quarta-feira, 24 de julho de 2013

Maria da Guarda - Versão para acabar noutro dia...

Atravessou a rua e parou diante da porta. Porta feia de metal absolutamente banal. Tocou à campainha. Duas vezes e esperou. Impacientou-se olhando para o relógio. Três da tarde. Hoje é quarta-feira e eu chamo-me Maria da Guarda. Havia alguns dias que fazia este exercício para si mesma. Um teste totem à realidade. Acaso de se perder pela rua ou até mesmo durante o sono. Cruzou os braços e descruzou-os novamente para ajeitar o cabelo. Confirmou o cheiro dos sovacos e o hálito na mão. Está tudo em ordem. 

A campainha toca duas vezes. Da segunda vez o som tal giz em quadro de ardósia rasgando o tímpano onírico. Que horas são, que dia é hoje? Abriu os olhos colados de ramelas salgadas. Tinha adormecido a chorar embrulhado no peluche que normalmente apoia e entremeia os dois joelhos. Magro que nem um espeto, Luís Filipe procura o telemóvel na tábua assente em livros que serve de mesa de cabeceira. Sim, é quarta-feira. É o dia da Maria. Permite-se alguns segundos ainda deitado. Eu devia ter um comando para abrir a porta lá em baixo sem me levantar, seria mais cómodo sim.  

O trinco da porta liberta-se e ela sobe os dois lances de escadas onde o cotão se desenrola nos cantos obscurecidos. Prédio sinistro este sem luz. Apalpando pelo corrimão é a porta encostada que lhe indica a entrada. Como se não a conhecesse, entra na timidez de um estranho que procura outro estranho. Já estás levantado, estava a ver que não me abrias a porta. Um tanto amarrotado, fá-la segui-lo até à cozinha. Podes começar pela loiça enquanto eu vou tomar banho, depois deixo-te a casa livre. Estás gira hoje, ficas para jantar? Ela sorriu e disse que sim. Então, faz-nos qualquer coisa leve, hoje sinto-me pesado. Dormi mal, muitos pesadelos. Até já, e seguiu semi nu pela casa a dentro. 

Maria parou diante da pilha de loiça respirando fundo. Restos de comida da semana inteira e moscas atracavam-se como momentos vividos naquela cama. Momentos doces e amargos. Que ela procurava esquecer de regresso a casa, esquecer como tantas outras coisas na sua vida. Uma amnésia de conforto que lhe permitia levantar-se de manhã e arrancar com o dia, um dia igual aos outros, todos menos quarta-feira. 

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