Fecha a porta. Aqui não é preciso trancar. Desce as escadas de madeira em caracol e do lado de fora do prédio pára. Não é preciso trancar mas a chave tinha ficado lá dentro. Momento de pânico e indecisão. Duas opções: chamar os bombeiros, sairia caro ou trepar a árvore das traseiras e alcançar a janela que sempre tem o hábito de deixar aberta para arejar, seria perigoso. Contorna a rua.
Ao lado da árvore olha para cima. Ainda é alta e hoje estou de sandálias. Vestira-se com pressa apanhando o cabelo no elástico e calçando a primeira coisa que vira na entrada. São sete da manhã, a esta hora estaria a caminho da baixa na paragem do eléctrico. E logo hoje que o dia era complicado de tempo. E não eram todos? pensou, que azar. Ponderou chamar alguém mas a rua estava ainda deserta. A manhã estava fresca e contentou-se de ter trazido na pressa o lenço de algodão para cobrir as costas. Se ao menos alguém passasse, alguém ágil que conseguisse trepar. Uma árvore centenária, como várias outras enfileiradas ao longo da rua. Essa árvore que lhe deixava sombra nas tardes quentes de Verão e onde de noite repousava o olhar tantas vezes à janela fumando cigarros e bebendo da garrafa. Só a mim é que me acontecem destas coisas. Tenho 33 anos e sou tão desorientada como uma criança que precisa de colo e cuidados maternos. E riu-se.
Cuidados maternos, há anos que não visitava a sua mãe. Não porque se dessem mal mas por estar longe e a vida aqui na cidade lhe ocupar aquilo que chamava de tempo útil. Faltava-lhe aquilo que na terra os amigos chamavam de tempo para não fazer nada. Já não o sabia fazer. Sempre que se decidia a não fazer nada, deixando desarrumada a casa, a loiça por lavar ou a roupa espalhada, deitando-se sobre a cama decidida a não fazer nada, não era capaz. Não porque na sua cabeça disparavam ideias de inquietação. Estou a perder tempo, estou a perder tempo. E acabava por gastá-lo nas ditas tarefas que urgentemente assumia. Sentou-se junto à árvore. De momento, de momento tinha todo o tempo do mundo porque se seguisse com o dia para a frente ao regressar de noite seria ainda mais complicado de entrar em casa, talvez até a taxa dos serviços de bombeiros fosse mais elevada, não sabia, não sabia de todo o que fazer. Acendeu um cigarro e voltou a medir o tronco que alcançava a copa. Era realmente uma grande árvore. Das poucas que tinham resistido ao corte de ordem dos engenheiros da câmara, como em tantas outras ruas do bairro. As raízes estavam a levantar a calçada. Ela própria já tropeçara vezes sem conta, distraída com qualquer tontice paralela. Se eu fosse mais nova, como era em miúda lá na terra, não seria tão complicado de chegar lá acima. Ponderou então trepar. E porque não tentar? Mas o tronco tinha um diâmetro gordo e não tinha ramificações a menos de vários palmos acima da sua cabeça. Esticou o braço e conseguiu alcançar uma saliência para equilíbrio. Se ao menos eu fosse entendida de escalada. E tudo o que sei fazer é lavar cabeças. O tempo ia correndo no relógio e algumas pessoas saiam das suas casas. Ninguém conhecido seu, sentiu-se embaraçada com a própria ideia de querer trepar e mais ainda com o pedir auxílio. As vizinhas eram intrometidas demais e ela sentia-se a destrambelhada do prédio, a única mulher solteira, a única com horários esquisitos, a única de poucas falas e olhar esguio, a única com pedidos insólitos frequentes, como aquela vez em que o jantar começou a arder e o alarme disparou no prédio inteiro ou a roupa interior caiu na corda do vizinho ou o gato caiu da janela...eram tantas já as peripécias que lembrá-las neste momento só lhe acrescentava ridículo. E uma dor do lado direito da cabeça tiquetando suavemente dá sinal. Leva a mão à testa e suspira. Não, hoje não por favor.
E o vizinho aparece à janela. Estranhando a presença dela ali parada ao lado da árvore, diz-lhe olá, está tudo bem? Corando ela responde que sim sim. Estas são as máximas palavras que habitualmente trocam quando se cruzam nas escadas. Há anos que assim é. Desde os dezoitos anos que tem esta casa e ele pouco mais a dele. Mas o vizinho é um menino das escolas empresariais, sempre muito direitinho de fato, carro novo trocado de dois em dois anos e namoradas de uma só noite constantes. Mas é homem, a ele as vizinhas não criticam. Azedou-se-lhe o ridículo. Não ia pedir ajuda a este empertigado, hoje não. Sempre tinha a ideia de ser o motivo das gargalhadas dos jantares debaixo. Desta vez ele não teria história para contar nas noites de póquer. Assim ele regressa ao interior fechando a janela. E ela regressa ao seu dilema. Que maçada, não sei o que fazer. Estou a perder a manhã, corro o risco de ser despedida daquela espelunca e não posso deixar este trabalho, a casa, quem é que me paga a renda? E voltou à árvore. Ocorreu-lhe que se colocasse por baixo o contentor do lixo talvez alcançasse ramos. E que diriam se a vissem a arrastar meia rua de contentor e pesado que era. Os outros são um inferno e o meu corpo também. Se ao menos tivesse nascido homem...Que diferença faria? Aposto que se fosse um homem já teria chamado os bombeiros para arrombarem a porta. São simples eles. Tão simples que se aborrecera com meia dúzia de casos e estava agora entretida com uma colega do centro comercial. E hoje que tinham combinado jantar. Já nem se lembrava de tal facto. O dia estava a complicar-se. Precisava de resolver rapidamente a situação.
Retirou o lenço das costas e decidida atravessou a rua na direcção do contentor. Tinha rodas, só teria dificuldade na parte do lancil do passeio e no espaço a atravessar entre os carros estacionados. Rezando para ninguém a observasse naquele momento começou a empurrar. Um cheiro podre de degradação entornada entrou-lhe pelas narinas. Uma velha vira a esquina e pára diante dela. Mas onde é que vai com o contentor do lixo menina? Vou lavá-lo, minha senhora. Nada de mais lhe ocorreu no momento e a velha seguiu o seu caminho ainda olhando para trás duas ou três vezes na sua tão própria desconfiança. Susteve a respiração o mais que pode e empurrou. Era pesado e quando o deslizou pelo lancil, ao passar entre um mercedes azul e um punto branco, a parte lateral do contentor na força do deslize em que ia lançado apanhou o espelho retrovisor do mercedes atirando-o para o chão num esmigalhar estridente. Não. É o carro do vizinho. E agora? Apeteceu-lhe rir às gargalhadas e ao mesmo tempo gritar de nervos. Não é possível que eu não consiga fazer nada sozinha. Levou as mãos à cabeça e aquele palpitar de antes era agora um agudo alfinete penetrando-lhe o crânio. Agitada, agarrou no espelho e meteu-o dentro do contentor, escondendo os vestígios da tragédia. Não iria contar nada, a despesa parecia que tinha acordado consigo na cama e em duas ou três trancadas lhe havia deixado a marca para o resto do dia. E ela que era a pessoa mais tesa deste mundo. Perseguição de azar. Empurrou com mais força o contentor para contornar o prédio ajeitando-o debaixo da árvore. Descalçou-se assegurando-se que a calmaria ainda estava na rua. Na rua sim, dentro de si é que não. Controlou-se e equilibrou-se de pé. A dor era agora intensa e por momentos os seus olhos turvavam. Só preciso de aguentar mais um pouco, só um pouco, a cegueira não por favor, agora não. Esticou-se com dificuldade porque também o contentor não estava totalmente estável, maldita calçada pensou. E o braço alcança então um ramo. Puxando a si todas as suas últimas forças chega lá. Estava toda ela agora sentada no ramo. Descansou por um momento. A esta altura, a mesma da sua janela, a vista era-lhe conhecida mas não de cima desta árvore. Olhou em volta. Lá ao longe o fundo da rua parecia mais fundo. Olhou para as janelas dos vizinhos. De frente para o prédio conseguia uma visão privilegiada de todos os que tinham abertas para as traseiras. A do vizinho estava fechada e como os vidros eram espelhados não conseguiu distinguir nada lá de dentro. Ainda bem que não tenho vertigens. Pensou. Sinto-me um gato, um gato com uma terrível dor de cabeça. E riu-se, estava mais tranquila agora que ao alcance de um pequeno pulo podia entrar em casa, tão tranquila que esquecera até a pressa do tempo a passar. E deixou-se ficar mais um pouco fechando os olhos e massajando a cabeça.
Desculpa, mas...Era o vizinho, estava à janela. Estou acordado não estou? E o gozo com que saíram estas palavras da boca dele fê-la ter vontade de se atirar lá para baixo. Mas lembrou-se do espelho e um certo conforto de confiança deu-lhe ânimo para responder. Não, não estás acordado, eu é que estou dentro do teu sonho. Pereces uma gata, rindo-se, precisas de ajuda? podes cair e aleijar-te gravemente. Não, disse ela, estava só a apanhar uma cena que ficou presa aqui num ramo e ia já voltar para dentro de casa. E costumas fazer isso muitas vezes? Que insistência, ele não desistia da humilhação. Sim, de noite costumo vestir o meu fato de vinil e saio por aí em defesa dos oprimidos. Se eu soubesse disso já te tinha convidado para vires aqui a casa para tratares de mim, ando sempre tão oprimido. E riu-se alarvemente. Tenho a certeza de que muitas outras gatas deves ter aí à tua disposição para tais ideias. De facto sim, mas nenhuma nunca me entrou pela janela. Eu também não te vou entrar pela janela, aliás é para a minha janela que tenho de seguir, estou atrasadíssima para o trabalho. Não, espera, nunca conversamos. Não queres entrar na minha para tomarmos café e depois vais trabalhar? Ela estava a estranhar-lhe o interesse. Há tantos anos morando no mesmo prédio e nunca tais investidas ele manifestou. Mas deu-lhe a dita curiosidade de gata, como será a casa dele por dentro? Será que tem bom gosto? Será que é arrumado? Que disparates, a cabeça estava toda embrulhada nas peripécias da manhã. E além disso ela tinha namorada e depois, que tontice, o vizinho a dar-lhe para estas coisas e ela ali naquela situação desconfortável e não havia meio de entrar em casa. Fica para outro dia, agora tenho mesmo de entrar, desculpa. E num pulo de agilidade entrou finalmente na sua própria casa. Depois de tudo, já não tinha vontade nenhuma de sair de novo, vontade já não tinha antes, mas agora faltava-lhe energia. Tudo estava como havia deixado. E lá estava a maldita chave, na porta do lado de dentro. Procurou os comprimidos na gaveta da cozinha, ela melhor prevenir que a dor voltasse. E ouviu a porta do vizinho a abrir-se e ouviu bater na sua. Mas o que quererá ele agora?
Trouxe-te o café. Achei que talvez estivesses a precisar, deves ter tido uma manhã atrapalhada. Não precisavas de te incomodar mas agradeço. Não me convidas para entrar? Eu estava de saída mas, sim entra. E entrou. E atravessou a sala e entrou no quarto. Estava à procura do fato da gata, e ri-se. Desculpa, não estás a ser atrevido demais? Não foste tu que me entraste pela janela? Não pois não, eu estava sonhar. E pressinto que vou ter muitos mais sonhos destes em breve. Sempre te achei uma vizinha terrivelmente sexy mas agora com esta imagem de ti pendurada na minha árvore, não resisto, chega-te aqui. A árvore não é tua e o que te leva a pensar que tenho algum interesse em ti? Pela quantidade de vezes que deixas cair roupa interior na minha corda. Tenho uma colecção de roupa tua já guardada, que delícia de colecção. E o atrevimento dele estava a roçar no ridículo e ela que sempre se sentia dessa maneira em relação a ele, começou a achar piada à situação. Sabes as gatas como eu não se dão assim à mão. E continuou a devolver-lhe a provocação. Precisam de se sentir confortáveis. Então ele despe-se. Completamente todo despido. Assim sem meias medidas. E ela explode de riso. E
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