Virou as costas ao vento, analisou o céu e calmamente, abriu as asas e deixou-se cair.
E acreditando poder voar, a meio da queda, levantou voo. E um prazer medonho tomou-lhe o peito de seguir em frente. Por vales, subindo a montanha, em direcção ao sol.
E lá no alto, seguro de si, contemplou a pequenez de baixo. Cruzando-se com outros anjos, sorriu.
Deus andou por aqui, num rasgo cor de rosa, descoberto de uma nuvem, um arco-íris. Cheira a água de colónia. A pureza, a leveza, a liberdade. E asas batiam, gigantes, dos seus ombros sentia-se a textura de cada pena. Branca, macia. Batendo, para cima e para baixo, escutando-se apenas como vela ao vento.
E seguiu rasgando o céu do mundo. Por desertos, oceanos, florestas. Perseguiu o horizonte faminto de vida. Inchando o coração de ar fresco. E a vista de suprema sabedoria. Se pode uma vida ter apenas um dia. E voando mais depressa agarrou o tempo. A cada segundo um batimento. Um, dois, três, quatro, cinco..e rasante, planando apenas leve. Quase como parado. Como se não existisse.
Uma lágrima deixa cair. Tomando a ideia de se deixar cair. De não bater mais as asas. De planar até a força da terra o começar a absorver. De ser puxado engolido pela desistência. E contou, um, dois, três, quatro, cinco..fechando os olhos, vertiginosamente, a queda. Da rapidez a absorção. E cada vez mais depressa e o embate crescendo alastrando terreno preparando um corpo cada vez mais pesado. Ainda vou a tempo, abro as asas e seguro-me. Ainda vou a tempo, será que quero?
E na última chance inspirou e abriu as asas. Sentindo no peito a copa das árvores a uma velocidade cortante. Força, com toda a sua força. Última chance de se erguer. E ao conseguir equilíbrio, procurou um poiso no chão. E lembrou-se que tinha pés. Lentamente, o seu corpo permitiu-se à verticalidade. Primeiro um, depois o outro. Suave, a frescura da terra lavando a palma. E caminhou encolhendo as asas. Acalmando no peito a dor da queda a que se salvou. E ao caminhar as suas penas começaram a cair, primeiro algumas, depois todas. Nudando a pele das costas, deixando uma carcaça de armação que antes fora asa. Que se escondendo, guardou dentro das costelas. Nunca mais poderei voar. Condenei-me à terra. Salvando-me. E deixou-se cair sobre os joelhos em desespero. Chorando desalmadamente. Olhou as mãos, ainda sem calos nem rugueza, macias de nada enterrou-as na terra húmida. E remexeu esburacando fundo mais fundo até chegar ao cotovelo. E do cotovelo penetrando meteu a cabeça mergulhando argiloso a dentro. Todo ele, enraizando tomando o corpo de semente. E da ponta dos dedos filamentos engrossaram e dos pés uma folha verde saiu ao mundo. Crescendo o sol e a lua confundindo-se. E uma árvore se ergueu aos céus. Silenciosa, frutosa, imponente. Anciã solitária. E um pássaro pousou-lhe num ramo. Acolhido criou um ninho. E vieram homens e colheram os frutos. E uma casa e depois outra, à beira da sua sombra. Crianças correndo, baloiço, cães e gatos. E um dia um enterro, alguém é deitado nos seus braços debaixo da terra. Lá bem na escuridão, ainda os olhos fechados, em simbiose comunhão. E o anjo acordou então de um sono profundo de noite. E foi nesse momento que pode finalmente regressar ao céu carregando a alma desse alguém que partiu, abrindo-se a terra à ascensão. Ao chegar entregou-o nas mãos de Deus e pediu-lhe caminho, sem escolha, que fosse Sua decisão. Serás, o Anjo da Morte. As lágrimas cobriram o rosto manchando de negro todo o corpo. E voltou a Deus pedindo uma razão. No momento em que deixaste de bater a asas, escolheste. Desesperado em fúria, virou-lhe as costas e desceu ao Inferno. Procurando uma fogueira queimou as suas asas negras. E deixou-se caído a um canto. Entregue ao vazio condenado ao tempo por muito tempo. E um dia, Deus estendeu-lhe as mãos e disse-lhe, compreendes agora? Vem. Para que serve um anjo sem asas, para que servem as asas senão para voar? E o anjo arrependido sorriu. Obrigado. E nunca mais deixou de voar. Pelos céus, em liberdade.
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