segunda-feira, 30 de junho de 2014

A ceia dos aflitos

desfaz-se na boca a pele da malagueta
que se empurra com um gole de cerveja
bate à porta um homem perneta e uma preta
querem saber se ainda cá mora
uma tal de senhora D. Aurora
que era filha de relojoeiro e parteira
casada enviuvada de um qualquer marinheiro
mãe de três marmanjos endiabrados que hoje
já devem estar enjaulados ou então ricos
dizem que era curandeira
dos males do corpo e da cabeça
respondi que aqui só mora a poesia
e que pouco se entretém com curas
que sobrevive dos queixosos e dos aflitos
e que seriam bem vindos se viesse o vinho
e que essa tal de Aurora
nem tão pouco se conhece a história
mas que de histórias se faz uma boa ceia
e de uma boa ceia se enche a barriga
e que isso pode servir de alento à vida
ou pelo menos, à que mora cá dentro
ainda




Ainda lá está na plataforma a olhar o infinito



se chega à linha de mala aviada
para embarcar numa carruagem a dor
e manda-la para longe da vista
num bilhete de ida sem volta
e ela olha para nós, pequenina apertada
pedindo a mão para não ser deixada
como criança antes de ser abandonada
numa só volta, voltar atrás
ao momento em que a acolhemos
porque quisemos, porque escolhemos
e cabe apenas a nós cuidar dela
zelando para que não cresça noutro peito
como filha criminosa que não tem outro jeito
que a mãe não pode nunca voltar costas
o mundo inteiro assiste-se a esse direito
mas uma mãe não, do seu peito não se
separa nunca, ao invés, se transforma
em lágrima, saudade, nostalgia ou física
poesia de dor, filha do amor e da tristeza
e o pai? se pergunta se poderá cuidar dela?
por um dia, noite, uma semana, uma vida
ele não sabe ainda, que só ele pode cura-la
mas uma mãe receia sempre deixar a sua cria
confiar que com o mesmo empenho a embalem
a alimentem, a vistam de mais e mais sofrimento
para que cresça forte e capaz de possuir o pensamento
uma mãe quer o melhor para as suas crias, o melhor
de si, da sua vida, da vida dos outros e do mundo inteiro
nada lhe chega, um peito de leite amargo, de vazios olhos
e profundos abismos, uma mãe de morte e poesia da noite

e então
que chegando a velhas, juntas mãe e filha
olhando a labareda de uma lareira em cinza
de fracos movimentos, opiáceos momentos de apatia
no momento da partida a mãe sente uma dor maior
e nesse instante de ida, nasce dentro da barriga da filha
a morte em renovação cíclica do ventre, tal sina de gente
que não se escolheu ser gente, que não se nasceu contente
gente de um pai ausente, maior







Hoje é Domingo

na janela da rua do poeta
regam-se às oito em ponto
crisântemos amarelos e violeta
abrem-se com preguiça
cortinas de mágicos cogumelos
e o gato pardo ramelado
esfrega-se no parapeito

hoje é dia de passar o vestido
domingo de missa e bailarico
na mesa da cozinha se estendem
lençóis de farinha de trigo
e à rua correm as perninhas
do menino eusébio da silva
atrás de bola e das meninas
é preciso vinho e cebolas
trazer o troco nas ceroulas
hoje é dia de banho completo
vai o gato, a cadela e o canário
dia de véspera do salário
dia de jogo no estádio
dia do santo sair do altar
dia de namorar no páteo
dia da espiga ao campo apanhar
do topete armar as pestanas dobrar
e as pernas depilar
dia de mercado e do peixe assado
dia de visitar a avó no lar
dia de restos ao jantar
dia de reler a sebenta
dia de ligar a grafenola
dia de mecânica e costura
dia de arrumação profunda
dia de obra parada
e fábrica fechada
dia de untar as lâmpadas
dia de sesta e pança cheia
de sobremesa e digestivo
de cortar o pêlo ao filho
e as unhas ao marido
de beijar a bandeira e o cristo

e talvez mais à noitinha
dia de fazer mais um filho
porque hoje é Domingo

dia de Portugal


Os peixes


os peixes vêm no escuro
38 graus de rumo
águas de cacau 
mãos que derretem o coração
o rasgo violento 
da força da germinação 
de um tubérculo adormecido
laivos de expressão não só
depois de nascido nunca mais
o silêncio do ventre
roncos, uivos, gritos
de querer voltar sem canais
de bastar os olhos fechar
e de lá trazer vivos
os sinais do mundo dos mortos
depois de nascido nunca mais
de não se saber ao certo
o momento de dizer 
parto em paz porque finito
e desse gesto incompleto
de constante instante passageiro
ser então o caminho e o corpo
que se atravessa a si mesmo
porque

os peixes vêm no escuro




terça-feira, 24 de junho de 2014

Instante

partem na hora do lusco-fusco
onde o ultimo crepúsculo
se alinha na manta marítima
aconchegando a alma noturna
e deixarmo-nos partir com ele
ascendendo de estrelas e luas
uma cúpula de mistérios
de promessas exóticas nuas
da areia que nos sedimenta
sermos nesse instante
a praia inteira

a vida é somente um instante
onde estamos maioritariamente
ausentes, sem entrega, sem estar
sem verdadeiramente sermos
o sol, o mar, a lua e as estrelas
um corpo universal e total
onde a palavra é a maré
a barca passando em rodapé
o sal que a conserva em eterna

e no mar cabe tanta poesia
a profundidade em vivê-la
descobrindo escama a escama
uma rede que só a nós pertença
peixe, homem, estrela
que a mão que a traz à terra
tem a força da fome da vida

tem a força da fome da vida




segunda-feira, 23 de junho de 2014

o arame

um arame enrolado cai da plataforma
nas mãos de um enigma engelhado
dos confins do túnel da avenida
apertado das portas rebenta um touro
enraivecido, vai despeja-lo no lixo
e tal forcado citadino: é de ontem!
pela mão que o arrasta sem corrimão
a garota olhando o tecto arquitetado
e o passe que não passa, vai colado
lágrima que se guarda para a hora
da boca seca, da voz que se cala e dá
um nó na garganta, vendida, cobrada
na folha de vencimento biográfica
mas se tu quiser, vai ser minha mulher
o manequim debaixo do braço rua
abaixo, sobe escada e uma arcada
calçada esburacada e uma árvore
cimentada, onde pombos esticam
das entranhas uma cidade subterrânea
e pela calada de madrugada o poeta
esculpe o arame endiabrada vértebra
coluna cifótica que ao olhos do poeta
caindo da plataforma
lordótico enigma





Não É


não é?
as respostas pesam mais
do que as perguntas não é?
e que importam as respostas
quando deixamos de perguntar?
quando nos contentamos
nos achamos ter encontrado?
as perguntas chateiam não é?
incomodam como vermelhidão
na pele depois de um dia
de excessiva exposição ao sol
como água quente numa boca
que morre de desidratação
como chuva num dia planeado
de passeio
como um livro a quem não sabe
lê-lo

as perguntas incomodam mais
do que as respostas
perguntas há muitas
respostas há poucas
por isso nos contentamos
com as poucas que temos
as outras,
moem e ruminam
no nosso pensamento

ideias de descontentamento
ideias de não entendo
ideias de não sentido
ideias de não lugar
ideias de não ser por não
saber estar
ideias que nem o são
porque não nos encontram

ideias que só servem
para nos moer os cornos
e no entanto, ideias que
ao contornarmos, esquinas
que não convergimos
serão ideias de vazio
que em nós plantam
o estar não vivido

e estar só por estar
confesso
que prefiro
o não estar
com todos os desvios
que isso possa provocar

sim porque a morte
só pode ser um desvio
de um caminho que fácil
descreveu-se respondido

é assim não é?

domingo, 22 de junho de 2014

Vai mergulhar?


na sombra árvores extravasa
um rio de manhã enevoada
acordando inclinado
para o lado negro da margem
detritos de espuma e trovões
podemos ouvir ainda batendo
nas pedras da margem tábuas
um rapaz cauteloso atira-se
se não estivesse tão mergulhado
montado no seu cavalo marinho
poderia calcular o logaritmo
tocar nos botões de lítio
e à superfície encontrar-se
no silêncio cardume e lismos
de ideias que se embalam turvas
ir ao fundo da consciência
e não carregar nada consigo
tudo fosse rio abaixo ao mar
afoga de sufoco a ação de nadar
-se eu ao menos lhe pudesse tocar
saberia o limite do fim mas
tudo são areias que se movem
correntes de finitos que se anulam
e montado no seu cavalo colorido
odisseia de pótamo a neptuno
meio ser vivo meio estar morto
tomou como demanda o caminho
estar em movimento ainda que
sem conhecer a tona o limbo
e mais a outra parte do mundo
apenas rompantes raios
de um sol resolvido lucarna
de um estado de segurança
subaquática



sábado, 21 de junho de 2014

Ramos Imagos Paralelos

acordar com a chave na porta e um ramo de rosas
acordar repetindo...esta não é a minha casa, esta não
é a minha casa, esta não é...já te tinha dito que sinto?
acordar dentro de sonhos dentro de sonhos dentro
e segurar na tua mão sentindo-a como real, sentir
que a ideia de solidão é parafraseada de um diário
de inconstantes universos que se desmantelam ela
que se revela rosa encarnada agora, do tempo agora
e deixa-la de cabeça para baixo para que seja eterna
vira-la pendurando numa parede branca cada pétala
caindo cada quarto um pânico, o tempo cavalgando
a horas de sonho brando inquietamente quebrado
por elementos estranhos serpenteando onde está o
wally? a ninhada de gatos ausentes e alguém que
encurralado procura uma porta aberta, saindo para
a rua procurando quem estava lá dentro, quem se
esconde numa cama já desfeita, de lençóis usados
onde se escrevem repetidos pedaços do mesmo
tecido de que foram extintos os sonhos há muito
perfeitos e no entanto, acordando desse jeito desse
modo tão poético e desejado, nos lábios de uma flor
encarnada, te desejo poder manter presa dentro da
cabeça, essa ideia de acordar com a chave na porta
e um ramo de rosas










You are the perfect Husband

amanhã manda-se lavar a roupa
na lavandaria
da que sobrou inteira meu doce
não te preocupes com o piloto
esta avioneta aterra sozinha
mira, da janela caem estrelas
se olhares do fundo da garrafa
até parecem cometas 
lá em baixo as ruas de ninguém
os teus lençóis, também
não te esqueças de dar comida 
ao peixe ao gato e à tartaruga
e apaga o cigarro 
antes de adormeceres
não no prato centenário da família
tens comida no frigorífico
pornografia, música e poesia
o despertador toca lá para o meio dia
o fato está passado atrás da porta
e o meu amor por ti é loucura

para o ano estou de volta
Teu
R.






Road 666


cadillac ácido asfalto
hotel cidade do inferno
destilado em copo baixo
do bar ao quarto porta 33
darling, na ponta dos dentes
queimando um cigarro
na ponta dos dedos, tecla
zapping
das paredes cai um recorte
o roupão de seda amarela
tatuada carpa e um dragão
quero que na porta se escute
a gritaria da puta de Xangai
e um anão lançando chamas
do buraco das nádegas
-deste quarto ninguém sai!



sexta-feira, 20 de junho de 2014

A um possível perdão dentro de nós


E guardou a carta que um dia haveria de ser enviada
muitos anos depois, já amarelada e enrugada
de cantos comidos por um tempo de gigantes medos
e pequenos gestos de repetição: perdão, perdão, perdão
ecoando no fundo do gavetão um passado desiludido
com a impossibilidade de ter sido vivido no futuro
-há amores que ficam eternos porque
foram interrompidos pelo gesto de um homem ou mulher
sem fé, amores que serão sempre perfeitos porque
nunca envelheceram junto ao peito
amores que não encontraram o tempo de conforto
do estar só porque já são tantos anos ou porque já nem se sabe
porquê e até aqui, numa visão sem fé, se espera que sejam
amores de perdição perdidos.
( é uma boa maneira de terminar esta carta:
deixando-nos num contexto de eterna perfeição
porque...não mais vivida, não nesta vida)





Iron Maiden

ela estava curvada
agarrava nas suas mãos trémulas
um pedaço de céu da noite anterior
e o gigante grunhiu:
-as tuas mãos são penas que ao meu rosto
se colam de mimo
e olhando para as suas
como pedras rígidas de calo
tonto aturdido
paralisado nas suas unhas
-medo de rasgar o céu donde caíste
de não poder devolver-te
se fugires estará o caso arrumado
irei fingir que deixei os olhos fechados
por um instante e que esse instante
teve lugar apenas no passado

Aninhando-se no seu gigante peito
a cabeça junto ao coração de ferro
ela sussurrou:
-já só conheço o inferno!




Probabilidade who cares!

coiote que atrás da porta se esconde
rainha que dorme de olhos abertos
fogueiras a norte alarme de lábios
momentos felizes atrás dos armários
em bicos dos pés avançam suspiros
carroça de torta camisa sem nódoa
fugindo pela calada feitiço de tonto

poço de raiva mistura de castas
mãos que se abrem de nadas
se faz de propósito
rasgando as páginas
de um texto escrito sem palavras

desaparece livre arbítrio
ninguém te quer por perto
os socos da ventania aleatória
são sopros de saboreada vitória
Ganha Ganha Perde Perde
uma arma na mão que se repete
e se consome de constante
fluorescência inocência
e a única questão que se levanta
é precisamente:
who cares?











quinta-feira, 19 de junho de 2014

Dano Úbio

um acto de truculência
de dolorosa ânsia cadente
imaginar como se descobre
a condução do fio de cobre
em que se retórica mente
e envolve um sol doente
dizendo baixinho: estou
bem, estou sem, bem sou
por aqueles dias, a mãe
arrumou-lhe os sapatos
descalçando-se a solidão
comovendo-se devagarinho
fazendo festas na cabeça
-trouxe-te um cordel
luz do farol e palavras de fel
e beijou-lhe a testa
num mundo de pavores
de noite os corvos rezam
insónias que a tarde sesta
um menino corado e gordo
de pulso atrasado e dores
lábios arroxeados e círios
e enrolando-o num cobertor
-pois não doutor!
Ondas do Danúbio
uma valsa ao benjamim
que se ria da tontura de vir
ao mundo quebrado
numa espécie de nuvem
que nunca há-de chover


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Caminhada Venturi

um explorador chega à costa
pronto para encontrar a última
maravilha, antagónica de si
empregando colossal a força
numa fiel balança de história
da sua linha biográfica pesa
momentos de glória e queda:

-só saberás que a tiveste tua
quando na verdade se perder
e por essa estreita passagem
fiel corcel de prata herdeira
da ventura, prova da dúvida
só saberás que a tiveste
como sempre
Tua






viessem chama-lo àquela hora
lançando uma corda ao fundo
ficando no posto intermédio
não do populoso continental
ou da ilha mais leste da vista

se viessem busca-lo intermédio
as naus realistas da indústria
do progresso tecnológico tecno
fornos de autómatos moagens
de capital perdido de margens

se viessem na hora sem tratos
aproveitando estar de estado
olhos fechados, e na fama de
progressistas obriga-lo a estar
em, parte do império totalizar

se viessem os
meio
acordados









terça-feira, 17 de junho de 2014

É

ritmo santo estruturar
caos ao demo fraturar
heróis homens de pé
cai um poeta sem fé
talvez haja um cabo
de perfeita lucidez
que encaixo no recado
num poema acatado
e que se disfarçado
porque apetece de lado
enzima cerebral fabrico
habilidade salto equestre
evidente sequestro natura
modelo de zénite à lua
corroída de tanta literatura
-ser um idealista porra!
não amar, perder tempo
somando chama e vento
que se consome por dentro
e tudo o resto. É foda.








Abandonar o bote
numa noite de tempestade
embora rasgado em diversos
elos, batendo-se de valentia
na força de todo o embate
utopiano, de audácia restos
de uma voraz presença
do dia-a-dia, e numa terra
longínqua, ver pedaços
dando à costa, virgem ainda
de reinos fascistas
e continuar cruelmente
nadando contra a corrente
numa necessidade extrema
de engolir toda a água
e de desidratação, onírica
morrer

Se fossem homens de verdade
que a terra afinal há-de comer






Pão de Açúcar

Pão de açúcar
de uma zona têxtil
cardio tórax lábil
-expertise de mão de obra
talvez, até fácil
roda a seu cargo material
ligeiro
sem grande êxito exterior
quando avança sem vapor
no encosto de uma aragem
de constante presença
e conforto
é estafeta de mar morto
e dessa humana comporta
temperada de senões
caldeiras, fornos, carris
de ferrugem esfiapados
fechar os olhos e ouvi-lo
na distância de um quilómetro
malhos, turbinas, vagões
música e eco de trambolhão
de impossível rota receita
e apiar,
em total miséria a uma terra
desconhecida
-e não é o que se procura?
Ser generoso, honestamente
guloso
de tudo querer conhecer
deixando de fiador
um transporte que nunca
descansa
que a qualquer momento
se apanha






Nascer ao contrário

andamos direitos
com uma inexactidão formal
de uma procura depressa
que creche daninha
corrigida pela secção médica
mantendo o hábito de dar à luz
de vez em quando

se podia uma pessoa nascer
viver e morrer
registada sem o encargo
de ser mais do que ser
e ali tinha o seu berço
tomando seus banhos
num total abismo de mão
que há-de apenas ser, não
chegando ao fim do turno
com aquela sensação
de ter estado a planar
sem o chão amassar

certas horas custam mais que outras
a peneira da contração operária
limpezas e arrumações
para uma constante iniciação
onde polícias sinaleiros
levantam a interpolação:
a vida deve ser mais que isto!
Vade mecum: subversivo
e voltar ao início: nascer e bater
com os cornos no chão





segunda-feira, 16 de junho de 2014

Na última curva, assenta

a primeira coisa que fez
foi chegar
decidido a ocupar
ali mesmo, um lugar
e na pressão insegura
largar finalmente o peso
e na surpresa de sentir
esse seu novo corpo
surgir de uma subita
leveza e avançando
foi-se descalçando
despindo o chão
estava tudo como antes
na escuridão da janela
abre então a vida de fora
faltava ainda o chapéu
atrás da porta
e na cama ainda coberta
ao encontrão abruto
um hálito espesso e ácido
de uma atitude férrea
-Sou Eu
E a sua voz mudou...
Ainda que ninguém tivesse
feito a pergunta.




domingo, 15 de junho de 2014

 Santas Noites


grudes de poentes 
aterrando na desordem

 pé de cabra
o vaso que cai 
na parte de fora 
da ponta d'um corno
já berram paredes
franzindo-se testas
cintila de perto
tudo velhas carcaças
sem tecto
Ó vós, tapadinhos
de rota veios vermelhos
batidos na minuta
no tempo de cautela
dos generais sem medo
a cerveja que entorna
da mesa escorre azulejo
quatro ventos peitorais
dóricos desejos 
o tal livro de cristais
donde vieram os cacos
hoje sai
anda à roda
santas noites da fortuna
de totais aluados
estilhaços 
que acordam abraçados


So Quiet

-lay quiet awhile
sorrindo de cortesia
lavando as mãos na pia
e impresso a telegrama
qualquer pessoa se despia
há terra de murmúrios
e caindo de sonos
descendo uivos ribombos
uma refeição de castelos
corcéis e meia dúzia de reis
o pudim que descongela
tlique clique tic desperta
no apetite papa-pito
calmas de esconderijo
se isso não for ofensa
o grão graúdo rijo
mantendo aberta espécie
de nesga, atira-lo um
ao outro, cão de fila
temos de certo a fantasia
e tapando um só olho
hexágonos de fim de dia
-lay stay and smile
awhile










fosse um animal de circo
invernal pegando devagar
palmas de pedaço de gesso
que visão ser mancha cega
chegar ao começo
de domesticado a docelar
e na manhã fresca
já passando das oito ponto
circulando de bola em bola
na cabeça uma chávena
entérica cafeína
vesga engomada a ferro
disciplina da baba
do desespero
estar trancado zoológico
e remexendo as ancas
timbrando grudes postiças
as velhas escorregadiças
moedas do bilhete de volta

visos de uma floresta egóica
Meca, o Diabo anda à solta








terça-feira, 10 de junho de 2014

Ainda por cima

se fosse nuvem invisível
cobrindo de sombra telhados
varinha de condão, laboratório
de solúveis muralhas de aço
ou madrugada adiantada
instalando caos na fantasia
a cutícula dura realista
uma mão cheia de bruxas
-quando posso começar?
águia real ladra de sete cantos
que no céu traça silábico
o arrasto de um verso raso
ainda por cima,
deixado ao acaso

se fosse licor de ervas trevas
e espuma que batem na rocha
aceno de barca espelho água
chegaríamos à ilha humanista
preparados para na travessia
deixar de parte o barqueiro
-andarás sozinho no nevoeiro
espesso traiçoeiro turvado
e dessa mistura de ervas finas
contra o mau olhado unha gato
encantamento que
ainda por cima,
deixado ao acaso

se fosse torre relógios de corda
futuro na forca e na hora louca
puxando fogo à roupa vassoura
a baixo da cama atirando poeira
sopro para desertos se despirem
em pisos de xisto escorregadios
das costelas calafrios sofísticos
aos olhos espectros e labaredas
de uma gigante fornalha alma
e do fumo saírem enfim minhas
as horas

se fosse
ainda por cima,
deixado ao acaso








O Aniversário

-precisas de um vestido novo
olhando para o uniforme cinza
e à noite quando se despia...
precisas de um corpo novo

na procissão de 15 de Agosto
no jardim do convento
-empresta-me umas luvas
sou capaz de romper peles nuas

ela olhou as mãos rudes
do trabalho que tardiamente
largava, se podia pedir tudo
e tudo nunca lhe chegava

a procissão de Agosto...
conseguia até calcular
adivinhando o momento exacto
do virar do seu pescoço

no declive
do seu sagrado coração
do seu perfume oração
a inconsciente prece
do vestido que vestes...









Line Up


há vagas de água massiva
alguém que corre para salvar
a sua vida
ideia de poeta?
vai depressa, aí vem ele
talvez um dia desista de voar
calaram-se os três
não fazendo ideia
franqueza enquanto há pernas
que nunca se estranhem
alcançou então a linha
onde o sono é mais denso
ainda há tempo para
estender a toalha e fazer dele
uma tarde de portais mágicos
reconheceu o apito do comboio
tornou a virar-se na cama
um rosto respirava
prendem-nos demasiadas coisas
a velha do dispensário
só as pessoas deveriam contar
o que os dirige, tranquiliza
do efémero à elegância
deslizar de nenúfar em nenúfar
e sobre a água então caminhar
ao invés dela fugir, surfar
os pés a tábua os braços a asa
vagas de tempo para amar





segunda-feira, 9 de junho de 2014

Auto de Parto

ao primeiro balanço
perdemo-lo
esse sopro que de tão breve
nem chega a ser nosso
que deixa escapar da garganta
um grito
que alguém deixou cair entre mãos
à coacção da corrente
olhando de vez em quando
a mulher que ajoelhada rezava
e do seu queixo longo
uma lagrima deixada
ao vento

na primeira manhã
a fuligem ainda do ventre
e na caixa do café
a nota para o amanhã
para crescer e ser: fé

coagido pelas asas, da distância
uma bussola avariada, estrangulada
pelos pés de um gigante terráquio
numa lata de afecto condensado
a muralha a canoa o telegrama
de tudo ser notícia de ontem
que uma nova vaga de pressão
de incrível simplicidade se estende
vociferando a tentação onírica
berrando remando sombreando
a água, que passa ao lado
para ser cultura de cegueira
de que não havia de encontrar
nenhuma outra alma gémea

-o homem e a arma



afroxou passo sem saber observado
faunos estátuas no centro da praça
uma gaivota levando no dorso o fio
que a mão mais alta há-de colonizar
-nesse caso a rapariga seria a vida
e ao chegar a casa deixou encostar
a cabeça na parede calcada de horas
apertou a mão dizendo adeus e até já
o grifo preto na espreita do instinto
comendo da fenda a estrutura limbo
deixara-se cair pesadamente ao chão
espelhos de espelhos técnica ilusão
a cópia autêntica suspensa de vácuo
desintegrá-lo não seria capaz, e faz
um mal terrível ao músculo a retina
que se enlagrima de experiência fina
e no sal se conserva a mais solitária
das palavras: amor





lá longe, tão longe
a letra miudinha a cinco chaves
capa de couro...folha de neuras
tornar-se prestável e decifrável
uma lebre la femme l'ancienne
de boca em boca... Primavera
de heróicas tragédias, cativeiro
perguntando pelo desembarque
da chama que ainda arde

no vestido de algodão azul
cintado a cordas um balão
por caminhos de ar e ocre
espiritual a um rosto doce

-quando penso nela, existo
na alvura que é capaz
de consagrar-me em uma
por ti resiste um poeta triste

passando a ferro o grão
de áspera a seda juro-te
que tenho a boca seca
aninhando-se na cabeça
simples e redonda
a terra inteira




quinta-feira, 5 de junho de 2014

O cozido

quando voltas para casa?
parece que acabaram as compotas
e o leite vai azedando e as frutas
apodrecendo
e o homem meteu a chave na porta
numa invenção pirotécnica
de domingo em dia de feira
e escondendo-se na arca de pinho
esperou pela mulher anã sardenta
o balão que a há-de trazer de vénus
deixei os vidros abertos
e a mesa posta para o almoço
hoje sou discípulo da tontaria
e no decurso das leis da fantasia
o homem foguete morreu sufocado
e a mulher anã caiu pelo buraco

terra do nunca seremos gritos
de braço armado, de fonte caudal
pérfido conto da fundação tomada
por crianças órfãs de assombro

-Céus! Sinto engulho por tudo
e se rompem as matrizes do sonho
- E se ainda não está morto,
                       vale tudo!

Seja Tomada

o infortúnio saiu de dentro de um vaso
quase rosto abraçou os sonhos ditosos
sôfrego de pequenos espaços raiados
ahorizontados de almas não penhoras
e no espírito perdurar florindo ordem

era a sua mãe quem deveria chorar
bateu enlevo de ver chegar de novo
um cão imundo mortalmente parido
levedando, água de rosas, afilhando

ingratidão flagrante, se recomenda
bandeado, o padre em água benta
-hás-de punir cada palavra esmola
a ti caída alma, canónica vingança!



terça-feira, 3 de junho de 2014

lendas de carne e osso
que constroem nações
onde pára a indiferença
condenados à liberdade
penhorados pelo tempo
de necessárias traições
ou travões ao caminho
de pensamos estar certo
palas impostoras o medo
tornando se fascista e só
aliena almas do coletivo
para do céu ao umbigo
no limbo ego vencido
no ponto final do nós
de cotovelos a joelhos
acordeão ao chão
brutal, direto, ligeiro
ao buraco do homem
a cova da não vida
da terra coberta a pá
na sua mão sempre
estará

sermos dandys em panos ilegíveis
ou lençois de incríveis planos
e explicar que o mundo se explica
de uma forma doce e simples
apostrofando mais tarde, tão tarde
o sentido inato das coisas de facto
encontrando razões e desejos
onde nos desistimos de nós
mas tudo isso é fraco incurável
impotente ar puro que nos asfixia
de não sermos capazes de depois
acreditar que é real, que somos
de uma total fragilidade especular
na hora dos bivalves, fechar
-minha doce acrimoniosa dor


segunda-feira, 2 de junho de 2014

ninguém escapa ao balanço
deste barco que deriva, escolhas
que podemos até chegar à lua
mas à nossa casa voltamos
que queremos fazer dela
conquistas, materiais pessoas
que gostamos de nos seduzir
em marchas e cornucópias
marchando apostas na loucura
-quando eu era garoto amei aos
três anos, não sei como se pode
amar assim, mas sei que amava
a lua é mais russa
os russos bebem vodka pura
a vodka traz à lua mais lucidez
a lucidez só pode ser russa

ou talvez pura



Nutri bem

fitou-o no vácuo
-eu estava cego, agora vejo no claro
fixado no cálice de vinho
no alto da vista o nevoeiro
ou acima da cabeça o peso
contrariado com extrema leveza
comprou o jornal
na página dos classificados
o seu próprio contacto
convidado a opinar sobre nada
mas convidado com destaque
caía de surpresa em surpresa
porque não estava preparado
para ser uma vedeta
que a miséria humana
ainda vende na banca
de resto tudo mistela turva
clínica papa nutritiva
onde não se distingue
o bacalhau da espinha



e sacudiu a cabeça devagarinho
apertou-lhe as mãos com mais força
num suave desfalecimento
o cigarro na borda do cinzeiro
começou a bater saindo do registo
tornou a fecha-lo de seguida
razões de não existir terminado
completo ou inteiro
de dormir segurando na orelha
há vida lá no outro mundo
na quietude do quarto escuro
familiar hóspede sem atrito
tenha o cuidado de colocar
os sapatos fora da cama
e expirando de alívio
jogando areia nos olhos
escutou: a história da vaca

ou do cachorro que mordeu
a vaca

the living-room


a sala para viver
encontrar nela as paredes
para decorar de polémica
desarrumar
trocar de lugar
de bom gosto e ternura
onde cabem calçadas
e vitrines de rua
onde passam eléctricos
e carteiros e cautelas
onde entram e saem
pessoas
um sofá onde se beija
um candeeiro de luz acesa
onde se encante e esmoreça
em bicos dos pés se dance
um quadro, móvel, um vaso
um gato deitado no canto
um livro aberto ao acaso
ou bibelot ignorante
um retrato distante
a paz, o segredo, o choro
com muito ou pouco açucar
o chá das cinco
o almoço de domingo
a criança que gatinha
o andarilho que claudica
o silêncio e o barulho
o fumo e o incenso
onde o tempo é longo e curto
a sala
de espera




São rosas


cicatrizando
uma ostra do profundo oceano
um pássaro dentro do peito
que das costelas te liberta
batendo asa contra o muro
o tempo remédio de tudo
para os excessos do mundo
deles trazer de volta à mão
a palavra forte e monumental
espiral lírico comunhão
de ser parte de céu e terra
e do pão que nos alimenta
paleo belle époque
e do seu manto se abriram:
éclairs de apoteótica alma

Peixe Amor

Acordar com fome de mar
de azul e pele, de prata e espuma
fascinado com os pés molhados
de só existir areia e conchas
corpos nus que se entrelaçam
numa rede de desconstrução
métrica sedimentação na barriga
o arrepio de uma onda perfeita
de sentir que somos praia e céu

e que eternamente ao mar
voltamos