terça-feira, 24 de março de 2015

Ainda em desbloqueio. É feio.



I

Os degraus a tropeçavam, não havia outra hora para expirar uma manhã que afinal começava. Tanto de si se perdera nesses saltos que a pouco e pouco, a lua se esboçava de transparências que a alma cuspia de noites sem sol.
Míria se encostava ao poste. O autocarro deveria estar a chegar e no seu relógio pouco sono poderia alcançar. Tudo poderia ter sido de um outro universo a menos que lá muito atrás, tudo tivesse sido diferente. 
E em todas as línguas o seu corpo exprimia o mesmo desejo de se elevar como um anjo. E não tinha passe. E não tinha outro rosto que passasse despercebido para no torniquete do turno da manhã as olheiras se desconectassem. Esse analógico avatar que insistia em se projectar de dias que ninguém queria acordar.


II

-Mas porque me estás a perguntar se fui capaz de ler? Não estava já tudo cansado de ser?
O sol se erguia de coragem. Lutantes de alma esfriada por tempos que ninguém mais queria ter dentro. 
-Sois comunistas pois então?
O mundo se compelia de barulhos. A infância extasiada de mundos que não foram sonhados por estas cabeças. Ideias que se emprestaram de capas de super-heróis onde a queda nunca foi mais de primeiros andares, 
-mas e então? Estais convencido que algures me comeste o dom?
Mito para além do som. Porque o silêncio é um estrado onde ninguém se chega à frente. Deuses que não têm vontade nenhuma de ser gente. E depois, todos andamos um pouco às avessas de estarmos fartos destas roupas. De nos entornarmos de notas falsas. E ainda. de nos aventurarmos por montanhas de malgas infâncias perdidas. 

-talvez tudo tenha sido um crime. E nos tenhamos alienado de um papel de cenário. 
Pois foi por isso que correu colina a dentro, antes que o sol fosse noite no Alentejo. Enfim um espaço se definia, daquela janela tudo se corria como a flanela que o frio protegia. 
-Mãe, teria tanto para confessar-te na igreja. Mas o Cristo parece que se embriaga do nosso sofrimento e quanto mais água, mais afogamento.

III

Por isso, por fim o cão tinha o nome de Napoleão. O primeiro de uma geração que haveria de estar em comunhão com um quê de ainda quero escutar a canção da manhã e por outro lado, não quero dormir a teu lado, meu mais querido futuro enjaulado. Estamos sempre do lado errado não é? Pois se assim não fosse, esse monte Alentejano nunca teria sido o meu predilecto abrigo. E no janelico, onde tantas auroras nos havemos amado apenas com beijos roubados nas grades que a mão haveria de acordar, esse janelico, haveríamos de recordar. 
E eu posso correr colinas subidas enfim. Até que o sol se canse de mim. E de que me vale tudo? Se afinal nunca seríamos melhores amigos e muito menos donos de uma terra de frutos. 
Vá lá dança. tudo nós nos cansa de tanta vida tão intensa e depois. Pequena,

IV

Haveis feito uma pausa em toda a vossa oração a nossa senhora? Talvez toda a palavra tenha sido corsária de uma alma perdida sem infância. Todos sofremos de uma certa ausência. Como se nada nos chegasse e tudo nos parecesse uma capa de super-herói que na hora da queda, é animada. Haveis feito as pazes com o vosso passado? Pois isso é mais do que necessário. Depois, tudo para a frente é um armário onde se arruma o que se quer para nosso estádio. E tudo tem de rimar? Não. As ruínas que nos deixaram os nossos pais são tão ingénuas. Não somos nem donos de uma qualquer presa. Somos só pessoas que anseiam viver demais. Hoje era para se escrever um conto, em prosa se haveria de descrever um outro. Tão ouro para quem se deseja num outro universo que não este. Mas que pode este de tão pouco? Pois parece que já vivemos tudo e a morte não nos chega senão no luto.


V

É tudo tristeza de estarmos para aqui a falarmos sozinhos a estas horas. 
Mas as lágrimas são a mais bela prova de estarmos ainda vivos. 


VI

Míria vivia numa casa térrea singela mas familiar férrea. Onde os seus irmãos queriam tomar posse, ela ainda procurava que a mão fosse um cordão de dois mundos em colisão. Só precisava de tempo e dedicação para que o nascer se revelasse novamente no seu olhar e perguntasse - que estou afinal a procurar?
E depois se vestia, depois do banho, se pintava e penteava de senhora do dia. E para ele olhava enquanto dormia. Tudo de uma terna calma que a deixava anestesia. 
-É que no tempo em que vivemos, alguns de nós têm de ser dois dentro do mesmo.

P.S.
Porque Míria aguarda ainda pela sua história. Dentro destas memórias de desabafo de impasse por tanto que não se passasse. Mas está quase. Já move de dentro um rápido alento. Como se tudo estivesse encubado no tempo. Apenas apurando o melhor de todos os graus de um tango que se tem dançado sozinho na mente de um sem-aflito porque a poesia lhe tem sido, abrigo. Calma, quase, passo a passo, a letra se encosta na linha e a história se chama, chamando, chamamento de suplício de vindo por dentro ter mais um deus a falar pelo vocábulo ventre. 

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