sexta-feira, 19 de julho de 2013

Datado de 2006, finalizado em 2013 - Roleta Russa

As máquinas pararam. Em toda a fábrica o silêncio mecânico é sinónimo de pausa para o almoço. As mãos de André afastam-se da linha de produção. Carregando no botão vermelho, a passadeira pára. Vira costas às horas que perde com borrachas e parafusos e acena para o Luís da finalização. Chama o Fábio e o Ricardo da etiquetagem. Os quatro não têm todos juntos mais de sessenta anos. Os mesmos que a fábrica já tem. São miúdos, ainda nem a barba necessita de mão de obra. Os fatos azuis igualam-nos. Trabalhar para ajudar nas despesas de casa ou para estoirar em merdas. Estudar nunca foi uma opção. Do lado de fora o sol do meio dia salienta as olheiras de André. Acumulando turnos, as horas de sono são cada vez mais reduzidas e a pele vai tomando os cinzentos metalizados das peças.

André mete a mão ao bolso, hoje a parada é mais alta. E Luís que sempre se queixava de levar caldos dos outros todos abana a cabeça deformada e rapada dizendo que não. Não pá! Atão assim ficamos lisos! Deixa-te de ser maricas ó Luisinha filho da tua mãe, alinhas ou não alinhas, tudo ou nada pá! Tou farto de andar aqui a brincar aos berlindes. O Sr. Lourido lá da secretaria chibou-se ao ouvido da miúda da cantina e a miúda da cantina tem dado cantiga ao André no corredor da máquina de chocolates. Todos os dias as apostas do almoço se servem dos despedimentos para encher ou esvaziar os bolsos dos quatro amigos. Há uma semana que são diários e as apostas salivam de vício. 

A mão de André brinca no bolso. Vamos até ao armazém. Os outros vão atrás. A pouca luz intermitente e as prateleiras a abarrotar de caixotes até ao tecto arrepiam a espinha de Luís. O André sempre gostou de cenas macabras, já por várias vezes trouxe para a fábrica brincadeiras idiotas puxando ao limite a coragem dos outros, que em si não era de todo o seu forte. Mas tinha porque tinha de alinhar, a vida no bairro não era fácil e assim como assim sentia-se protegido fora da fábrica quando despiam os fatos de macaco e regressavam a casa. Os outros raramente se manifestavam contra, inchavam o peito e alinhavam. 

Num silêncio imperioso a mão traz à vista um revólver de tambor giratório. E os olhos de André brilham de gozo desafiando os outros. Para que é isso mano? Vais matar o boss? Não, hoje eu sei que um de nós vai prá rua. E sei quem. As pernas de Luís cederam e o equilíbrio tornou-se ridículo. Não, então qual seria a ideia? Voltando ao bolso retira uma bala dourada. Uma só bala na outra mão. Cada um de nós vai apontar à vez a arma à cabeça do que está à sua direita, se falhar segue o próximo, até que a puta dê a volta.  Loucura, eles eram três contra um, como poderia obriga-los a esta loucura pensava Luís que em tantas outras vezes viu o impossível acontecer, vendo realizarem-se as ideias destorcidas e perturbadas de André. E sentiu a dúvida a mirrar-lhe o pensamento. Estou perdido. Pensativos os outros fixavam a bala. E André prosseguiu, se falhar no fim da volta, piramos-nos todos da fábrica e do bairro, vamos embora, fugimos daqui, juntos. Os outros permaneciam em silêncio inquietos. A ideia era absurda e aos mesmo tempo de uma expressão de lealdade e cumplicidade brutal. Talvez por isso nenhum tenha logo rejeitado no momento a proposta e no silêncio se iam acomodando à ideia, menos Luís a quem já o azar perseguia batendo o coração a mil à hora. O que lhe fazia confusão é que o André também se sujeitava à prova. Já há muito tempo que desistira de compreende-lo e tinha consciência de que os outros nem sequer faziam esse esforço, porque era normal que assim fosse, porque precisavam dele. Um misto de admiração e receio, um respeito esquisito. Para ele era instinto de sobrevivência, instinto esse que se via ameaçado agora e entalado neste armazém de peças sufocantes. Encurralado era a expressão exacta. Eu alinho, disse um dos outros. Não tenho nada a temer. Que se foda, eu também. E a menina Luísa tá dentro? 

A porta do armazém abre-se, era a miúda da cantina. Frequentemente corria a fábrica à hora do almoço à procura deles, para Luís ela era ainda pior do que o André. Não conseguia olhar-lhe nos olhos e nunca lhe dirigia a palavra. Sentia-se pequeno ao pé dela. Ela intimidava-o porque era mais arrojada que todos os outros. Não alinhava em apostas mas contribuía com ideias descabidas que pioravam sempre o cenário. Como se a cabeça dela tivesse saído de dentro de um filme de terror. Ela própria era estranha. Muito magra, vestida com roupas demasiado largas, cabelo sempre muito curto, excessivamente pintada nos olhos e raramente sorria, aliás, ria-se sempre dele, gozando-lhe a mariquice. Todos sabiam que andava a comer o André pelos corredores da fábrica mas diante de todos, ele tratava-a com desprezo, a miúda que lhe ia servindo para algumas cenas, dizia ele gabando-se. E ela era destemida de facto. Foi ela que assaltou o cofre no ano anterior, foi ela que desviou caixotes de peças que depois venderam, foi ela uma série de coisas concretizadas saídas da cabeça do André. Só porque lhe dava gozo fazê-lo. Era uma miúda que se sabia mexer dentro do bairro a troco de favores vários. 

Que estão aqui a fazer? Não costumam vir aqui, já corri tudo, já sabem não é? Vão despedir-te..André mandou-a calar-se antes que o olhar dela denunciasse quem. Vai-te embora daqui, o assunto hoje não é para o teu bico. Ela ergueu o queixo e repeliu. Essa agora, qual é a ideia da arma, vão matar alguém? Vamos, vamos matar-te a ti se não te pirares agora. Ela riu-se. Be my guest baby, gozando. O outro falou. É melhor ela entrar na cena, já sabes como ela é, não desiste. Porra a miúda é um inferno. André estava a começar a ficar irritado e Luís já não tinha sequer reacção. Vou explicar-te então, quero ver se tens tomates para isso. Mas, olhando para a arma, porra, só tem cinco buracos o tambor. Não dá, ficas aí a ver. E qual é a piada disso? A miúda insistia. Epá não dá, não percebes, esquece, ou ficas a ver ou piras-te. Ela puxou de um caixote e sentou-se a fumar um cigarro. Siga então. Mas eu parto com vocês, vou embora também! E o Luís abre a boca. André, disseste que se a bala nos falhasse a todos que nos pirávamos e se não falhar? Estava a tentar ganhar tempo desesperadamente. E a miúda regressa à conversa ignorando-o como era hábito. Então e se rodarmos o tambor para cada um de nós? Assim já não há o stress dos buracos. Os outros sentaram-se porque já estavam há algum tempo de pé. O André meteu as mãos à cabeça e gritou, epá tanta merda, vamos a isto, pode ser se queres assim tanto, rodamos o tambor para cada um e tu Luís, a ideia é se acertar nalgum de nós, que é que achas, que ficamos aqui todos para o funeral otário? Baixou os olhos e encolheu os ombros. Tinha de seguir em frente com esta loucura. 

A gritaria chamou a atenção de um zé ninguém que ia a passar pela porta e espreitou. Só cá faltava mais isto. O André abre a porta e aponta a arma à cabeça do outro. Caladinho disse-lhe ao ouvido. Vamos seguir com isto, mais um para a jogada, ou alinhas ou a bala fica já aqui na tua cabeça. Estava passado já. E a miúda delirava em gargalhadas. Os outros falaram. Não pá, a ideia era sermos só nós, o nosso grupo, onde é que isto já vai. Não importa, há que improvisar! O outro começou a chorar implorando para o deixarem ir e quanto mais chorava mais a miúda se ria. 

Alinharam-se então em roda. Introduziu a bala e rodou o tambor. Ergueu o braço direito à sua direita e puxou o gatilho. O silêncio foi agredido com um estalo seco. Escapou o outro. Ninguém se moveu. O outro pegou na arma e repetiu o procedimento, à sua direita estava a miúda. Apontou a arma à cabeça dela e nesse momento ela fechou os olhos. E puxou o gatilho. Novamente um estalido seco. Sem expressão a miúda pegou na arma e rodou o tambor. À sua direita estava o Luís. Apontou-lhe à cabeça. Uma lágrima escorreu-lhe pela face, da dele. E ao puxar o gatilho a arma encrava. Ela procura rodar o tambor de novo e nada, não gira. Parou a olhar para a arma. O André avança. Dá cá essa merda, não tens jeito nenhum. E apontando para o fundo do armazém tenta disparar para que desencrave. E a arma dispara. Um estrondo que derrubou uma fileira inteira de caixotes.

Merda pra isto. Vamos embora que se foda. E saíram todos em silêncio do armazém. 

Sem comentários:

Enviar um comentário