Chapéu azul na cabeça. Rosto redondo bolachudo e corado. Roupa preta e sapatos com buracos. Sem idade. Encostada no degrau da porta do supermercado. Dentro dos vários sacos, uma perna de frango, uma garrafa de plástico com um líquido cor de vinho e um bocado de pão. Leva o lenço de papel aos olhos. Outras vezes chora. Fala como se estivesse acompanhada. Procura nos vários sacos, guardando a perna de frango, não se sabe mais o quê. Às vezes olha para quem passa sem que trespasse nada mais do que vergonha. Baixa os olhos, trinca mais um pedaço de pão. Às vezes olha para fora, outras vezes para dentro, ao encontro de nada. Ajuda com as mãos os pedaços que se colam nos dedos. E de novo ao rosto. Uma expressão que parece falar com quem passa. As bochechas descaídas como se estivesse sempre a chorar. E as grandes malas atrapalham quem quer passar no passeio. Espirra porque sente o rabo na pedra fria. É um corpo que ainda sente contradições como o frio e o calor, a chuva e o sol. É um corpo que já não sente as contradições do bem e do mal, da justiça ou injustiça. A elaboração passa por atirar para o alcatrão, para debaixo dos carros estacionados, as ossadas do animal que já saciou a fome desta mulher. Segredos, ela conta pequenos segredos a quem vai aparecendo aos seus pés. Uns escutam, outros nem por isso. Às vezes são casais que passam abraçados e sorridentes, outras vezes são mães que passeiam os carrinhos dos seus bebés, às vezes são homens cansados que se arrastam passeio a cima, outras vezes são jovens em grupos que correm atrás das miúdas de botas altas que correm atrás das modas das montras. Fecha os olhos e repousa ambas as mãos sobre os joelhos gordos. Não sabemos se dorme, se sonha. E a cabeça vai tombando para a frente e para trás. E o passeio vai embalando não sabemos se um corpo, se um nome que já não se recorda do corpo que tem. É o rapaz que vai fazendo as mudanças, que carrega o carro da namorada com sacos e caixas de cartão que a faz abrir os olhos. Por pouco tempo, ela fecha-os novamente.
Se formos capazes de imaginar a nossa casa sempre cheia de estranhos a entrarem e saírem, também seríamos capazes de fechar os olhos e procurar outro lugar. Não pode haver lugar mais só do que um lugar cheio de gente desconhecida, que nos ignora, que nos obriga à transparência, que nos enterra nos buracos da calçada para que não incomode aos olhos, não incomode o realismo da verdade que existe porque está ali mesmo na esquina seguinte. Também nós caminhamos de olhos fechados, ora cambaleando a cabeça para a frente, ora cambaleando a cabeça para trás. Só não temos fome, às vezes.
Limpa as lágrimas uma vez mais. E o chapéu azul encontra-se agora de lado, encarando de frente quem passa, passando para esses olhos, um olhar de desprezo. E conversa-se mais um pouco. Tal e qual como se estivéssemos no café com uma amiga distraída ou surda. Às vezes parece que reza. A boca abre e fecha e o olhar pestaneja, lento, como a vida que é vivida sem manejo. Porque é que tu carregas com todo o peso do mundo?
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