, sempre altíssima porque a Sra Antónia estava surdíssima. Mas liam o jornal que vinha acompanhado do pão e faziam os seus grelhados, e muito amigos ainda, passeavam pelas ruas do parque, pela borda da piscina e em dias mais frescos iam até a pé até à aldeia, a verdadeira mais próxima. Passavam aqui a maior parte do tempo do ano, normalmente Dezembro e Janeiro regressavam à tua terra porque lá a casa era mais quente e aproveitavam para ir às consultas anuais e passar o Natal com a família que ainda vivia no País. Foram emigrantes na Suíça. Ela trabalhava nos quartos do hotel, tinha um álbum de fotografias com as recordações desse tempo. A farda de folhos brancos e o vestido preto, o quarto de casal onde tiveram a primeira filha, os jardins do hotel nas belíssimas montanhas. Aquele álbum era a sua relíquia de memórias felizes. Trabalharam muito, amealharam mas foram sobretudo muito felizes um com o outro. O Sr. Afonso trabalhava na cozinha, tinha boas mãos para amanhar a carne e para o tempero, sabia dos segredos da cozinha portuguesa e por isso foi fazendo carreira chegando a chefe de primeira. Quando a primeira filha começou a crescer perceberam que o quarto que lhes pertencia no hotel era muito pequeno e resolveram abandonar esses trabalhos, para algum desgosto do Sr Vitor e procurarem outra vida na cidade mais próxima. Ele passou dos amanhos da carne para aprendiz de fábrica de chapas de carros e ela empregou-se numa casa como cuidadora de meninos finos. Alugaram uma casa modesta e assim se passaram vinte anos. A filha cresceu licenciou-se em enfermagem, casou-se por lá e por lá vive. Eles regressaram para viver a reforma no seu país, comunicando na sua língua das pataniscas e do vinho tinto, achavam eles. Foi a Sra Antónia que escutou de uma vizinha que nesta aldeia se estava muito bem para a reforma e da falácia da vizinha a adquirirem o seu lote, foi pouco mais de um ano. Estão descansados embora aquele sonho de regressar tenha ficado em águas de bacalhau porque por aqui havia muitas gentes diferentes e muitos emigrantes mas na verdade, já pouco de fado e bacalhau. Aliás o bacalhau era uma relíquia que era preciso encomendar, quem tinha carro era diferente, mas o Sr Vitor já estava mal da vista e há uns anos que o vendeu.
-Vivi (assim o tratava), já viste isto, agora dizem que o vírus já andava por Barcelona antes da China
-agente sabe lá mulher, eles contam e remontam, parece uma telenovela...e agente aqui perdidos...já deve andar por aqui e pior agora vêm esses miúdos todos para as tendas, ainda bem que é lá para baixo.
-ah mas a Filipa da recepção já avisou que este ano a lotação dessa malta está apertada...oh Vivi então hoje não andam com isto para a frente..queria ver a novela..ai é tão linda esta dos pescadores...e a nossa Luísa como estará lá pela Suíça? Ela já deu notícias?
-não..ainda é cedo...ela costuma ligar às dez...credo mulher mete isso mais baixo, fico maluco com essa barulheira dos anúncios
-não sei pra quê, aqueles barraqueiros já ligaram as colunas...preferes aquela porcaria é?
-preferia os pássaros era o que eu preferia...
-pois, pois, também eu...que raio estávamos tão bem na Suíça
-dizes tu...eu cá prefiro ainda assim aqui e olha caso a senhora esteja esquecida, isto foi uma grande ideia sua...aos anos...aos anos
-ai meu querido Vi estamos velhos...que será de ti sem mim?
-será uma grande rambóia....rindo-se
-malvado velho - e beija-o ainda com aquela garotice de meninos de namoradeiras e janelas indiscretas

IV
Em cada braço leva um cão toy...autênticos brinquedos de colo. A menina tem um laçarote cor-de-rosa e o menino um clássico laço ao pescoço preto. Os cães brigam-se numa chinfrineira pela atenção da dona que procurando um lugar à sombra faz sinal ao rapaz da esplanada.
-tem de lá ir D. Berta, isto agora são novas regras.
-essa é boa, desde quando rapaz? Isto todos os anos inventam cá pra cima, então e os meus bebés?
-deixe-os aí amarrados que eles não vão longe, soltando uma valente gargalhada
-ri-te ri-te, aqui há tempos roubaram o chihuahua da Adelaide.
-não me diga...mas para que quereriam eles o bicho? Mas foi cá dentro?
-então não foi, ela foi à casa de banho do parque, deixou-o amarrado lá fora, quando voltou nikles de cão...nem sombra
-ah, não soube de nada
-a mulher anda por aí aos caídos de tristeza...eu bem sei o que é..ou melhor, não quero saber não..só de pensar..os meus bebés lindos..ai meus amores..meus docinhos
Na mesa do lado sentou-se uma rapariga com dois rapazes mais novos, talvez irmãos. Trazia um top amarelo uns calções pretos por onde as nádegas se estrafegavam para fora e umas unhas amarelas gigantes em bico. Aquelas agulhas seriam armas em dia de confusão, talvez dessem mesmo jeito para limpar os ouvidos mas as rapariga olha para a mesa e comenta com os miúdos que não largavam o telemóvel tocando funanás electrónicos
-isto está tudo sujo, vou lá dentro dizer a ela para vir limpar a mesa
-vais pedir o quê?
-caracóis e um tango, vocês querem mais alguma coisa?
Os rapazes negaram com a cabeça, estavam a terminar os copos que traziam o que parecia ser algo entre uma cerveja e um sumo, talvez uma dessas novas cervejas artesanais.
Nas mesas laterais encontrados à parede estavam quatro velhos a jogar dominós, a camisa deixava quase a nu a barriga, os calções todos da mesma fábrica e os chinelos sandália idênticos, Dois deles com meias. Um deles com o boné de sempre o outro com uns óculos fundo de garrafão. Dir-se-ia que era o fardamento mais comum de verão nesta faixa etária, variavam talvez as cores, mas a esta hora da noite pouca diferença fazia. Esta zona do parque estava estranhamente sossegada para o pingo do verão...
-o ti manel não vê que essa não pega ca outra...essa são três..ó homem componha os olhos...
-cala-te lá velho jarreta..tens a mania que és todo janota tens...
-ah já viram que este ano estão a arranjar o coiso do ténis?
-nã sei pra quê..só lá vão os francius e este ano ainda nem meteram cá os cotos...
-pois também não sei...vai mais uma?
-eu nah...a Maria depois da-me cabe da cabeça por causa da gota
-ah olha a gota..agora com a doença dos ricos..tá fino o homem tá
-parvoíce homem...vocemessê só diz disparates
-há que alegrar, há que alegrar...tão não soube do Sô Vitor? Aquele da varanda de luxo...parece que o homem se suicidou mesmo...recebeu umas notícias más lá da terra e atirou a corda ao pescoço
-oh oh tão ainda à bocado estava a passear o cão...você aldraba cada novela...queria ver o homem morto olha agora..isso é inveja homem...isso é inveja...deixe lá as vistas do outro
-ai..que eu caia aqui redondo...foi a miúda da recepção que estava a comentar..atão veio a ambulância e tudo aí à tarde...vocemessê devia tar a dormir a sesta é o que é
-ah pois sim...eu vi o homem todo roxo...ih o que era aquilo..parece que só foi encontrado de manhã..deve ter sido pela noite
-atão é mesmo verdade? olha olha há cada uma...raio do velho...também não lhe desejava tal definho
O relógio acima da recepção batia a meia noite, as esplanadas estavam a fechar e junto à cerca lá ao longe vinha um casal, muito bebido pelo tom da conversa...vinham a discutir estética e ao virar a esquina do portão do parque escuta-se o rapaz a gritar
-tu não percebes nada do que eu digo...ouve-me!
e a rapariga já enervada falava baixo
-opá fala baixo...eu não sou surda, eu já entendi o teu ponto de vista
e o rapaz gritava mais alto - mas ouve-me! Tu não percebes...o que eu disse foi que não me importava nada de ser velho e ter aqui uma destas casas caso...caso ( e berrava bem alto) não tivesse outra coisa melhor
Os velhos levantaram-se para ver o ocorrido.
-eu já percebi isso - dizia ela esbracejando - mas fala baixo que ainda ficas cá fora, eu estava a falar de estética, estética percebeste? isto é tudo feíssimo? ainda se construíssem as casas de madeira! Eu sou uma pessoa de estética, lamento ou não lamento..não é uma questão de snobismo é uma questão de beleza aos olhos. Que posso eu fazer? Fui educada assim..a minha mãe...tás a ouvir...não suportava uma garrafa de plástico na mesa, usávamos jarros de vidro.
Um dos velhos esticou mais a cabeça e comenta para os outros
-oh oh querem lá ver que se pegam..estes jovens não prestam pra nada...tão a falar de quê? Tética? Que é isso?
Os outros encolheram os ombros e começaram a arrumar as peças.
A rapariga calou-se e o rapaz lá seguiu atrás dela cabisbaixo cismando nas suas ideias. Amanhã seria outro dia. A culpa era da lua...devia ser...noites de lua cheia ela dava-he pra aquilo.

V
A aldeia levantou-se com um grande alarido. Perto dos balneários n5 escutavam-se gritos. A Ti Jacinta ia a caminho do pão com o seu saco de rede e o seu cabelo longo esgrenhado. Parou por momentos perto da situação observando com o seu olhar de sempre. Três mulheres berravam umas com as outras a ponto de se arranharem, dois homens tentavam acalma-las, com tanta berraria era difícil compreender o que se passava mas dado que estávamos perto da zona da entrada o segurança veio ver o ocorrido, mas veio com toda a lentidão de quem espera que tudo se resolva por si mesmo.
-sua vaca...eu bem vi ontem tu a saíres da minha barraca
-quê...tá maluca a mulher..eu tenho marido
-ah pois tens..mas nã te chega...agarrem-me que eu vou-me a ela...agarrem-me que é hoje
Não faltou muito para que os homens que estavam a tentar separa-las também eles se pegassem ora porque estavam a ofender a mulher do outro ora porque um dos dois era cornudo. Ti Jacinta inspirou fundo e antes que levasse com algum encontrão colateral seguiu em direcção ao supermercado.
Já vinham pessoas a correr para cuscar o ocorrido mas ela seguiu na direcção contrária. Poucas coisas mundanas lhe interessam, para falar a verdade, Ti Jacinta era menos mais que um vegetal que caminhava quando precisava de alimento ou libertar o seu excremento. Não tinha mais a sua alma consigo. Seria isso que tanto atormentava quem para ela olhava para dentro dos seus olhos opacos. Nada. Não se sentia existir mais nada lá dentro. Os mais religiosos chegavam a benzer-se quando se cruzavam com ela. Inventava-se muito. Que fazia candomblés lá para a praia de noite. Mas na verdade ela só saía de casa para ir ao supermercado.
Estava então na lenta fila do pão quando vem contra si...
-ai oh vizinha desculpe não a vi no caminho
Raramente alguém falava para ela. Por isso olhou-o indiferente compondo o casaquito.
-a vizinha desculpe sim...(e tocou-lhe na mão) - ela inquietou-se e proferiu uns grunhos meio baixo
-não tem mal. Deixe-me
Há muitos anos que se espreitam frente a frente por entre as gretas do arvoredo da velha. Primeiro veio ela, muito depois chegou ele. Nos primeiros dias, curioso velho viúvo ainda tentou aproximar-se do pátio dela com uns bons dias tímidos mas nunca ouvira resposta acabando por desistir. Ficara sempre a vizinha no canto do olho. E não, não era ao acaso que quando ela vinha ao pão ele seguia atrás, só para espia-la só para contempla-la só para se entreter de suspiros. Ela tinha algo de selvagem no olhos, aos seus olhos. Acreditava que era o único que a via dessa forma, especial. Mas aos olhos dela ele nunca existira, aos olhos dela já nada existia que valesse a pena olhar com olhos de ver. E não, não era ao acaso que a seguia portanto, mas foi por desleixo de tontice que se aproximou demasiado, talvez desorientado pela confusão do balneário, tropeçando nela.
-a vizinha sabe quem sou? Sou o seu vizinho da frente - esticou a mão - João, ao seu dispor. Mas a velha não reagiu - a vizinha desculpe, vejo-a muito sozinha. Eu se a vizinha quisesse arranjava-lhe o jardim, era assim uma maneira de me entreter sabe..e sempre ficava mais bonito.
O que ele na verdade queria para além de pode estar mais próximo dela ganhando esse tempo, era também poder vê-la melhor sem aquelas sebes todas emaranhadas. Mas a vizinha reagiu apenas com um encolher de ombros. Isso para ele bastou-lhe. Era tudo, era mais que nada, era maravilhoso. Uma faísca incendiou-se-lhe no olhar - Então logo depois da sesta passo lá. Não foi uma pergunta por recear que ela recusasse. Afirmou assim a sua visita e ela não contestou.
Nesse final de manhã, Joaquina regressou a casa com o saco cheio de pão. Tinha comprado marmelada e chá. Ocorreu-lhe que o seu devia estar podre de velho. Ao chegar a casa não avistou o vizinho. Já havia dentro de si algo novo, não sabia explicar o quê mas estava a acontecer sem que pudesse saber bem. Deixou o pão na mesita da cozinha e olhou em volta. Estava tudo num desmazelo doentio. Ela própria refletida no vidro do armário. Um retrato adesivo da morte. Alguém que nem se reconhecia de tão gasta e esquecida de si mesma. Levou as mãos ao cabelo e levantou-o enrolando-o no topo da cabeça. Prendido com ganchos parecia outra pessoa. Uma pessoa. Foi até ao quarto e abriu o armário das roupas. Já nada lhe serviria, tinha encolhido, mirrado o corpo dentro da pele. Retirou um vestido de corte direito meio esverdeado escuro. Procurou por uma fita e atou-a à cintura deixando a bata rota em cima da cama. Olhou-se então no espelhito ao lado da cama.
- Que disparate, que disparate tão grande...agora nesta idade. Que parva que sou - E procurou por debaixo da cama pela sua mala de viagem. Sentou-se ao lado dela em cima da cama. Pensativa. Foi como se tivesse aberto o peito, um fecho por onde começaram a sair todas as coisas dolorosas que se encontravam lá dentro cristalizadas. E chorou, muito. Como não sabia fazer há muito. Poderia partir. Poderia partir na carreira dos veraneantes que passa junto à praia. Poderia ir visitar um dos netos ou...qualquer coisa como fugir dali para outro lugar. Mas que lugar? Não havia mais lugar para uma velha como ela e o mundo lá fora da aldeia do PVC era um sitio hostil. Arrumou a mala novamente debaixo da cama e foi arrumar a cozinha. Depois sentou-se no seu banquito de madeira e esperou. Parecia que agora, agora havia algo mais para esperar para além do voo emparedado da vida.







quarta-feira, 1 de julho de 2020

A força da palavra



escrevo para alguém que dorme
dias e noites como se as horas não fossem perseguidas da nossa mortalidade
quem me dera que as minhas palavras tivessem a força do astro para te levantar dessa cama
Escrevo com o pesar de não encontrar alguém desse lado
escrevo com a esperança de que sejam breves esses dias de encanto adormecido
A bela adormecida despertou, estava envenenada com toda a violência do mundo
também a tua mente está exausta
é preciso que descanses e encontres de novo uma qualquer força para te ergueres
e agarrares a tua vida
as rédeas da tua própria vida
que é só uma e única e mais ninguém pode viver por ti.
Sabes muitas vezes me senti cair, muitas vezes caí 
e fiz até automedicação desse sono reparador tão essencial para voltar à vida. 
O sono e o sonho são os nossos maiores aliados, 
é neles que nos regeneramos e sem eles morreríamos de exaustão.
 Por isso não há nada mais natural do que dormir,
 mas haverá um momento em que é preciso acordar, 
ou por nós mesmos ou por aqueles que nos amam e estão à nossa espera, 
ávidos de amor e muita saudade. 
A nossa presença na vida dos outros é única, 
o que damos aos outros é precioso
e é dessas dádivas que criamos as nossas histórias de vida. 
Por isso lembra-te, 
quando estiveres preparado levanta-te, 
estamos todos à tua espera
para celebrarmos essa grande dádiva,
que por muito dolorosa que seja, é o grande milagre da vida. 
Estarei aqui à tua espera, 
e também o mundo está. 
Há muita coisa por cumprir e embora a poesia seja sempre fatalista e descrente, 
o poeta não o é. 
É preciso criar a obra. A tua obra. 
Desistir antes de chegar à meta não é opção, 
leve o tempo que levar, 
este caminho tem de ser percorrido e tu nunca estarás só para o percorrer.

Até já meu irmão



o cais das lamentações



diz-se que seríamos os filhos da luz
mas tudo me leva a crer que somos obstinados pela escuridão
um ser matemático regido por pêndulos de dor intermitente
há uma atracção ao abismo incontornável
como se nascêssemos do abandono de um vazio para outro
deixamos um ventre quente para sermos acolhidos por um austero
acho que nasci do avesso, todos os passos que dei foram ao lado
quem me dera ter a quietude dos animais
pintei a minha janela de preto, agora a paisagem invade o interior
com o mesmo rasgo com que me invade as pálpebras
agora a queda do dia é ainda mais intensa
e a cor que trago por dentro é visível
há pessoas nascidas da luz, por isso se diz dar à luz
mas creio que a minha mãe terá parido um buraco negro
uma fome devoradora por vezes sulfúrea inumana
sem pecado nem drama, uma solitária tarde outonal
que segue naquela distância vergada de um passeio íntimo sem pressa
enleada de encanto expresso de um carcereiro sem prisão
é como se prendermos dentro de nós um animal selvagem
e o domesticássemos até à exaustão para que cumpra um propósito
qual prepotência de se achar mais civilizado que os demais
o homem trilha-se diariamente sem voz
de amplos horizontes como o dia mais longo, sem sol
um solstício sem sol
e arde por dentro como a lava que corrói o interior da terra
dormente, fecho os olhos a luz assume laranjas pepitas
penetrando na pálpebra de vibrações de vida
quente e pulsante de desejo
imagino pentear-me no deserto,
um deserto solitário de vozes longe no diálogo
talvez sejamos uma causa árida
a noite calma e límpida sem estrelas
mas para mim o céu sempre foi rebentação na areia
fogo de artifício de aldeia
ondas de lírios para um calvário de mapas diários
a fúria do consumo de uma fénix cega
atravesso uma ponte vegetal quatro paredes de troncos e trilhos de muros
confundindo-se sempre na distância na sombra como ave de rapina
que persegue fantasmas de aviões já cruzados
pedras atiradas ao charco pantanoso sem a muleta de um espelho
acabamos por ser um teste sereno da morte
paradigmas de um estranho que nos habita para sempre
o curso natural de uma aliança obstinada satélite
ou apenas o tempo perdido das nuvens
trago no peito um monstro desafinado
que acabará por espigar cheio de dentes corroídos
com toda a fatalidade de nunca se ter encontrado
um ser panorâmico que iniciou muitas viagens
e ou porque a terra é redonda ou porque divagamos
a chegada é sempre perto demais, a viagem é sempre curta
a vista é sempre tacanha e a vontade sabe-se lá de quê
é sempre insatisfeita





terça-feira, 16 de junho de 2020

gueto de fel



porque o mundo é um grande gueto de fel
por onde se passeiam cabeças à trela
convivendo cadáveres deixados ao abandono
por esquinas e corredores de mármore
autêntico bordel que um arquitecto-paisagista
deixou a céu aberto
uma ilha talvez, rodeada de astros e anéis
e fundos para naufragar sem labuta
pensava assim enquanto...
pus água a ferver, pão a torrar e varri para o alpendre
os vestígios de um amanhã inquieto
ainda se pode ler na parede: Mantenha-se fora da linha
com a brandura de um comboio parado no apeadeiro
dessa varanda os campos avultados de morte
como restos de peixe frito atirado aos felinos
ás vezes chove gelo, outras fadas de algodão
que deambulam pela atmosfera misteriosa
já não saberei dizer se são saudades ou vestígios
como o lugar morno que o animal deixa
para partir com seu dono para a parte enxuta do peito
tal como as fábricas, as gentes que partem sem retorno
tudo cercado por arame farpado, e flores folclóricas
riachos da memória ou páginas de livros reviradas
há uma manga de água estreita onde se levam lençóis
e muitas flores para outros funerais
mas quem morre por aqui? uma borboleta, um ácaro
uma cifra na boca mais atarefada de vazio
já não há desconhecidos nem recém paridos
assim a aldeia melancólica ou bucólica
é o sopro minguado no olhar dos poetas citadinos
uma semente cara trinchada por máquinas
os poetas citadinos são espectros dos outros
entregaram a foice para a palavra ceifar
analfabetos de outra paisagem resta apenas o imaginário
encantatório cheio de outonos e folhas já caídas
é um homem que passa e atravessa mas não é um homem
espectro, cheio de lismo na cabeça e braços bambaleantes
atiram-se as pedras ao pano, mede-se o futuro sem a régua
do ensinamento tal como se amanha a terra
aqui moda-se um canto sereno e abatido
e molda-se um ser anónimo e convertido em produto
e convertido em animal abrupto sem pecado
não dói nada pois não senhor? dói apenas a ausência do peso
esse saco vazio a que já nem se chama peito
esse cristo lascado a que se chama de filho ou pai ou tio
hoje é o vizinho que se deixa na cruz do destino
porque ninguém sabe se morto ou vivo


a mim que me importa tudo isso
nasci no lugar das colinas
para poder estender o olhar e apenas contemplar
com desprezo, com desencanto e sobretudo a alienação
do desinteresse por esse pranto

porque o mundo é um grande gueto de fel
e falta de mão de obra para o mel








quinta-feira, 21 de maio de 2020

pela boca de cena / por la boca de escena



pisar de novo os claustros da cidade
o passeio extraordinário de um velho novo mundo
são as cores postais atraentes que abrem novas fachadas
o engraxador volta ao seu lugar na esquina da praça
os pombos levantam voo porque há agora passos
e na beira de uma rua esquecida uma maleta de mão
aberta convidando à curiosidade, mais que aberta deixada
um vestido de noiva, uma máscara, um sapato branco
e uma boneca de trapos de rosto amachucado
o homem pegou no vestido antes branco agora champagne
enfiou-o pela cabeça e apertou-o até ao pescoço
levou a máscara ao rosto e calçou o único sapato
deu a mão à boneca e desfilou mancando pelo túnel
que conduzia a uma das maiores artérias da cidade
passou pela esquina da praça e o seu olhar vago
olhos inertes debaixo da máscara que nem sorria nem chorava
cruzou-se com o do engraxador, fez-lhe uma vénia
abriu a mão da algibeira escapou-se um botão
um botão da cor do ouro para lá de uma viagem
abria em céu esgarrado um raio de sol cegante
o engraxador indicou que se sentasse no pequeno banco
o homem esticou a perna e apresentou o seu único sapato
nesse silêncio de sangue que escorre no corredor apertado
a linguagem do pano polindo de mais branco
não havia tal cor na caixa das latas mas havia um velho frasco de verniz
pincelou com toda a calma e mestria de quarenta anos de oficio
o sapato estalava na dificuldade de conter o pé um par de números acima
e quando levantou a cabeça, da máscara do outro escorria agora a lágrima
uma expressão de gratidão ou de comoção de se sentir cuidado
levantou-se com a imponência de uma noiva que se aproxima do altar
entregou o botão na mão seca agora limpa porque há meses que não havia clientes
o sapato brilhava batucando na calçada um novo ritmo
a boneca saltou para o colo esticou uma das suas pequeninas mãos
e por dentro da máscara limpou a lágrima
encostou-se ao peito do homem para escutar o seu coração
batia forte com o orgulho e a frescura de quem está a começar
uma vida, uma nova vida ainda virgem de atamentos e feridas
para desfrutar no passeio extraordinário de um céu agora mais limpo
de um velho novo mundo a despertar


por la boca de escena

pisar de nuevo los claustros de la ciudad
el paseo extraordinario por un viejo nuevo mundo
son los colores postales atractivos que abren nuevas fachadas
el limpiabotas vuelve a su sitio en la esquina de la plaza
los palomos alzan el vuelo, ca hoy hay pasos
y, en el bordillo de una calle olvidada, un maletín
abierto, incitando al curioseo. Más que abierto, abandonado
un vestido de novia, una máscara, un zapato blanco
y una muñeca de trapo con la faz aplastada
el hombre asió el vestido, antes albo, hora champán
se lo enfundó por la cabeza y se lo abrochó hasta el cuello
se llevó la máscara a la cara y se puso el zapato único
cogió de la mano a la muñeca y desfiló renqueante por la galería
conducente a una de las máximas arterias de la ciudad
pasó por la esquina de la plaza, cuando su mirada vaga
ojos inertes bajo la máscara, que ni sonreía ni lagrimaba
se encontró con la del limpiabotas. Le hizo una venia
abrió la mano, del bolsillo se le escapó un botón
un botón del color del oro. Para allá de un viaje
se abría en el cielo desgarrado un rayo de sol cegante
el limpiabotas lo invitó a sentarse en la silla
el hombre estiró la pierna y presentó su zapato único
en ese silencio de sangre corriendo por un pasillo estrecho
el lenguaje del trapo sacando el brillo más blanco
color ese faltante en el cajón de los betunes, donde había, empero, un viejo bote de barniz
pinceló tranquilamente y con la maestría de cuarenta años de oficio
el zapato estallaba en el apuro de contener un pie de dos números por encima
y, cuando irguió la mirada, de la máscara del otro escurría una lágrima
una expresión de gratitud, o la conmoción, por sentirse cuidado
se levantó con la grandeza de una novia acercándose al altar
le entregó el botón en la mano seca, limpia, pues hacía meses no tenía clientes
el zapato brillaba, percutiendo sobre el adoquinado un nuevo ritmo
la muñeca le saltó a los brazos, alargó una de sus chiquitinas manos
y, por dentro de la máscara, le limpió la lágrima
se apoyó en el pecho del hombre para escucharle el corazón
latía vigorosamente con el orgullo y la frescura de quien está comenzando
una vida, una nueva vida todavía virgen de constreñimientos y heridas
para, en el paseo extraordinario, disfrutar de un cielo ahora más limpio

de un viejo nuevo mundo despertando