quarta-feira, 31 de julho de 2013

Bossa Velha

Cai um gato pardo
no prato o retrato
e sobe uma escada
de massa folhada
tudo embaralhado
e dentro quadrado
que febre tu sente
quando se esconde
no monte vendaval
no ventre vai mal
será a solidão não
dedicação coração
que ninguém deu
a nota do adeus
é lindo demais
e muitos mais ais
passa a ferro
está amarrotado
afia me o lápis
ou escreve a giz
por essa rua
e ela toda nua
aterra melancolia
poesia e maresia
continua tu agora
já passou a minha
hora





Sol Jazz

kings can be wrong
about one only song

o sol alaranjando o horizonte
deixando na areia o dia de ontem
e agora diz-se sozinho na noite
que a sua amante estranha foi-se
escondido debaixo da terra
em lençóis oceânicos de flanela

easy living
being me myself and i
or an empty lie

vai-se distraindo com as estrelas
umas mais estreitas outras pequenas
mas é no colo dela que se acalma
a labareda que lhe consome a alma
e ela cansada de uma vida pesada
fez-se à estrada de mala aviada

lady sings the blues
all or nothing at all
crazy he calls





terça-feira, 30 de julho de 2013

É a merda das palavras. Mas porque é que não nascemos mudos?

Pois

Salta a tampa da carica.
Ou será a etiqueta que está mal colada
e agente se espreita apenas pela gaveta?
Mãe grande, de voz soante
assim de rompante faz-se pequena
quando se pisa numa palavra
um sentimento de verdade
Deixa lá filha, tudo passa
como uma ilha destacada no mapa
analisa e procura a coordenada
está debaixo da almofada
sonha dorme idealiza
que depois só ferida
e toda uma vida
que jeito moço
deixa lá chegar ao miradouro
somos todos feitos de ouro
e lá se avista um tesouro
ao espelho, o próprio



Cadáver a Um

Arrecadou-lhe o medo e ataviou-se de segredos.
E passado algum tempo voltou a vê-lo. Ao cotovelo.
Diz que é a parte mais dura do corpo. Se bater de novo.
E anda dias que nem se lembra outros há que só lhe vem à cabeça.
Este lago tem patos. Cisnes talvez, negros. Debicam-me os pés atrevidos.
Anda à roda, anda à volta é um pau de dois bicos. Que se fosse e não voltasse.
Já reparaste que não segues a última deixa? A ver se a velha se guarda da janela.
Tenho vontade de te morder. E não tenho dentes para este osso, vaidoso pescoço.
Diz que a cassete agora serve para enfeitar a parede, a mim me consta que lá vem sopa.
Ai, que se embaralhou a moça. E a voz que anda rouca. Áspera, senhor, à espera de amor.
E vão duas e são todas, as pombinhas andam loucas. Vá sacode a roupa e na corda me prende.
Gente, gente, gente...fazem tanto barulho as abelhas, e mesmo rente às orelhas agente aprende a vê-las.
Ora viva se não está ainda morta. Tenho os lábios secos, deve ser uma anedota. Bolas sempre fechada a porta. E agora, que nem sei se entre se fique cá fora. Olha namora há anos e depois lá vêm os tédios. Naqueles prédios mora gente esquisita. A etiqueta dizia para tomar em doses pequenas. Tão natural como a sua sede. O texto está torto. É a folha que o entorna. Na concha coloca assim, um pedaço de mim. Gosto do teu perfume. Fume, ande vá que nos falta o ar. Está quase a acabar? Então ao início há que voltar. Comprou um cão. De raça indefinida mas diz que é segredo para a família que é muito fina. E só me contou que vem lá de cima. Do lado esquerdo onde dói o peito. Que merda sem jeito. É defeito com efeito. E a culpa é do texto. Que se foda. Toda. Assim a meio da linha?

E...


Virou as costas ao vento, analisou o céu e calmamente, abriu as asas e deixou-se cair.
E acreditando poder voar, a meio da queda, levantou voo. E um prazer medonho tomou-lhe o peito de seguir em frente. Por vales, subindo a montanha, em direcção ao sol.

E lá no alto, seguro de si, contemplou a pequenez de baixo. Cruzando-se com outros anjos, sorriu. 

Deus andou por aqui, num rasgo cor de rosa, descoberto de uma nuvem, um arco-íris. Cheira a água de colónia. A pureza, a leveza, a liberdade. E asas batiam, gigantes, dos seus ombros sentia-se a textura de cada pena. Branca, macia. Batendo, para cima e para baixo, escutando-se apenas como vela ao vento. 

E seguiu rasgando o céu do mundo. Por desertos, oceanos, florestas. Perseguiu o horizonte faminto de vida. Inchando o coração de ar fresco. E a vista de suprema sabedoria. Se pode uma vida ter apenas um dia. E voando mais depressa agarrou o tempo. A cada segundo um batimento. Um, dois, três, quatro, cinco..e rasante, planando apenas leve. Quase como parado. Como se não existisse. 

Uma lágrima deixa cair. Tomando a ideia de se deixar cair. De não bater mais as asas. De planar até a força da terra o começar a absorver. De ser puxado engolido pela desistência. E contou, um, dois, três, quatro, cinco..fechando os olhos, vertiginosamente, a queda. Da rapidez a absorção. E cada vez mais depressa e o embate crescendo alastrando terreno preparando um corpo cada vez mais pesado. Ainda vou a tempo, abro as asas e seguro-me. Ainda vou a tempo, será que quero? 

E na última chance inspirou e abriu as asas. Sentindo no peito a copa das árvores a uma velocidade cortante. Força, com toda a sua força. Última chance de se erguer. E ao conseguir equilíbrio, procurou um poiso no chão. E lembrou-se que tinha pés. Lentamente, o seu corpo permitiu-se à verticalidade. Primeiro um, depois o outro. Suave, a frescura da terra lavando a palma. E caminhou encolhendo as asas. Acalmando no peito a dor da queda a que se salvou. E ao caminhar as suas penas começaram a cair, primeiro algumas, depois todas. Nudando a pele das costas, deixando uma carcaça de armação que antes fora asa. Que se escondendo, guardou dentro das costelas. Nunca mais poderei voar. Condenei-me à terra. Salvando-me. E deixou-se cair sobre os joelhos em desespero. Chorando desalmadamente. Olhou as mãos, ainda sem calos nem rugueza, macias de nada enterrou-as na terra húmida. E remexeu esburacando fundo mais fundo até chegar ao cotovelo. E do cotovelo penetrando meteu a cabeça mergulhando argiloso a dentro. Todo ele, enraizando tomando o corpo de semente. E da ponta dos dedos filamentos engrossaram e dos pés uma folha verde saiu ao mundo. Crescendo o sol e a lua confundindo-se. E uma árvore se ergueu aos céus. Silenciosa, frutosa, imponente. Anciã solitária. E um pássaro pousou-lhe num ramo. Acolhido criou um ninho. E vieram homens e colheram os frutos. E uma casa e depois outra, à beira da sua sombra. Crianças correndo, baloiço, cães e gatos. E um dia um enterro, alguém é deitado nos seus braços debaixo da terra. Lá bem na escuridão, ainda os olhos fechados, em simbiose comunhão. E o anjo acordou então de um sono profundo de noite. E foi nesse momento que pode finalmente regressar ao céu carregando a alma desse alguém que partiu, abrindo-se a terra à ascensão. Ao chegar entregou-o nas mãos de Deus e pediu-lhe caminho, sem escolha, que fosse Sua decisão. Serás, o Anjo da Morte. As lágrimas cobriram o rosto manchando de negro todo o corpo. E voltou a Deus pedindo uma razão. No momento em que deixaste de bater a asas, escolheste. Desesperado em fúria, virou-lhe as costas e desceu ao Inferno. Procurando uma fogueira queimou as  suas asas negras. E deixou-se caído a um canto. Entregue ao vazio condenado ao tempo por muito tempo. E um dia, Deus estendeu-lhe as mãos e disse-lhe, compreendes agora? Vem. Para que serve um anjo sem asas, para que servem as asas senão para voar? E o anjo arrependido sorriu. Obrigado. E nunca mais deixou de voar. Pelos céus, em liberdade. 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

pedra sobre pedra, batendo o mar contra a rocha
e uma flor sozinha, baloiçando no topo do monte
e lá casa simples, no alpendre o chapéu de palha
e a lenha sendo cortada pelo machado de bronze

coroa de bem me queres, rodopiando na cruz
vestido branco aconchegando um corpo macio
Primavera que chega, seara de extensão e ouro
e na boca um tesouro, sabendo a começo luz

e na pele morena uma voz pequena de criança
crescendo no caderno das letras, e nas gavetas
as toalhas de mesa, dobrando a vela do recado
de deixar de lado poeira tristeza, chama acesa

por essa terra imensa











sexta-feira, 26 de julho de 2013

A aproximação de um bêbedo
-qualquer coisa caiu ao chão
não sei se dos cabelos
Agarra-lhe na mão e caminha
vamos até ao argumento
bom sítio para fazer um texto
-mais depressa que nos alinha
Em Hollywood era papel
aqui biografia de atropel o
ou os que raio de esquina
bate com a testa na menina
Esta rua é uma montanha
e a morsa arrasta-se torta
e o xilofone levanta nota
e outra que nem combina
que música de alminha
tétrica
e se fossemos a Las Vegas
podíamos vestir as cuecas
tenho comichão na boca
a Roma sim o pápa
ai que dor de cabeça!






Focus

espancando pessoas

é o género de coisas

recalcos cozinhando

entorpecido pêndulo

espírito knock-out

ao frio de Inverno

de brutal silêncio

acredito Newton

que somos maçã

ao canto do olho

caixote convulso

boca entreaberta

exalta criatura

socorros raivosos

ao calcanhar renda

que tremenda luta

gabando a morte

puta de merda

fanática sombra

atado de doma

lugar inferior

fortuna a fora

agarra agarra

agora



serão amarguras que te movem
potes de secura o poço da sorte
te lembras do túnel velocidade
raio de luz escasseando o norte
é um cigarro que chega ao fim
um copo vazio lugar de jasmim
jogando palavras em cadáveres
duas colheres de doce saudade
busca finita por um só coração
um hino à elevação

se pode um só momento existir
que prove universo em sentido
da raíz do medo deixar amargo
e um barco ao largo se partindo
lentamente afundando o tempo

os meus dedos tocam te lentos
espaço imaginário e suculento
abrindo fechando movimento
batimento
confesso
simbiose
abstracto

é o retrato de só que escava lá
levando mão ao peito encaixo
o teu dentro do meu



quarta-feira, 24 de julho de 2013

Maria da Guarda - Versão para acabar noutro dia...

Atravessou a rua e parou diante da porta. Porta feia de metal absolutamente banal. Tocou à campainha. Duas vezes e esperou. Impacientou-se olhando para o relógio. Três da tarde. Hoje é quarta-feira e eu chamo-me Maria da Guarda. Havia alguns dias que fazia este exercício para si mesma. Um teste totem à realidade. Acaso de se perder pela rua ou até mesmo durante o sono. Cruzou os braços e descruzou-os novamente para ajeitar o cabelo. Confirmou o cheiro dos sovacos e o hálito na mão. Está tudo em ordem. 

A campainha toca duas vezes. Da segunda vez o som tal giz em quadro de ardósia rasgando o tímpano onírico. Que horas são, que dia é hoje? Abriu os olhos colados de ramelas salgadas. Tinha adormecido a chorar embrulhado no peluche que normalmente apoia e entremeia os dois joelhos. Magro que nem um espeto, Luís Filipe procura o telemóvel na tábua assente em livros que serve de mesa de cabeceira. Sim, é quarta-feira. É o dia da Maria. Permite-se alguns segundos ainda deitado. Eu devia ter um comando para abrir a porta lá em baixo sem me levantar, seria mais cómodo sim.  

O trinco da porta liberta-se e ela sobe os dois lances de escadas onde o cotão se desenrola nos cantos obscurecidos. Prédio sinistro este sem luz. Apalpando pelo corrimão é a porta encostada que lhe indica a entrada. Como se não a conhecesse, entra na timidez de um estranho que procura outro estranho. Já estás levantado, estava a ver que não me abrias a porta. Um tanto amarrotado, fá-la segui-lo até à cozinha. Podes começar pela loiça enquanto eu vou tomar banho, depois deixo-te a casa livre. Estás gira hoje, ficas para jantar? Ela sorriu e disse que sim. Então, faz-nos qualquer coisa leve, hoje sinto-me pesado. Dormi mal, muitos pesadelos. Até já, e seguiu semi nu pela casa a dentro. 

Maria parou diante da pilha de loiça respirando fundo. Restos de comida da semana inteira e moscas atracavam-se como momentos vividos naquela cama. Momentos doces e amargos. Que ela procurava esquecer de regresso a casa, esquecer como tantas outras coisas na sua vida. Uma amnésia de conforto que lhe permitia levantar-se de manhã e arrancar com o dia, um dia igual aos outros, todos menos quarta-feira. 

Matrioska

Nunca estamos verdadeiramente sós
lá dentro muitos e tantos outros estão
de matrioskas, mais pequeno embrião
de quem somos ao mais ínfimo óvulo

abrindo aventureiro e destapar o ócio
para saber o que ser chegar ao último
de todos o finito, compacto e sincero
original tesouro profundo e si mesmo

mas viver numa brisa de cortina sina
não será tão mais planante vida boa
de quem a ousadia dorme na alcofa
do que pede um colo ao que sonha

poder gigante céu tocante e alcance
estalidos garridos na barriga medos
nómadas inquietos de buracos sede
apanhados na rede do êxtase:  crer

e um murmúrio fosso chama a nós
que teme a dois esse voo abismo
amanhã, e que depois talvez sós
se exista nunca amor malabarista

inferno dúbio a bruxaria babilónica
tão depressa ao núcleo e a queda
numa fusão de místicas labaredas
dói mais que atirar te como pedra

não saber de que é feito esse tecido
talvez seja pior do que dele ser feito
porque não morre o batimento certo
dentro de um peito que é só deserto

passando o tempo uma outra ainda
essa boneca egóica marsupial filha
será tempo de heróica surreal ilha
e do encontro viver apenas minha

e choro de nervos amaldiçoando
a tentativa de encontrar o destino
está lá dentro e mesmo sabendo
inverto movimento e encaixo me

e uma e outra e todas
até ser gorda, camada
de negligente procura
para fora e para nada!













terça-feira, 23 de julho de 2013

Maria da Guarda - Versão Parola


comprei-lhe uma cesta de vime
deixei-a na estrada e disse-lhe:
-gente caída do ventre
que te dê boleia ao oriente

ainda menina em corpo de leite
sozinha despida de mau azeite
cândida rolada à mão da enxada
o mundo avista no fim da geada

sou camionista de voz sulista
quero te bem onde ninguém
deixo-te carga amargurada
e assim Maria emprenhada

e da barriga sai a dor parindo
e já são duas ao mundo pedindo
santa que me acolha nesta hora
tende misericórdia e uma cama

vai lavando escadas de gachas
nas costas a idade dobra vida
de crescer e amar uma criança
que fora sem ventura a fiança

-mãe, o que é ser-se feliz?
para mim é ser mãe, para ti
é seres alguém









segunda-feira, 22 de julho de 2013

O Anjo

E um rasto de sombra deixou
levemente atracado a si outro alguém
inolvidável depois de tocado
E o tempo não trouxe descanso
que onde estava um, o outro
simbiose a quase viver de te ver
Dou um passo na tua direcção
e eis que te vejo desenhado no chão
levanta-te e abraça-me ou parte
que em mim não cabe mais que eu
e do medo se ergueu, apocalíptico

o anjo demoníaco

domingo, 21 de julho de 2013

Receita Libertina

Ingredientes:

1 mollho de histórias idênticas já vividas e revividas
1 pitada de idealizações de perfeição
1 pitada de autocomiseração
54 kg de exaustão corporal e mental
(ajustar ao peso de cada um)
1 colher de sopa de culpa
1 colher de sopa de desespero
1l de caldo de ideias suicidas
0,5 dl de vitimização do outro
21 g de vazio
4 a 5 ramos de insónia
1 folha de poesia vazia/dia
1 ou 2 dentes de pânico/ dia
ansiedade ligeira q.b.
amigos para saltear
álcool e tabaco para temperar


1. Faça um refugado com os amigos, álcool e tabaco
2. De seguida junte a ansiedade ligeira e deixe tudo queimar
3. Meta tudo isso no lixo e guarde a frigideira sem a lavar
4. Salteie o molho de histórias até pegarem fogo
 e a vitimização do outro e meta no lixo também
5. Deixe a arejar até ganhar bolor durante vários dias
 a exaustão corporal e mental com uma pitada de autocomiseração
6. Vá regando esse preparado com culpa e desespero,
temperando com insónia e ansiedade, rectificando sempre o tempero
7. Leve ao frigorífico durante alguns dias, acrescentando
ideias suicidas q.b. e à parte vá recolhendo a folha de poesia,
deixando-a secar
8. Entretanto, descasque todo o vazio, lave-o em várias águas
 e tempere-o também com álcool e tabaco, sempre recolhendo
 as folhas de poesia
9. Coma-o até não deixar nada no prato e deixe a digestão actuar
10. Do preparado de exaustão corporal e mental,
vá eliminando então pequenas colheradas por dia mas deixe
reservado o bolor
11. Observe calmamente a evolução do bolor
12. Deve, ao fim de vários dias, estar activo, ou seja, húmido,
com aspecto aveludado e produzir manchas quando
tocado pelos outros
13. Aqui introduzimos um novo instrumento: um aspirador
 de alta eficácia: a morte de dentro: e cuidado para ser mesmo
 eficaz e não espalhar póros
14.  Com ele eliminamos finalmente todo o bolor,
deixando limpo o recipiente
15.Novamente sugere-se que observe durante alguns
 dias o recipiente vazio e também muito cuidado aqui
 porque a tentação de introduzir ingredientes
da receita anterior é grande, controle esse impulso
e limite-se à recolha de folhas de poesia
16. Finalmente e aqui o tempo é variável para cada um,
surgirá vindo de dentro o único ingrediente que pode
 gerar vida: a esperança
17. Coloque-a na balança e observe-lhe o peso: 21 g
18. E nos dias que se seguem trate de regá-la consigo
 próprio, com as suas mãos e o seu coração e todo o
 prazer do mundo
19. É então tempo de desenhar uma nova receita
para cozinhar a esperança
20. Sugestão de  apresentação final: um ser completo

Nota:
Especial vigilância no ponto 7 da receita que em caso de
tentativa de esgotar todo o ingrediente de suicídio físico,
deve-se procurar ajuda profissional
ou seja: internamento, de resto, fica a sugestão da coragem
para seguir em frente com a receita: vale a pena!



sábado, 20 de julho de 2013

A Gata Cefaleia

Fecha a porta. Aqui não é preciso trancar. Desce as escadas de madeira em caracol e do lado de fora do prédio pára. Não é preciso trancar mas a chave tinha ficado lá dentro. Momento de pânico e indecisão. Duas opções: chamar os bombeiros, sairia caro ou trepar a árvore das traseiras e alcançar a janela que sempre tem o hábito de deixar aberta para arejar, seria perigoso. Contorna a rua. 

Ao lado da árvore olha para cima. Ainda é alta e hoje estou de sandálias. Vestira-se com pressa apanhando o cabelo no elástico e calçando a primeira coisa que vira na entrada. São sete da manhã, a esta hora estaria a caminho da baixa na paragem do eléctrico. E logo hoje que o dia era complicado de tempo. E não eram todos? pensou, que azar. Ponderou chamar alguém mas a rua estava ainda deserta. A manhã estava fresca e contentou-se de ter trazido na pressa o lenço de algodão para cobrir as costas. Se ao menos alguém passasse, alguém ágil que conseguisse trepar. Uma árvore centenária, como várias outras enfileiradas ao longo da rua. Essa árvore que lhe deixava sombra nas tardes quentes de Verão e onde de noite repousava o olhar tantas vezes à janela fumando cigarros e bebendo da garrafa. Só a mim é que me acontecem destas coisas. Tenho 33 anos e sou tão desorientada como uma criança que precisa de colo e cuidados maternos. E riu-se. 

Cuidados maternos, há anos que não visitava a sua mãe. Não porque se dessem mal mas por estar longe e a vida aqui na cidade lhe ocupar aquilo que chamava de tempo útil. Faltava-lhe aquilo que na terra os amigos chamavam de tempo para não fazer nada. Já não o sabia fazer. Sempre que se decidia a não fazer nada, deixando desarrumada a casa, a loiça por lavar ou a roupa espalhada, deitando-se sobre a cama decidida a não fazer nada, não era capaz. Não porque na sua cabeça disparavam ideias de inquietação. Estou a perder tempo, estou a perder tempo. E acabava por gastá-lo nas ditas tarefas que urgentemente assumia. Sentou-se junto à árvore. De momento, de momento tinha todo o tempo do mundo porque se seguisse com o dia para a frente ao regressar de noite seria ainda mais complicado de entrar em casa, talvez até a taxa dos serviços de bombeiros fosse mais elevada, não sabia, não sabia de todo o que fazer. Acendeu um cigarro e voltou a medir o tronco que alcançava a copa. Era realmente uma grande árvore. Das poucas que tinham resistido ao corte de ordem dos engenheiros da câmara, como em tantas outras ruas do bairro. As raízes estavam a levantar a calçada. Ela própria já tropeçara vezes sem conta, distraída com qualquer tontice paralela. Se eu fosse mais nova, como era em miúda lá na terra, não seria tão complicado de chegar lá acima. Ponderou então trepar. E porque não tentar? Mas o tronco tinha um diâmetro gordo e não tinha ramificações a menos de vários palmos acima da sua cabeça. Esticou o braço e conseguiu alcançar uma saliência para equilíbrio. Se ao menos eu fosse entendida de escalada. E tudo o que sei fazer é lavar cabeças. O tempo ia correndo no relógio e algumas pessoas saiam das suas casas. Ninguém conhecido seu, sentiu-se embaraçada com a própria ideia de querer trepar e mais ainda com o pedir auxílio. As vizinhas eram intrometidas demais e ela sentia-se a destrambelhada do prédio, a única mulher solteira, a única com horários esquisitos, a única de poucas falas e olhar esguio, a única com pedidos insólitos frequentes, como aquela vez em que o jantar começou a arder e o alarme disparou no prédio inteiro ou a roupa interior caiu na corda do vizinho ou o gato caiu da janela...eram tantas já as peripécias que lembrá-las neste momento só lhe acrescentava ridículo. E uma dor do lado direito da cabeça tiquetando suavemente dá sinal. Leva a mão à testa e suspira. Não, hoje não por favor. 

E o vizinho aparece à janela. Estranhando a presença dela ali parada ao lado da árvore, diz-lhe olá, está tudo bem? Corando ela responde que sim sim. Estas são as máximas palavras que habitualmente trocam quando se cruzam nas escadas. Há anos que assim é. Desde os dezoitos anos que tem esta casa e ele pouco mais a dele. Mas o vizinho é um menino das escolas empresariais, sempre muito direitinho de fato, carro novo trocado de dois em dois anos e namoradas de uma só noite constantes. Mas é homem, a ele as vizinhas não criticam. Azedou-se-lhe o ridículo. Não ia pedir ajuda a este empertigado, hoje não. Sempre tinha a ideia de ser o motivo das gargalhadas dos jantares debaixo. Desta vez ele não teria história para contar nas noites de póquer. Assim ele regressa ao interior fechando a janela. E ela regressa ao seu dilema. Que maçada, não sei o que fazer. Estou a perder a manhã, corro o risco de ser despedida daquela espelunca e não posso deixar este trabalho, a casa, quem é que me paga a renda? E voltou à árvore. Ocorreu-lhe que se colocasse por baixo o contentor do lixo talvez alcançasse ramos. E que diriam se a vissem a arrastar meia rua de contentor e pesado que era. Os outros são um inferno e o meu corpo também. Se ao menos tivesse nascido homem...Que diferença faria? Aposto que se fosse um homem já teria chamado os bombeiros para arrombarem a porta. São simples eles. Tão simples que se aborrecera com meia dúzia de casos e estava agora entretida com uma colega do centro comercial. E hoje que tinham combinado jantar. Já nem se lembrava de tal facto. O dia estava a complicar-se. Precisava de resolver rapidamente a situação. 

Retirou o lenço das costas e decidida atravessou a rua na direcção do contentor. Tinha rodas, só teria dificuldade na parte do lancil do passeio e no espaço a atravessar entre os carros estacionados. Rezando para ninguém a observasse naquele momento começou a empurrar. Um cheiro podre de degradação entornada entrou-lhe pelas narinas. Uma velha vira a esquina e pára diante dela. Mas onde é que vai com o contentor do lixo menina? Vou lavá-lo, minha senhora. Nada de mais lhe ocorreu no momento e a velha seguiu o seu caminho ainda olhando para trás duas ou três vezes na sua tão própria desconfiança. Susteve a respiração o mais que pode e empurrou. Era pesado e quando o deslizou pelo lancil, ao passar entre um mercedes azul e um punto branco, a parte lateral do contentor na força do deslize em que ia lançado apanhou o espelho retrovisor do mercedes atirando-o para o chão num esmigalhar estridente. Não. É o carro do vizinho. E agora? Apeteceu-lhe rir às gargalhadas e ao mesmo tempo gritar de nervos. Não é possível que eu não consiga fazer nada sozinha. Levou as mãos à cabeça e aquele palpitar de antes era agora um agudo alfinete penetrando-lhe o crânio. Agitada, agarrou no espelho e meteu-o dentro do contentor, escondendo os vestígios da tragédia. Não iria contar nada, a despesa parecia que tinha acordado consigo na cama e em duas ou três trancadas lhe havia deixado a marca para o resto do dia. E ela que era a pessoa mais tesa deste mundo. Perseguição de azar. Empurrou com mais força o contentor para contornar o prédio ajeitando-o debaixo da árvore. Descalçou-se assegurando-se que a calmaria ainda estava na rua. Na rua sim, dentro de si é que não. Controlou-se e equilibrou-se de pé. A dor era agora intensa e por momentos os seus olhos turvavam. Só preciso de aguentar mais um pouco, só um pouco, a cegueira não por favor, agora não. Esticou-se com dificuldade porque também o contentor não estava totalmente estável, maldita calçada pensou. E o braço alcança então um ramo. Puxando a si todas as suas últimas forças chega lá. Estava toda ela agora sentada no ramo. Descansou por um momento. A esta altura, a mesma da sua janela, a vista era-lhe conhecida mas não de cima desta árvore. Olhou em volta. Lá ao longe o fundo da rua parecia mais fundo. Olhou para as janelas dos vizinhos. De frente para o prédio conseguia uma visão privilegiada  de todos os que tinham abertas para as traseiras. A do vizinho estava fechada e como os vidros eram espelhados não conseguiu distinguir nada lá de dentro. Ainda bem que não tenho vertigens. Pensou. Sinto-me um gato, um gato com uma terrível dor de cabeça. E riu-se, estava mais tranquila agora que ao alcance de um pequeno pulo podia entrar em casa, tão tranquila que esquecera até a pressa do tempo a passar. E deixou-se ficar mais um pouco fechando os olhos e massajando a cabeça. 

Desculpa, mas...Era o vizinho, estava à janela. Estou acordado não estou? E o gozo com que saíram estas palavras da boca dele fê-la ter vontade de se atirar lá para baixo. Mas lembrou-se do espelho e um certo conforto de confiança deu-lhe ânimo para responder. Não, não estás acordado, eu é que estou dentro do teu sonho. Pereces uma gata, rindo-se, precisas de ajuda? podes cair e aleijar-te gravemente. Não, disse ela, estava só a apanhar uma cena que ficou presa aqui num ramo e ia já voltar para dentro de casa. E costumas fazer isso muitas vezes? Que insistência, ele não desistia da humilhação. Sim, de noite costumo vestir o meu fato de vinil e saio por aí em defesa dos oprimidos. Se eu soubesse disso já te tinha convidado para vires aqui a casa para tratares de mim, ando sempre tão oprimido. E riu-se alarvemente. Tenho a certeza de que muitas outras gatas deves ter aí à tua disposição para tais ideias. De facto sim, mas nenhuma nunca me entrou pela janela. Eu também não te vou entrar pela janela, aliás é para a minha janela que tenho de seguir, estou atrasadíssima para o trabalho. Não, espera, nunca conversamos. Não queres entrar na minha para tomarmos café e depois vais trabalhar? Ela estava a estranhar-lhe o interesse. Há tantos anos morando no mesmo prédio e nunca tais investidas ele manifestou. Mas deu-lhe a dita curiosidade de gata, como será a casa dele por dentro? Será que tem bom gosto? Será que é arrumado? Que disparates, a cabeça estava toda embrulhada nas peripécias da manhã. E além disso ela tinha namorada e depois, que tontice, o vizinho a dar-lhe para estas coisas e ela ali naquela situação desconfortável e não havia meio de entrar em casa. Fica para outro dia, agora tenho mesmo de entrar, desculpa. E num pulo de agilidade entrou finalmente na sua própria casa. Depois de tudo, já não tinha vontade nenhuma de sair de novo, vontade já não tinha antes, mas agora faltava-lhe energia. Tudo estava como havia deixado. E lá estava a maldita chave, na porta do lado de dentro. Procurou os comprimidos na gaveta da cozinha, ela melhor prevenir que a dor voltasse. E ouviu a porta do vizinho a abrir-se e ouviu bater na sua. Mas o que quererá ele agora? 

Trouxe-te o café. Achei que talvez estivesses a precisar, deves ter tido uma manhã atrapalhada. Não precisavas de te incomodar mas agradeço. Não me convidas para entrar? Eu estava de saída mas, sim entra. E entrou. E atravessou a sala e entrou no quarto. Estava à procura do fato da gata, e ri-se. Desculpa, não estás a ser atrevido demais? Não foste tu que me entraste pela janela? Não pois não, eu estava sonhar. E pressinto que vou ter muitos mais sonhos destes em breve. Sempre te achei uma vizinha terrivelmente sexy mas agora com esta imagem de ti pendurada na minha árvore, não resisto, chega-te aqui. A árvore não é tua e o que te leva a pensar que tenho algum interesse em ti? Pela quantidade de vezes que deixas cair roupa interior na minha corda. Tenho uma colecção de roupa tua já guardada, que delícia de colecção. E o atrevimento dele estava a roçar no ridículo e ela que sempre se sentia dessa maneira em relação a ele, começou a achar piada à situação. Sabes as gatas como eu não se dão assim à mão. E continuou a devolver-lhe a provocação. Precisam de se sentir confortáveis. Então ele despe-se. Completamente todo despido. Assim sem meias medidas. E ela explode de riso. E

2009 - Atazananço

Atazanar
Atazanou

Era uma vez
de vez em quando
um conto no ombro
escutando de um ponto
de longe mirando
talvez a meio
pão de centeio
ou um ponto à frente
na faixa da lente
já se conta por muita
gente numa caixa
lá do começo da era
no fundo do poço
e tudo não passou
de um sonho
e começa talvez assim
do meio do umbigo
ou num banco de jardim
verde como a erva
branco como osso
e tudo não passou
de um sonho

Atazanar
Atazanou
Se não passou
Ficou

Não
não retoco pontos
ou acrescento finais
não estico a história
não escrevo mais
Onde fica
é onde tinha de ficar
que o resto é a esperança
e onde ela é explicada
desencadeada pelo autor
os outros deixam de desejar
de procurar o seu próprio
final com amor

sexta-feira, 19 de julho de 2013

como soam os gritos
como soam lá do fundo
do profundo os tambores
a que sabe sentir saudade
a que sabe o adeus
qual é o gosto da dor
qual é a cor do fim
qual é o cheiro da pele
que fica por aqui

?










Datado de 2006, finalizado em 2013 - Roleta Russa

As máquinas pararam. Em toda a fábrica o silêncio mecânico é sinónimo de pausa para o almoço. As mãos de André afastam-se da linha de produção. Carregando no botão vermelho, a passadeira pára. Vira costas às horas que perde com borrachas e parafusos e acena para o Luís da finalização. Chama o Fábio e o Ricardo da etiquetagem. Os quatro não têm todos juntos mais de sessenta anos. Os mesmos que a fábrica já tem. São miúdos, ainda nem a barba necessita de mão de obra. Os fatos azuis igualam-nos. Trabalhar para ajudar nas despesas de casa ou para estoirar em merdas. Estudar nunca foi uma opção. Do lado de fora o sol do meio dia salienta as olheiras de André. Acumulando turnos, as horas de sono são cada vez mais reduzidas e a pele vai tomando os cinzentos metalizados das peças.

André mete a mão ao bolso, hoje a parada é mais alta. E Luís que sempre se queixava de levar caldos dos outros todos abana a cabeça deformada e rapada dizendo que não. Não pá! Atão assim ficamos lisos! Deixa-te de ser maricas ó Luisinha filho da tua mãe, alinhas ou não alinhas, tudo ou nada pá! Tou farto de andar aqui a brincar aos berlindes. O Sr. Lourido lá da secretaria chibou-se ao ouvido da miúda da cantina e a miúda da cantina tem dado cantiga ao André no corredor da máquina de chocolates. Todos os dias as apostas do almoço se servem dos despedimentos para encher ou esvaziar os bolsos dos quatro amigos. Há uma semana que são diários e as apostas salivam de vício. 

A mão de André brinca no bolso. Vamos até ao armazém. Os outros vão atrás. A pouca luz intermitente e as prateleiras a abarrotar de caixotes até ao tecto arrepiam a espinha de Luís. O André sempre gostou de cenas macabras, já por várias vezes trouxe para a fábrica brincadeiras idiotas puxando ao limite a coragem dos outros, que em si não era de todo o seu forte. Mas tinha porque tinha de alinhar, a vida no bairro não era fácil e assim como assim sentia-se protegido fora da fábrica quando despiam os fatos de macaco e regressavam a casa. Os outros raramente se manifestavam contra, inchavam o peito e alinhavam. 

Num silêncio imperioso a mão traz à vista um revólver de tambor giratório. E os olhos de André brilham de gozo desafiando os outros. Para que é isso mano? Vais matar o boss? Não, hoje eu sei que um de nós vai prá rua. E sei quem. As pernas de Luís cederam e o equilíbrio tornou-se ridículo. Não, então qual seria a ideia? Voltando ao bolso retira uma bala dourada. Uma só bala na outra mão. Cada um de nós vai apontar à vez a arma à cabeça do que está à sua direita, se falhar segue o próximo, até que a puta dê a volta.  Loucura, eles eram três contra um, como poderia obriga-los a esta loucura pensava Luís que em tantas outras vezes viu o impossível acontecer, vendo realizarem-se as ideias destorcidas e perturbadas de André. E sentiu a dúvida a mirrar-lhe o pensamento. Estou perdido. Pensativos os outros fixavam a bala. E André prosseguiu, se falhar no fim da volta, piramos-nos todos da fábrica e do bairro, vamos embora, fugimos daqui, juntos. Os outros permaneciam em silêncio inquietos. A ideia era absurda e aos mesmo tempo de uma expressão de lealdade e cumplicidade brutal. Talvez por isso nenhum tenha logo rejeitado no momento a proposta e no silêncio se iam acomodando à ideia, menos Luís a quem já o azar perseguia batendo o coração a mil à hora. O que lhe fazia confusão é que o André também se sujeitava à prova. Já há muito tempo que desistira de compreende-lo e tinha consciência de que os outros nem sequer faziam esse esforço, porque era normal que assim fosse, porque precisavam dele. Um misto de admiração e receio, um respeito esquisito. Para ele era instinto de sobrevivência, instinto esse que se via ameaçado agora e entalado neste armazém de peças sufocantes. Encurralado era a expressão exacta. Eu alinho, disse um dos outros. Não tenho nada a temer. Que se foda, eu também. E a menina Luísa tá dentro? 

A porta do armazém abre-se, era a miúda da cantina. Frequentemente corria a fábrica à hora do almoço à procura deles, para Luís ela era ainda pior do que o André. Não conseguia olhar-lhe nos olhos e nunca lhe dirigia a palavra. Sentia-se pequeno ao pé dela. Ela intimidava-o porque era mais arrojada que todos os outros. Não alinhava em apostas mas contribuía com ideias descabidas que pioravam sempre o cenário. Como se a cabeça dela tivesse saído de dentro de um filme de terror. Ela própria era estranha. Muito magra, vestida com roupas demasiado largas, cabelo sempre muito curto, excessivamente pintada nos olhos e raramente sorria, aliás, ria-se sempre dele, gozando-lhe a mariquice. Todos sabiam que andava a comer o André pelos corredores da fábrica mas diante de todos, ele tratava-a com desprezo, a miúda que lhe ia servindo para algumas cenas, dizia ele gabando-se. E ela era destemida de facto. Foi ela que assaltou o cofre no ano anterior, foi ela que desviou caixotes de peças que depois venderam, foi ela uma série de coisas concretizadas saídas da cabeça do André. Só porque lhe dava gozo fazê-lo. Era uma miúda que se sabia mexer dentro do bairro a troco de favores vários. 

Que estão aqui a fazer? Não costumam vir aqui, já corri tudo, já sabem não é? Vão despedir-te..André mandou-a calar-se antes que o olhar dela denunciasse quem. Vai-te embora daqui, o assunto hoje não é para o teu bico. Ela ergueu o queixo e repeliu. Essa agora, qual é a ideia da arma, vão matar alguém? Vamos, vamos matar-te a ti se não te pirares agora. Ela riu-se. Be my guest baby, gozando. O outro falou. É melhor ela entrar na cena, já sabes como ela é, não desiste. Porra a miúda é um inferno. André estava a começar a ficar irritado e Luís já não tinha sequer reacção. Vou explicar-te então, quero ver se tens tomates para isso. Mas, olhando para a arma, porra, só tem cinco buracos o tambor. Não dá, ficas aí a ver. E qual é a piada disso? A miúda insistia. Epá não dá, não percebes, esquece, ou ficas a ver ou piras-te. Ela puxou de um caixote e sentou-se a fumar um cigarro. Siga então. Mas eu parto com vocês, vou embora também! E o Luís abre a boca. André, disseste que se a bala nos falhasse a todos que nos pirávamos e se não falhar? Estava a tentar ganhar tempo desesperadamente. E a miúda regressa à conversa ignorando-o como era hábito. Então e se rodarmos o tambor para cada um de nós? Assim já não há o stress dos buracos. Os outros sentaram-se porque já estavam há algum tempo de pé. O André meteu as mãos à cabeça e gritou, epá tanta merda, vamos a isto, pode ser se queres assim tanto, rodamos o tambor para cada um e tu Luís, a ideia é se acertar nalgum de nós, que é que achas, que ficamos aqui todos para o funeral otário? Baixou os olhos e encolheu os ombros. Tinha de seguir em frente com esta loucura. 

A gritaria chamou a atenção de um zé ninguém que ia a passar pela porta e espreitou. Só cá faltava mais isto. O André abre a porta e aponta a arma à cabeça do outro. Caladinho disse-lhe ao ouvido. Vamos seguir com isto, mais um para a jogada, ou alinhas ou a bala fica já aqui na tua cabeça. Estava passado já. E a miúda delirava em gargalhadas. Os outros falaram. Não pá, a ideia era sermos só nós, o nosso grupo, onde é que isto já vai. Não importa, há que improvisar! O outro começou a chorar implorando para o deixarem ir e quanto mais chorava mais a miúda se ria. 

Alinharam-se então em roda. Introduziu a bala e rodou o tambor. Ergueu o braço direito à sua direita e puxou o gatilho. O silêncio foi agredido com um estalo seco. Escapou o outro. Ninguém se moveu. O outro pegou na arma e repetiu o procedimento, à sua direita estava a miúda. Apontou a arma à cabeça dela e nesse momento ela fechou os olhos. E puxou o gatilho. Novamente um estalido seco. Sem expressão a miúda pegou na arma e rodou o tambor. À sua direita estava o Luís. Apontou-lhe à cabeça. Uma lágrima escorreu-lhe pela face, da dele. E ao puxar o gatilho a arma encrava. Ela procura rodar o tambor de novo e nada, não gira. Parou a olhar para a arma. O André avança. Dá cá essa merda, não tens jeito nenhum. E apontando para o fundo do armazém tenta disparar para que desencrave. E a arma dispara. Um estrondo que derrubou uma fileira inteira de caixotes.

Merda pra isto. Vamos embora que se foda. E saíram todos em silêncio do armazém. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Datado de 2007 (presume-se) - Encontro

Aperta o casaco de fazenda ao peito e enrola o cachecol de lã à volta do pescoço. Ajeita o cabelo, coloca a mala no braço e um último retoque ao espelho redondo. Dirige-se à porta. Para trás fica uma noite atribulada. Uma sensação de cansaço aconchega-lhe as pernas quando desce a rua em direcção ao rio. O dia está cinzento e não há sol que dialogue com as horas. Procura na mala a agenda enquanto caminha atenta ao passeio. As ruas estão cada vez mais sujas. Tanto pormenor que gostaria de reter, tantos personagens que circulam por Lisboa, tantas janelas rendilhadas e esplanadas sofisticadas. Não pode, é preciso caminhar atenta ao passeio. Atravessa a passadeira no vermelho porque por momentos foca o olhar à direita. Dispara. É ele. Do outro lado do alcatrão. 

Do outro lado do alcatrão. Casaco vermelho e branco de malha inconfundível. Caminhando em direcção ao rio descendo mais à frente. Decidir, é preciso decidir-se. Acelera o passo, procura no olhar dele um encontro casual, mas os segundos batem-lhe tão depressa no coração e num impulso involuntário parte para o outro lado do passeio, chamando-o. Corre na esperança de apanhá-lo desapertando a respiração do cachecol e levantando os sapatos do chão. Toca-lhe por trás na parte vermelha do casaco. Ele pára. Roda a cabeça na direcção dela. E os seus olhos encontram-se. Expirando intensamente uma quantidade de emoções contraditórias que se empurram pela faringe até aos lábios. Quis dizer qualquer coisa, um olá, um então, mas o maxilar e a língua desorientados na boca não conseguiam reproduzir palavra. O embaraço cresceu no silêncio. João. Disse finalmente ofengante e transpirada. Joana, respondeu directo. E a palma da mão gotejava inquietação. 

Então por aqui, há quanto tempo, bem me parecia que eras tu, que tens feito, estás por cá?
Tanta pergunta e nenhum espaço para explicações. Como se o tempo tivesse bloqueado a cabeça, a imagem paralisou tudo o que era vida e momento, o semáforo permaneceu vermelho, os peões pararam no passeio, os pássaros colaram ao céu. Os carros pararam no alcatrão e uma força centrífuga engoliu o cenário sonoro. Tudo parou a 360 graus daqueles 4 olhos. E dentro daquelas cortinas vibrantes o mundo imagético disparou numa rotação louca, as imagens, as palavras, os sons, os odores, as batidas cardíacas, tudo bombava a uma velocidade extasiante. E tudo se atropelava por todas as saídas resultando numa tentativa de comunicação sufocante. Uma palavra. Tempo. O retrocesso não era passivo e o corpo transmitia a correcta noção incerta. E agora que nos voltamos a encontrar o que fazer ao acaso? O que fazer do possível? Aquele raio de sol chamado embaraço encandeia o caminho da acessibilidade e a informação cerebral não encontra conexão. E o corpo estava a trair a beleza alucinante que viajava por dentro. 

Vamos tomar um café ou ias a algum lugar importante? Um sopro de alívio a tilintar num pássaro no céu. Não, Não ia a lado nenhum e nada me faria perder esse café. E quando o primeiro pé começa a produzir  a acção do caminhar lado a lado, numa leveza muito suave, o cenário retoma lentamente a sua agitação rotineira. Como se tudo estivesse a regressar a si mas de uma subtileza diferente. O rio estava mais esverdeado, o céu estava mais azul, os pássaros desenhavam trajectórias celestiais, os carros não andavam, planavam. As pessoas não caminhavam, sorriam. Os sentidos estavam a capturar um espaço e um tempo outro. Doce era o paladar que crescia na boca. Como se todas as formas do universo se tivessem encontrado e tomassem o seu devido lugar e os corpos reproduzissem uma mandala perfeita. A instauração das formas puras. Uma aragem fresca acariciava o rosto delicando ao ouvido que caminhassem lado a lado para sempre. 

Vamos a um café muito giro ali na rua do Alecrim. Deves gostar. Como sempre e como fora antes, as palavras dele encontravam o desejo dela e não era preciso explicar as coisas, porque elas eram sempre simples entre eles. Era tão fácil estar que era apenas preciso permitir levar-se. E deixar que os seus pés flutuassem no camuflado de algodão doce que agora cobria a calçada. E a cada esquina que se descobria, uma surpresa de pirulitos era oferecida pela mão de um palhaço com um nariz vermelho. Um palhaço ilusionista com uma flor sem espinhos ao peito. E uma caixa azul com estrelas prateadas libertava bolas de sabão e em cada bola transparente uma nota que se elevava e rebentava na atmosfera uma musicalidade quase infantil. Nota a nota, ficava para trás o equilíbrio que a cada próxima esquina se restabelecia. Nesta ingenuidade sonhadora, entraram. Primeiro ela, depois ele, pelas portas envidraçadas de uma arcada trabalhada em floreado. Era um café pequenino mas muito acolhedor. Mesas redondas de madeira, baixinhas e almofadas. Em cada mesa uma vela aromática e uma frase sob o vidro que servia de base. Uma frase com palavras articuladas em poesia. Estavam dois casais novos e um senhor mais velho ao balcão lendo um livro grosso com uma lombada de couro. Fumava um tabaco parecido com aquele que ela também gostava. Bebia alguma coisa quente parecida com um chá. Sentaram-se próximo da grande janela que iluminava de um tom alaranjado o interior. No tecto candeeiros de papel salpicavam de vermelho a laranja açucarada e pequenas cutículas de azul petróleo pingavam quase até às mesas, dançando ao ritmo de cítaras apaixonadas. Ela olhou o menu e ele tocou-lhe na mão. Estás com alguém? Desculpa mas não consigo estar aqui em devaneio sem saber se devo enterrar os pés no chão. Ela sorriu-lhe nos olhos, não. Colocou a mão sobre a dele e aproximou o rosto ao ouvido dele. E entre nesgas de cabelo cor de mel desalinhado, pronunciou baixinho aquilo que também lhe estava a fazer cócegas entre a amígdala e os dentes da frente. Amo-te. Sempre te amei. E num beijo só, encontraram a paz para o desassossego de muitas horas, muitos dias, muitos anos de palavras amareladas, guardadas com muito sonho lá na tal cómoda empoeirada do sótão perdido. Num beijo só do tamanho de todo o tempo, desde que o tempo é tempo, prometendo boca a boca, coração a coração, mão à mão, sexo a sexo, prometendo que a partir daquele momento , só passaria a existir um único e completo tempo, um contador de horas e minutos, dias e anos que só aos dois pertenceria, que só aos dois obedeceria. Uma história de amor, não, a história de amor que os dois contariam em uníssono a partir daquele beijo, daquela promessa. 

Ela regressou ao menu e agora conseguindo entender o encadeamento de letras, pede, um chá de laranja lima e um scone. E tu? O mesmo, sorrindo. Pediram ao empregado que se arrastava numa túnica branca e umas sandálias de tiras coloridas, parecendo respirar uma atmosfera um pouco diferente daquela que se assumia na laranja salpicada. Talvez atrás daquele balcão e dentro de espaço que escondiam as duas portadas de madeira, estivesse um narguilé recheado de prazeres. Ou talvez não e tudo fosse fruto da vida que renascera dentro daqueles dois corpos que a emanavam, aureando e contaminando todas as arestas que os contornavam. De volta um ao outro, ela acendeu novamente o pavio da palavra. Conta-me tudo, onde estiveste, com quem, o que pensaste quando me voltaste a ver, porque nunca me escreveste como havias dito da última vez que nos encontramos? Tantas perguntas e todo o tempo do mundo para as responder. Um pouco atrapalhado, procurando lembrar-se da primeira, bebe um golo de chá perfumado que entretanto viera de dentro e começou com Londres. 

Estive dois anos em Londres a tirar uma pós graduação. Só vim a casa no Natal do ano passado, a vida lá é muito cara e lavar pratos nos tempos livres não me ajudava a pagar o avião. Estava a viver com um italiano louco de arquitectura e uma francesa que era violinista. O namorado dela estava lá  sempre em casa, cheirava mal e comia tudo o que havia no frigorífico. Ela escutava as palavras dele, imaginando o quão espectacular teria sido se lá estivessem os dois juntos. Devaneando por uma casa, um prédio antigo com vista para uma avenida cheia de pequenos jardins e bus vermelhos de dois andares sempre a passarem. Cozinhavam juntos, viam filmes sem legendas, saiam para beber nos pubs canecas gigantes, comiam peixe frito e batatas na rua. Passeavam pelo Hyde Park, contavam os pássaros deitados na relva abraçados, observavam as crianças nos baloiços e na saída da escola imaginando um dia um pequeno ser parecido com eles de mãos dadas a atravessar a rua. Estudavam à luz do candeeiro branco, adormeciam despidos e acordavam juntos. Teriam amigos de várias nacionalidades e visitariam museus de arte contemporânea. Ouviriam concertos de Jazz, teriam trabalhos em part-time para as despesas, teriam fotografias juntos, frases e palavras em duas línguas. Quando regressou à caneca de chá, reparou que se havia perdido e procurou escutá-lo. Já estava em Lisboa. Agora tenho enviado currículos e estou à espera de respostas positivas. Talvez um atelier onde fosse possível trabalhar as peças, talvez dar umas aulas para as despesas. Enfim, não me calo e o chá já está quase frio. Calou-se, mas como ela não dizia nada, tocou-lhe na mão e disse baixinho, nunca deixei de pensar em ti e muitas cartas te escrevi, mas nunca as enviei. Tinha receio de que me tivesses esquecido. Talvez estivesses com outra pessoa e já não pensasses em mim. Talvez nem fosse bom para ti estares presa a uma ideia e se calhar quando eu voltasse já não sentias o mesmo ou decepcionavas-te. Não sei, penso em muita coisa mas deixei o meu pensamento adormecido no papel. Guardei-as, talvez gostasses de lê-las um dia destes. Ela baixou os olhos na direcção do meio scone e como se por entre as mesas tivesse escapado uma nesga de tristeza, olhou-o e sem saber como, abriu a porta e deixou sair uma nuvem escura. Sorriu, gostava muito de as ler sim. Durante todo este tempo, tive sempre a esperança de abrir a caixa do correio numa manhã e encontrar notícias tuas, ou receber uma chamada ou um mail. Fiquei à espera mas também não dei um passo na tua direcção. E o acaso acabou por nos encontrar, às vezes caminhamos na rua certa. Aquelas palavras não tinham dimensão suficiente para caber naquela espera e todas elas cabiam enfim numa única palavra, cobrança. Estaria a cobrar uma promessa que nem ela cumpriu nem ele. Estaria a cobrá-la ao tempo e à pequenez das pessoas que se acomodam nos sofás das suas casas e esperam que o carteiro lhes bata à porta. E isto causava-lhe incómodo, uma sensação de fraqueza, como se sentisse que os seus sentimentos não teriam força para fazerem cartas chegar. Não estava assim tão longe e uma promessa de uma carta não poderia ser assim tão difícil de cumprir. Era agora uma tempestade de nevoeiro e chuva pesada que entrava pela laranja a dentro e a transformava num igloo branco, desconfortável, duvidoso. Ele sentiu no corpo dela uma contracção e uma rigidez que lhe gelava o chá nas mãos. Não, não penses assim. Como sabes no que estou a pensar? Estou a sentir, por isso sei. Aproximou-se dela e fez-lhe uma festa no caracol do cabelo escuro. O contraste com o azul da íris era profundo. És tão linda. Minha bonitinha. Nunca esqueci este azul que todas as noites contemplava ao adormecer e que me acordava com bons dias meigos. Às vezes dava por mim a imaginar-te comigo nos lugares. Sei o que farias, o que dirias, conheço cada gesto teu e cada pensamento. Conheço-te e isso deu-me tranquilidade para esperar. Conheces-me? Ela sorriu de forma provocante. E se eu tivesse conhecido entretanto alguém fantástico? E se eu te tivesse esquecido? Conheço-te tão bem que até conheço as tuas perguntas. Se assim tivesse sido, o nosso amor teria sido fraquinho e o nosso coração um mero conformado. Ninguém nunca te vai amar como eu te amei. Não sejas pretensioso, riu-se ela. Agora que te reencontrei vais ficar comigo até enjoares. E riram-se os dois. Estavam descontraídos. E a laranja tinha voltado a ser quente e doce com salpicos de azul petróleo e vermelho confortável.



shine

O mundo faz muito barulho...
There is no if, JUST AND

O menino tinha lançado a sua estrela
com ar de quem semeia a ilusão
e a estrela ia subindo
azul e amarela
presa pelo cordel à sua mão
mas tão alto subiu
que deixou de ser de papel
e o menino, ao vê-la assim
sorriu
e cortou-lhe o cordel

we are fragile
saints, status, sound creators
fancy moon, act from god
tragedy..time..fancy space

feiras mecânicas de acrílico
mostram-se despidas
lanternas flutuantes
segregando a implosão
peixes de verniz cintilando
rastos de pensamento
voando

e a estrela falou
Ergo a mão à morte
e deixo o mundo 
às escuras 





quarta-feira, 17 de julho de 2013

Datado de 2007 - No Passeio

Chapéu azul na cabeça. Rosto redondo bolachudo e corado. Roupa preta e sapatos com buracos. Sem idade. Encostada no degrau da porta do supermercado. Dentro dos vários sacos, uma perna de frango, uma garrafa de plástico com um líquido cor de vinho e um bocado de pão. Leva o lenço de papel aos olhos. Outras vezes chora. Fala como se estivesse acompanhada. Procura nos vários sacos, guardando a perna de frango, não se sabe mais o quê. Às vezes olha para quem passa sem que trespasse nada mais do que vergonha. Baixa os olhos, trinca mais um pedaço de pão. Às vezes olha para fora, outras vezes para dentro, ao encontro de nada. Ajuda com as mãos os pedaços que se colam nos dedos. E de novo ao rosto. Uma expressão que parece falar com quem passa. As bochechas descaídas como se estivesse sempre a chorar. E as grandes malas atrapalham quem quer passar no passeio. Espirra porque sente o rabo na pedra fria. É um corpo que ainda sente contradições como o frio e o calor, a chuva e o sol. É um corpo que já não sente as contradições do bem e do mal, da justiça ou injustiça. A elaboração passa por atirar para o alcatrão, para debaixo dos carros estacionados, as ossadas do animal que já saciou a fome desta mulher. Segredos, ela conta pequenos segredos a quem vai aparecendo aos seus pés. Uns escutam, outros nem por isso. Às vezes são casais que passam abraçados e sorridentes, outras vezes são mães que passeiam os carrinhos dos seus bebés, às vezes são homens cansados que se arrastam passeio a cima, outras vezes são jovens em grupos que correm atrás das miúdas de botas altas que correm atrás das modas das montras. Fecha os olhos e repousa ambas as mãos sobre os joelhos gordos. Não sabemos se dorme, se sonha. E a cabeça vai tombando para a frente e para trás. E o passeio  vai embalando não sabemos se um corpo, se um nome que já não se recorda do corpo que tem. É o rapaz que vai fazendo as mudanças, que carrega o carro da namorada com sacos e caixas de cartão que a faz abrir os olhos. Por pouco tempo, ela fecha-os novamente. 
Se formos capazes de imaginar a nossa casa sempre cheia de estranhos a entrarem e saírem, também seríamos capazes de fechar os olhos e procurar outro lugar. Não pode haver lugar mais só do que um lugar cheio de gente desconhecida, que nos ignora, que nos obriga à transparência, que nos enterra nos buracos da calçada para que não incomode aos olhos, não incomode o realismo da verdade que existe porque está ali mesmo na esquina seguinte. Também nós caminhamos de olhos fechados, ora cambaleando a cabeça para a frente, ora cambaleando a cabeça para trás. Só não temos fome, às vezes. 
Limpa as lágrimas uma vez mais. E o chapéu azul encontra-se agora de lado, encarando de frente quem passa, passando para esses olhos, um olhar de desprezo. E conversa-se mais um pouco. Tal e qual como se estivéssemos no café com uma amiga distraída ou surda. Às vezes parece que reza. A boca abre e fecha e o olhar pestaneja, lento, como a vida que é vivida sem manejo. Porque é que tu carregas com todo o peso do mundo?
e perde-se o fôlego
-o que significa ficar?
ser rendeiro de poiso
de retiro imposto
vigilante abraçar

dando continuação
caindo imagens ao chão
agonia sem inspiração
a nudez amanhecida

arquejando a espinha
das pálpebras a sombra
beijando na face
uma outra pessoa

recolher incerto
de ofícios de ser
num tiroteio de dor
hão de vir e partir

nas horas bebidas
sem sede a valer
rompendo o véu
em soluços meus

uma outra pessoa
passeando febril
aos olhos de Deus
nesse corpo viril

-tal como canibais
contrastes mortais
café e valeriana
a chama e a água

canção de uma fé
com tão de sopé
então vai a pé
à mão o que é

-tal como canibais
e vozes angelicais
a fadiga dos dias
de tarefas finitas

canção de uma fé
tafetá e rapé
liberdade assim é
e talismã o que é

e talismã quem és?


segunda-feira, 15 de julho de 2013

E há um momento em que olhas para dentro e
não te encontras mais, saíste para dar uma volta
e perdeste te e não há sequer lugar de partida
não há sequer mais nada à tua espera
e isso tem tanto de belo como de assustador
mas é preciso deixar ir tudo
e abraçares o escuro e procurares uma luz
tal candeia que te guie ao reencontro de ti
...

murmúrios de dentro: aos horizontes descalços
cavalos de ferro insanáveis chegando esgotados
por prados paradisíacos viagens na perfeição
em sorrisos cabidos num só coração desfeito
abre a tua mão, deixa me ler a tua sina agora
essas linhas são golpes de foices de lavoura

e a melancolia que dava a entender que o anjo
caído do céu tinha desejo de ser homem bom
consumido na abstracção turbulento progresso
perderá de vista a benigna estrela expiando a
licença da inviolabilidade: a fundação do afecto

o desaire: sem auto de fé, de pé aos pés, de ti
- eu espero a minha vez de abraça-lo





À elevação

Cartografia da última dimensão
onde tudo nos passa de raspão
sabes onde dorme o imperador?
na coisa que descortina o sabor
na dormência de uma só vida
e exacto momento a ser nascida
e a energia de cada passo dado
rimando paralelo a um hexágono
bicudo complexo distraído fino
folha de outono caída ao limbo

Cartografia da poesia de mão
um hino à elevação do existir
no labirinto do fausto a solidão
tudo contemplando sem partir





domingo, 14 de julho de 2013

Não

negar a existência?
negar a existência é sumires de dentro de ti
tudo o que te faz humano e seres apenas veículo
de qualquer coisas, qualquer um, qualquer momento
que te atravesse e seres apenas registo e passagem
para o papel, assim mesmo, mantendo apenas
as necessidades de um corpo que o transporta
é negar todo e qualquer desejo, sonho, vontade
é dizer não a uma linha que leva o teu ser a uma meta
é não haver ser nenhum, não querer meta nenhuma

é ser morto sim, pessoa morta,
mas talvez por fim
livre

rondam falcões pelas masmorras do castelo
crescem heras nas paredes do templo
fecham-se portas e janelas
e adormece-se numa
câmara de flores

em silêncio
por dias, semanas, horas
no escuro ouvindo-os pairar
asa negra condor condolências de amor
e acordar para casa voltar abrindo pétalas

uma a uma
devagar despertando
de luz intermitente abrindo caminho
para alguém passar, alguém que agora
quer viver, alguém que se encontra de fora

fénix de uma morte de uma queda valente
articulada por fim de uma coluna almal
bicho dorido quebrado e levantado
infinitamente estrelado uma vez
mais e mais e mais e mais
a um céu dedicado


terça-feira, 9 de julho de 2013

quem me dera ver o mar pela primeira vez...

Audio Poetry Santiago - Introduzindo

Audio Poetry Santiago - Velas ao Anoitecer

Uma questão

onde é que estão os fardos?
onde é que andam escondidos
os filhos da puta dos fardos?

o que é que eles fazem aos fardos?
para andarem todos contentes
de tarefa em tarefa deprimente
todos em linha recta serpente
a acabar tudo na mesma merda!

o que é que eles fazem aos fardos?
embebedados fodidos medicados
e todos os verbos predicados
amorfinados pelo lado quadrado

- que isso de explodir
 dá direito a ser internado




segunda-feira, 8 de julho de 2013

Animais

Em conversa...

somos nada mais do que animais
e uns combinam melhor que outros
que animal serias tu?
e que fazem os animais na selva?
comem-se dominam-se
então a questão é encontrar o par
queres dominar ou ser dominado?
queres colo ou comandar?
quer ficar por baixo ou por cima?
e os animais de duas caras
ora meigos ora guerreiros
aqueles que anseiam liberdade
e procuram domesticação
esses sem definição
quem são afinal esses seres?

um panda, uma gazela
um mocho, um leão
um gato, um cão
um rato, um coelho
um pássaro, uma enguia
um peixe, uma mosca

que selva de gente animalesca
gente que se come e envolve
gente crua gente boa, confusa
que procura que luta, o medo
nesta cadeia de momento vivo

animal gente gente animal
mostra amostra revela a cara
mostra qual é a tua espécie
qual é a forma da tua raça

animal animal
who lies better
the wolf or the sheep
my guess is..



sábado, 6 de julho de 2013

sai a morte

sai a morte cuspida vomitada
sai tudo de dentro num grito de silêncio
apagando amansando uma dor medonha
sai até a própria alma esmagada monstra

e fica para encarar alguém que por aqui anda
que em nada toca a perfeição e por isso é humana
que nem as palavras chegam porque não contêm
não chega viver dentro de um poema de conforto

quando por dentro te sentes morto
e a morte sai finalmente cuspida vomitada
e o que fica dentro do nada é afinal a vida
agarrada com as duas mãos em fúria

e não há forma suave ou delicada de o fazer
não se pode ficar pela metade ou dividir em partes
parece mais fácil mas é apenas um adiar o inevitável

matei-me
de uma só vez
de um só tiro de uma só bala
que havia guardada em todas as palavras

- e o que vais fazer daqui para a frente?
por enquanto nada rigorosamente nada
vou parar pausar acalmar procurar depois
depois se vê depois se começa depois se
nasce outra vez se encontra se refaz
qualquer coisa mesmo que pouca simples
vagarosa seja porque assim tem de ser

assim tem de ser











quarta-feira, 3 de julho de 2013

.

o arrebatamento
de um único momento
e da brevidade nasce
uma ausência madura
que já o era antes de o ser
e se pergunta:
vale a pena?
subir o cume da montanha
sabendo não se poder ficar
nesse pico ponto de inconstância
onde nos partimos
e ao descer trazermos
apenas metade

se vale a pena
não saber a resposta
para uma e outra vez
marcarmos a subida

Ela
dorme de olhos abertos
caminha a cm do tecto
e se alimenta de verso
comendo flocos de gente

Ele
se esquece de rega-la
adormece lhe em cima
sugando lhe da mente
o sopro que inspira a vida

E
nasce poema

um adeus

subi a uma árvore só por capricho
de comer um fruto deitada num ramo
como fazíamos em criança, te recordas?
e das batalhas das laranjas e das casas
dos bonecos de maçarocas de milho

recordas? como eramos garotas
tanto que brincavamos de ser grande
que saudade desse monte alentejano
de uma terra ainda com sabor a nova
lavrada onde as sementes cresciam
e na mesa a família se reunia à roda

te recordas pequenita?
de andarmos sempre atreladas
como o camião e o reboque
protegendo-te amando te
como se fosses animal de estimação
do mesmo sangue a paixão

essa foi a nossa infância
e foi tamanha feliz adeus

esse é o nosso tesouro
um tempo que nos cresceu









terça-feira, 2 de julho de 2013

com..

quero apenas elevação
viajando num contentor
como porcelana
com poeta mente
do troféu suspensão

decapitando me
de outro poema outra lírica
cometendo debaixo da blusa
pecados de alma lusa

que transcende a poesia
mantendo nos na expectativa
de outro rumo a esta vida

então que se elevem os copos
em viagens de corpos apertados
como cacos mas intactos
e nas palavras os massacres

nada de coerente se pode
na verdade pedir
e a queda fugindo
como areias nos dedos

versos de dentro
falam de nós
que tudo lá fora
é água à mó

querendo não saber
de suicídios colectivos
façam barulho vamos a isso
e a amanhã volta ao mesmo

então hoje
não apelo à rua
nem à política
nem à luta

que se elevem
congelando o momento
e quando tiverem a palavra
amem-na
com poeta mente






segunda-feira, 1 de julho de 2013

será
que eu também posso brilhar
com um toque de bola?

será que me consigo magicar
saindo da cartola
tipo coelha erótica?

e se me calasse
estragando o momento
com excesso de base

de que é que tens medo?
que te vejam por dentro

será que consigo dizer
uma única frase com sentido
e assinar por baixo

poeta de hospício









onde é o incêndio?
é o meu peito que está a arder
vou correr até ao mar
mergulhar no silêncio
abrir os olhos
e derramar todo sal
de um oceano inteiro

assim é o que sinto
partindo-me ao meio

e bastou um olhar
e bastou uma frase

são
as tábuas do meu coração
que estão mal unidas

e mete água
e afoga-me
em mim própria

obrigado



uma fresta

um cacho de cinco bagos
-sois placas de bronze
de esguelha um pedaço de telha
terras lavradas na fronteira

cepos de gente parola
de avental à porta
falando do tempo
e do travesseiro de penas

-o meu filho tem sardas
abstraídas de uma pilha
de lenha cutânea
de cartas de guerra

são cebolos grisalhos
nascidos já velhos
esperando que calhe
abrir-se uma fresta

reminiscências
desarticuladas
balas de chumbo perdidas
e eles que ficam defuntos
nesses campos em ferida












dudeísmo

Para um dude...

ás vezes se adivinha com que rima a vida
outras vezes é preciso perder o norte
para se encontrar lá no fundo a morte
ou destino karma acaso sorte empurrão

e renascer no caminho certo acertando
não mais retrato de ser desinspirado
deambulado vegetal de estufa criado
aos comandos desse porta alma desancorado

mas é preciso bater ao lado perder o estado
errando com espírito aberto para bifurcar
descortinar olhando com vista amplicada
à frente um caminho que estava camuflado

e tudo isso custa não tanto como uma casa
ou um carro ou uma peça de roupa cara
não tanto como ter um filho ou perder alguém
mas não tão pouco como dormir a sesta

tão simples não é e no entanto...

não daria menos trabalho acreditar
que somos biologia cíclica pura
nascer, crescer, morrer e venha outra
criatura que nos substitua até mutante

existencialismo humanismo niilismo darwinismo
na verdade será a variedade que impõe dinâmica
de andarmos em debate assim o pensamento muda
muda porque se confronta muda porque enfrenta

a única angústia que tudo isto provoca: a morte
de andarmos todo o tempo a monte na razão
não da que renova não da que transforma
daquela que não tem mais volta: sem escolha

calem-se calme-se todas chatas ruminadoras
picaretas da contemplação pás de escavação
escamoteando o quotidiano do descontraído
eu quero o meu sofá e um programa televisivo

dude we are lost we are lost lost lost dudes















a amante

acordares me
com um pedaço de olhar
um gesto de atenção
galanteando
num mini branco

acenar a mim
da multidão encontrar
amando
com o coração nas mãos
vendo nascer nos

e conversar
sobre fadigas
ou intrigas
ou poesias

-tudo parece bem
desde que ninguém
nos veja
-vamos apagar a luz
então
a palavra vem tufada
a discrição é unânime
o soalho é compacto
e o grito mau agrado

real
físico
tocável

como as lentilhas no prato
ou a argila que moldo
e a letargia razoável
do resto de sonho lívido fel

se já estás acordado
verdade rinocérica

e o estômago aos roncos
fumegando a histeria

tudo é ela tudo é ela
amante bizantina
e eu sou
a ponte que vacila

cancela, manda fora
que o amor tem sarna
e lama na ponta da rima
são só
palavras mal vestidas

de um carnaval
de despedidas