quinta-feira, 18 de julho de 2013

Datado de 2007 (presume-se) - Encontro

Aperta o casaco de fazenda ao peito e enrola o cachecol de lã à volta do pescoço. Ajeita o cabelo, coloca a mala no braço e um último retoque ao espelho redondo. Dirige-se à porta. Para trás fica uma noite atribulada. Uma sensação de cansaço aconchega-lhe as pernas quando desce a rua em direcção ao rio. O dia está cinzento e não há sol que dialogue com as horas. Procura na mala a agenda enquanto caminha atenta ao passeio. As ruas estão cada vez mais sujas. Tanto pormenor que gostaria de reter, tantos personagens que circulam por Lisboa, tantas janelas rendilhadas e esplanadas sofisticadas. Não pode, é preciso caminhar atenta ao passeio. Atravessa a passadeira no vermelho porque por momentos foca o olhar à direita. Dispara. É ele. Do outro lado do alcatrão. 

Do outro lado do alcatrão. Casaco vermelho e branco de malha inconfundível. Caminhando em direcção ao rio descendo mais à frente. Decidir, é preciso decidir-se. Acelera o passo, procura no olhar dele um encontro casual, mas os segundos batem-lhe tão depressa no coração e num impulso involuntário parte para o outro lado do passeio, chamando-o. Corre na esperança de apanhá-lo desapertando a respiração do cachecol e levantando os sapatos do chão. Toca-lhe por trás na parte vermelha do casaco. Ele pára. Roda a cabeça na direcção dela. E os seus olhos encontram-se. Expirando intensamente uma quantidade de emoções contraditórias que se empurram pela faringe até aos lábios. Quis dizer qualquer coisa, um olá, um então, mas o maxilar e a língua desorientados na boca não conseguiam reproduzir palavra. O embaraço cresceu no silêncio. João. Disse finalmente ofengante e transpirada. Joana, respondeu directo. E a palma da mão gotejava inquietação. 

Então por aqui, há quanto tempo, bem me parecia que eras tu, que tens feito, estás por cá?
Tanta pergunta e nenhum espaço para explicações. Como se o tempo tivesse bloqueado a cabeça, a imagem paralisou tudo o que era vida e momento, o semáforo permaneceu vermelho, os peões pararam no passeio, os pássaros colaram ao céu. Os carros pararam no alcatrão e uma força centrífuga engoliu o cenário sonoro. Tudo parou a 360 graus daqueles 4 olhos. E dentro daquelas cortinas vibrantes o mundo imagético disparou numa rotação louca, as imagens, as palavras, os sons, os odores, as batidas cardíacas, tudo bombava a uma velocidade extasiante. E tudo se atropelava por todas as saídas resultando numa tentativa de comunicação sufocante. Uma palavra. Tempo. O retrocesso não era passivo e o corpo transmitia a correcta noção incerta. E agora que nos voltamos a encontrar o que fazer ao acaso? O que fazer do possível? Aquele raio de sol chamado embaraço encandeia o caminho da acessibilidade e a informação cerebral não encontra conexão. E o corpo estava a trair a beleza alucinante que viajava por dentro. 

Vamos tomar um café ou ias a algum lugar importante? Um sopro de alívio a tilintar num pássaro no céu. Não, Não ia a lado nenhum e nada me faria perder esse café. E quando o primeiro pé começa a produzir  a acção do caminhar lado a lado, numa leveza muito suave, o cenário retoma lentamente a sua agitação rotineira. Como se tudo estivesse a regressar a si mas de uma subtileza diferente. O rio estava mais esverdeado, o céu estava mais azul, os pássaros desenhavam trajectórias celestiais, os carros não andavam, planavam. As pessoas não caminhavam, sorriam. Os sentidos estavam a capturar um espaço e um tempo outro. Doce era o paladar que crescia na boca. Como se todas as formas do universo se tivessem encontrado e tomassem o seu devido lugar e os corpos reproduzissem uma mandala perfeita. A instauração das formas puras. Uma aragem fresca acariciava o rosto delicando ao ouvido que caminhassem lado a lado para sempre. 

Vamos a um café muito giro ali na rua do Alecrim. Deves gostar. Como sempre e como fora antes, as palavras dele encontravam o desejo dela e não era preciso explicar as coisas, porque elas eram sempre simples entre eles. Era tão fácil estar que era apenas preciso permitir levar-se. E deixar que os seus pés flutuassem no camuflado de algodão doce que agora cobria a calçada. E a cada esquina que se descobria, uma surpresa de pirulitos era oferecida pela mão de um palhaço com um nariz vermelho. Um palhaço ilusionista com uma flor sem espinhos ao peito. E uma caixa azul com estrelas prateadas libertava bolas de sabão e em cada bola transparente uma nota que se elevava e rebentava na atmosfera uma musicalidade quase infantil. Nota a nota, ficava para trás o equilíbrio que a cada próxima esquina se restabelecia. Nesta ingenuidade sonhadora, entraram. Primeiro ela, depois ele, pelas portas envidraçadas de uma arcada trabalhada em floreado. Era um café pequenino mas muito acolhedor. Mesas redondas de madeira, baixinhas e almofadas. Em cada mesa uma vela aromática e uma frase sob o vidro que servia de base. Uma frase com palavras articuladas em poesia. Estavam dois casais novos e um senhor mais velho ao balcão lendo um livro grosso com uma lombada de couro. Fumava um tabaco parecido com aquele que ela também gostava. Bebia alguma coisa quente parecida com um chá. Sentaram-se próximo da grande janela que iluminava de um tom alaranjado o interior. No tecto candeeiros de papel salpicavam de vermelho a laranja açucarada e pequenas cutículas de azul petróleo pingavam quase até às mesas, dançando ao ritmo de cítaras apaixonadas. Ela olhou o menu e ele tocou-lhe na mão. Estás com alguém? Desculpa mas não consigo estar aqui em devaneio sem saber se devo enterrar os pés no chão. Ela sorriu-lhe nos olhos, não. Colocou a mão sobre a dele e aproximou o rosto ao ouvido dele. E entre nesgas de cabelo cor de mel desalinhado, pronunciou baixinho aquilo que também lhe estava a fazer cócegas entre a amígdala e os dentes da frente. Amo-te. Sempre te amei. E num beijo só, encontraram a paz para o desassossego de muitas horas, muitos dias, muitos anos de palavras amareladas, guardadas com muito sonho lá na tal cómoda empoeirada do sótão perdido. Num beijo só do tamanho de todo o tempo, desde que o tempo é tempo, prometendo boca a boca, coração a coração, mão à mão, sexo a sexo, prometendo que a partir daquele momento , só passaria a existir um único e completo tempo, um contador de horas e minutos, dias e anos que só aos dois pertenceria, que só aos dois obedeceria. Uma história de amor, não, a história de amor que os dois contariam em uníssono a partir daquele beijo, daquela promessa. 

Ela regressou ao menu e agora conseguindo entender o encadeamento de letras, pede, um chá de laranja lima e um scone. E tu? O mesmo, sorrindo. Pediram ao empregado que se arrastava numa túnica branca e umas sandálias de tiras coloridas, parecendo respirar uma atmosfera um pouco diferente daquela que se assumia na laranja salpicada. Talvez atrás daquele balcão e dentro de espaço que escondiam as duas portadas de madeira, estivesse um narguilé recheado de prazeres. Ou talvez não e tudo fosse fruto da vida que renascera dentro daqueles dois corpos que a emanavam, aureando e contaminando todas as arestas que os contornavam. De volta um ao outro, ela acendeu novamente o pavio da palavra. Conta-me tudo, onde estiveste, com quem, o que pensaste quando me voltaste a ver, porque nunca me escreveste como havias dito da última vez que nos encontramos? Tantas perguntas e todo o tempo do mundo para as responder. Um pouco atrapalhado, procurando lembrar-se da primeira, bebe um golo de chá perfumado que entretanto viera de dentro e começou com Londres. 

Estive dois anos em Londres a tirar uma pós graduação. Só vim a casa no Natal do ano passado, a vida lá é muito cara e lavar pratos nos tempos livres não me ajudava a pagar o avião. Estava a viver com um italiano louco de arquitectura e uma francesa que era violinista. O namorado dela estava lá  sempre em casa, cheirava mal e comia tudo o que havia no frigorífico. Ela escutava as palavras dele, imaginando o quão espectacular teria sido se lá estivessem os dois juntos. Devaneando por uma casa, um prédio antigo com vista para uma avenida cheia de pequenos jardins e bus vermelhos de dois andares sempre a passarem. Cozinhavam juntos, viam filmes sem legendas, saiam para beber nos pubs canecas gigantes, comiam peixe frito e batatas na rua. Passeavam pelo Hyde Park, contavam os pássaros deitados na relva abraçados, observavam as crianças nos baloiços e na saída da escola imaginando um dia um pequeno ser parecido com eles de mãos dadas a atravessar a rua. Estudavam à luz do candeeiro branco, adormeciam despidos e acordavam juntos. Teriam amigos de várias nacionalidades e visitariam museus de arte contemporânea. Ouviriam concertos de Jazz, teriam trabalhos em part-time para as despesas, teriam fotografias juntos, frases e palavras em duas línguas. Quando regressou à caneca de chá, reparou que se havia perdido e procurou escutá-lo. Já estava em Lisboa. Agora tenho enviado currículos e estou à espera de respostas positivas. Talvez um atelier onde fosse possível trabalhar as peças, talvez dar umas aulas para as despesas. Enfim, não me calo e o chá já está quase frio. Calou-se, mas como ela não dizia nada, tocou-lhe na mão e disse baixinho, nunca deixei de pensar em ti e muitas cartas te escrevi, mas nunca as enviei. Tinha receio de que me tivesses esquecido. Talvez estivesses com outra pessoa e já não pensasses em mim. Talvez nem fosse bom para ti estares presa a uma ideia e se calhar quando eu voltasse já não sentias o mesmo ou decepcionavas-te. Não sei, penso em muita coisa mas deixei o meu pensamento adormecido no papel. Guardei-as, talvez gostasses de lê-las um dia destes. Ela baixou os olhos na direcção do meio scone e como se por entre as mesas tivesse escapado uma nesga de tristeza, olhou-o e sem saber como, abriu a porta e deixou sair uma nuvem escura. Sorriu, gostava muito de as ler sim. Durante todo este tempo, tive sempre a esperança de abrir a caixa do correio numa manhã e encontrar notícias tuas, ou receber uma chamada ou um mail. Fiquei à espera mas também não dei um passo na tua direcção. E o acaso acabou por nos encontrar, às vezes caminhamos na rua certa. Aquelas palavras não tinham dimensão suficiente para caber naquela espera e todas elas cabiam enfim numa única palavra, cobrança. Estaria a cobrar uma promessa que nem ela cumpriu nem ele. Estaria a cobrá-la ao tempo e à pequenez das pessoas que se acomodam nos sofás das suas casas e esperam que o carteiro lhes bata à porta. E isto causava-lhe incómodo, uma sensação de fraqueza, como se sentisse que os seus sentimentos não teriam força para fazerem cartas chegar. Não estava assim tão longe e uma promessa de uma carta não poderia ser assim tão difícil de cumprir. Era agora uma tempestade de nevoeiro e chuva pesada que entrava pela laranja a dentro e a transformava num igloo branco, desconfortável, duvidoso. Ele sentiu no corpo dela uma contracção e uma rigidez que lhe gelava o chá nas mãos. Não, não penses assim. Como sabes no que estou a pensar? Estou a sentir, por isso sei. Aproximou-se dela e fez-lhe uma festa no caracol do cabelo escuro. O contraste com o azul da íris era profundo. És tão linda. Minha bonitinha. Nunca esqueci este azul que todas as noites contemplava ao adormecer e que me acordava com bons dias meigos. Às vezes dava por mim a imaginar-te comigo nos lugares. Sei o que farias, o que dirias, conheço cada gesto teu e cada pensamento. Conheço-te e isso deu-me tranquilidade para esperar. Conheces-me? Ela sorriu de forma provocante. E se eu tivesse conhecido entretanto alguém fantástico? E se eu te tivesse esquecido? Conheço-te tão bem que até conheço as tuas perguntas. Se assim tivesse sido, o nosso amor teria sido fraquinho e o nosso coração um mero conformado. Ninguém nunca te vai amar como eu te amei. Não sejas pretensioso, riu-se ela. Agora que te reencontrei vais ficar comigo até enjoares. E riram-se os dois. Estavam descontraídos. E a laranja tinha voltado a ser quente e doce com salpicos de azul petróleo e vermelho confortável.



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