terça-feira, 17 de dezembro de 2019

tétrico só


um traço obliquo desajeitando o caminho
o encosto do pau ao homem
rebentando o estômago na beira de estrada
onde cantam os galos fora de horas

calvo de buracos nas solas 
aquele resto de sobras 
uma dor enferma de partida 
de se deambular apenas metade pela terra
a lua do alto pobre de palidez e cansaço
espreita por entre as vestes um animal invertebrado
segue lhe com os seus olhos de laranja ardente
o caminhar de fim de gente
gente que já se partiu 
o pano caído de fim de noite
e os aplausos surdos de uma vida de morte

anda uma lágrima sempre caída no canto
castanha nem sabe se pele ou terra
por aqui se rolavam berlindes e saias de folhos
e carros de bois com cornos 
sempre a molestia de se olhar para ontem
e o caminho sempre se tropeçando
segue o foco giratório do farol
não sabe se casa sua ou estrela de ninguém

as unhas ferrando o sapato aberto
porque se não lhes chega nem ao tecto
e o colchão de palha ou o púcaro na asa
e os anjos de alhos pendurados 
ecoam os cantos da igreja descarnada
crianças fantasmagóricas de beira de altar
a noite não é negra antes esverdeada de putrefacta
e na mesa de cabeceira o retrato de maria
estéril fria sorteada menina eterna
o tempo conta-se em linhas de vela ardida
onde é sempre noite de dia
dorme-se com a mão no peito para sentir o próprio batimento
não há pássaros nem rastejantes só arrependimentos

o pousar do espantalho perneta e desolhado
que bate contra as paredes de pedra
porque não há pássaros nem ninguém 
por dentro vive-se porque se foi parido
como tripas de alguidar temperando
que se podia desejar...o raiar..a ceia...a voz 
o consumo das chamas 
por aqui se pede tão pouco e tão grande é o arrependimento
de não ter dado corda aos pés e aos braços e aos olhos
anda para ali um gigante que não quer saber 
de brincas de criança com marionetas
e está um homem de trapos à espera
deitado na sua cama de mão sobre o peito
contando o tempo ardido
imagina-se quarto de quarto em caixa de cartão
o telhado levadiço de uma casa de enfermos
retalho cozido à linha de um poema que só sabe dizer silêncios

e brincas sem meninos...ou marionetas sem linhas
e tão pouco
se encontra a ponta









quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Anima profunda


o curto fôlego do inverno sonoro
acolhe me na casa paterna do submundo
alumiada por castiçais de ossos e repulsas
emanadas das paredes carnais húmidas de sangue
é um ramo de hortenses com dentaduras de aço
é o primeiro assalto da noite para uma gaiola da altura do peito

há no candeeiro pigmentos de purpurinas
ou a cauda de coisas estrelares a descoberto
e a presença recém chegada de uma órbita
que veio para instalar de nadas os sem tecto

levo a mão aos beiços brancos
o tempo vago para a palavra estrangeira
das mãos enxadas para um buraco mais fundo
o corpo papel de seda
ou um biombo de tristeza
Crescem na vez de garras sopros para apagar a luz
do pescoço canos de longo alcance
para fuzilar o vácuo de mais vácuos

depois uma cama de ferro preto arabesco
os livros empilhados na cabeceira
só o debate nesse céu de estuque constelado
e horas passadas em conversação anímica
é um azul brando por trás das quimeras
atados ao calcanhar guizos murchos de inverno
a alma ouriça aberta de beira de estrada
e as águas correndo umas para as outras
uma pomba negra de mácula pelo adeus
ou a missão iniciática do nascimento
ou um avatára síntese do caos
um homem pêndulo cravado o sol na pedra
para lavrar o tempo de mais tarde
de vento oeste o trono corpo de pontas esculpidas
emergir do centro do disco ou da onda da baleia
como uma panaceia de silêncios pacíficos
o mar profundo dracónico
abrindo uma enseada para o palco da alma
o imaginário ovo cósmico
e o coração ainda jovem de sede flamejante

invejo o coração jovem dos flamejantes

as forças inoculadas no âmago de uma lágrima
invocar o céu num furacão
ou ingerir o líquido elemento da placenta feliz

na perigosidade de olhar para a vida no seu todo
tão rápido é-o no pensamento
ás vezes nasce se com esta ideação outras morre se por perto
A morte entretém-nos de razões
A morte pensa com fome
e um pensamento de barriga vazia é perigoso















quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O abismo da paz


O sol no lugar do oratório
pântanos que se apanham à mão
na tortura do tempo
a voz de outro mundo soerguendo se
como uma redoma de ternura angustiada
os feixes da muralha feridos
as âncoras dos nossos passos desusados
são os olhos de quartzo que desaguam sem pressa
na sonolência de cada manhã
qualquer coisa que cheira a lavanda ou piedade
e o lustre de pingos de lágrima sobre a cabeça
ampara refractando as primeiras horas
de joelhos no chão reza
a pequena embarcação descola da muralha
erguendo as mãos ao céu
procura na concha a pérola  do medo
havia degraus de musgo
e um quintal galinheiro correndo histéricas por entre as estátuas
vindo comer à mão do profecta
só nos últimos dias mais esmorecido
e às vezes levemente acordado
depois a velha cozinheira varria as ruas
tinha um vazio fora de órbita
no alimento que lhe assomava na beira da porta
havia muitas horas então
para seduzir a sorte de empurrão
e o poder da virgindade para os companheiros de exaustão
havia nesses olhos sempre virgens
um socorro esgotado
e uma leve impressão de deus
ou da vigilância dos céus
uma pensão um hotel familiar
a praça de bronze o quiosque o vago de uma cadeira
ontem andamos por aqui
Imundos como águas paradas
 e sólidos como lugares sem tempo
torres sob antigos arcos de nuvem
para chegar à margem da ria
Esparsos e lodoso
uma grande mancha negra que reflete
armações de caixilho de mogno
batidas, marteladas...pancadas
dir se ia que as palavras eram mecânicas
e as horas, no abismo da paz

porque esperaram anos por nascer
e galgar a pele fantasma da paisagem






quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Conceção terrena de um sonho



Todos os caminhos são pontes
a teia quebrada, o vaso sanguíneo
a memória fortaleza tributo
habitada para se conduzir depois sem estrada
e apontava um peito numa praia
para dormitar ao sol
os pés em gratidão por sentir a areia
naufragando no colo da onda
nomes antigos de que nos tornamos proprietários
consultando a vastidão para nos desaparecermos
como se esgota a palavra na boca seca
e os tremores da terra erupções na pele
a pauta avançando frenética de vazios
e intenções de mergulhar mais fundo
quando a espiral da aranha encontrar o epicentro
para adormecer na quantidade certa da luz
para se encorajar a luz a habitar lhe no peito
e centenas de patas existir na terra o sonho
a sombra regressa ao corpo
as naves levantam para voar no abandono
E os mestres mecânicos da morte descansam
a riqueza quântica do afecto
um lagarto de fogo só num elevador
dirigindo a cabeça um ninho
para fertilizar de dunas e mágicas grutas
um dragão de bronze agora no topo do edifício
para contemplar o aborrecimento da corrente e praguejar sem voz a ocupação terrena
lá em baixo
apenas alguém que exausto de peles
desfila depois de fênix articuladamente
osso e músculo descarnado
como um artefacto de nudez e pureza
e tudo o mais é profanação
fecha os olhos inundando a praça de massa aquática
daquela que afoga a ausência da guelra
e o lagarto da sua varanda ampla
fecha os olhos
procura o cântaro de barro
fundindo se de paredes e pincéis
no canto da sombra do pátio da velha
que se arrasta para dentro
nesse poente sempre tardio
ficam outros descarnados pelo alcatrão
Cães histéricos que se emprestam ao desespero
caminham saindo dos limiares acimentados
para encontrar os prados da velha senhora
o chamamento aportando-se-lhe ao alpendre
murando lhe a vista num cerco de proteção
no equilibrismo erguendo-se um sobre o outro
os muros  crescendo paredes
vazias para ecoar toda a paciência de uma obra catedral
e na praia, na contração de um esforço maior
esse oceano harpa inunda de prata a sombra
para o reencontro da velha criança
para fazer girar inflexivelmente os pulsos
os tornozelos apertados levitam
e caminham sobre a água que um lagarto peixe escolheu...sonhar

Tenho arrumado caixotes de máquinas
que deixaram aqui a um canto
caminho como outrora caminhava no cemitério da minha família
divagando no silêncio
Tudo agora deve ser arquivado no seu devido lugar
para que a terra possa respirar

Fecho os olhos e vezes sem conta a música pára e encontro me nesse lugar

passeio por entre os mortos sem precisar de falar

Não quero dormir a seu lado
Sinto lhes a paz ou o inferno do seu silêncio
Não quero arquivar-me nesse canto
Não me quero num caixote

Penso que me invade esse lugar porque era criança e as crianças brincam entre os mortos, como os lagartos sonham entre os peixes...

Mas só quando a música pára...



quinta-feira, 22 de agosto de 2019

o escoador da alma



arquitectado
as ruas atraentes de bomba mecânica
enxameada a torre prisional
ou o último degrau de babel
onde estiver a afeição no partir da casca
essa província da alma
o oriente desembarcando no olhar
a narração do tempo devagar
e uma voz de embalo que guia o arrepio
protegido dos ventos das grandes vagas
escutando todas as frequências da terra
como um barco naufragado no centro
um buraco rude no passeio, na praça central
por onde mergulham agora os pombos e os carros
uma espiral negra de condensação sugante
e por fim pessoas

um enxame de gente partindo para nenhures
ao centro da terra
serpente que os olhos não vêm
no ponto comum do imaginário
e cerra o tampo finalizando a acção do sonho
agora a rua deserta e todas as outras simétricas
por não ser possível dominar mais o tempo
o terror dos objectos na sua ausência
surdos, perdidos no espaço sem fim

o sol caído antecipadamente nas nuvens
roídas as traças das fronteiras
o reflexo de mais nenhuma página virada
fugindo nus da escuridão
versos que quebram o alcatrão
ao curral dos hectares da insónia
espantados vestidos de púrpura
emanantes de pontos nervosos
dilemático momento de sombras infladas
abrem se passos que partem das ombreiras
uma chama que se recomeça dançante
e garras de animal ressurrecto

rangem agora as dobradiças de glóbulos brancos
imbuídos de um trânsito Maquiavel
o eco das coisas vazias levianas movediças
o estrondo do sangue frio correndo agora
nos socalcos e rebordos de uma outra aurora

e escondidos os barcos das nuvens
de um azul negrume aveludado ardido
o tronco soletrando a morte evadida
oca, que grita quando se entra pela porta
trazendo o frio de fora
um galo galopante de horas madrugas
em torno das escamas dos confins do túnel
do pensamento catatónico

e uma marioneta movida de sedas de aranha
circular e ancestral
volvida de paz para amansar o Fim
no latejar da mão que escreve sem alma
a luz parcial do bruto alívio
tocante
pactuarmo nos com a força da queda
a língua da terra seca
que nos une rematados
nesse arauto céu que agora revirado
para cavalgarmos nos barcos em nuvens de algodão
peninsulares e dirigíveis
tudo no desamparo de um lugar pronto a ser reabitado
de colunas de esporas e adeus


quando, todos os passos forem ecos


quarta-feira, 21 de agosto de 2019

um retrato na beira da linha



a psique deslocada na terra em parte alguma
os seguimentos da noite em ressurreição
as asas da madrugada mergulhando ao nascer
um falcão vermelho para além do infinito
na litografia da paisagem o rasgo
para a restauração do peito ou da pedra
e um motor sinistro de céu orgástico
os olhos atravessam de uma ponta a outra alcançável
o terror sem rosto dos sonhos
são carvoeiros de espectro instável
que educam a miserável morte
há o contradito das coisas humanas
esse algoritmo restrito utopiano
escorrendo da bica florescendo
e toda a procura da maquinação ou da sua omissão

louvar com anseio sem foco
todas as repúblicas do escarnecer
o caminho recto e perene
porque reina a insónia dos estendidos ao sol

e havia um estrangeiro supérfluo
passos abalando a presença da areia
pela azinhaga dos anjos
que agora com os seus veios estrangulados
apertava o corpo contra os muros
ou as mãos que agarram o corpo vegetal

mas o dia nasce sempre vazio
domingueiro irreal
com os seus cânticos preces gaiteiro
uma cólera feliz
e todo um deus celular da vida dilatada
nos pântanos do meio sono
há o desígnio impenetrável dos laços de seda
a alma ouvinte canónica
e a raíz da repetição
o rio desse traje petrificado
a grande massa de água movendo se
entre margens do ventre
suspenso e morticínio

depois a lua na revolução das marés
urgente de luz
enquanto que na penumbra o caminho lácteo
emenda maleável a mente
para viajar sem corpo
a voz das aves milagrosa da casa mundo defunta
e a extensão corpórea
como uma armadura de feixes de raiva
somos agora polegadas sem trilho
vulcões de fósforo e encaixes de blocos materiais
malabaristas sem candeias
para os impulsos da letargia
na corrida louca contra um relógio de areia
nossos palmos um radar
a cabeça pendurada nas mãos
vai na frente do tronco, das pernas, das penas
como um gesto de pedra falsa
que se devaneia por entre os dedos
no desencanto do vento

a terra odorífera opaca
até mesmo putrefacta
vejo uma árvore centenária á beira de uma escadaria
a grande cisterna isenta de cerco
sebes de linho branco toldos lentes
tons de alaranjado âmbar
e plantas no lugar de jardins
as paredes crescem cobrindo se de pedra
e agudos pinheiros

no pesado néctar sou qualquer coisa
como cândida dormência
sou submerso envenenamento do abalo
e contritos olhos a dentro

agarro na mão esquerda uma vela
ou um coto de réstia de vela
no seu rigor mortis
levantam se amedrontadas almas serpenteando
ciclones movidos
estranho o meu coração vidrado
que alberga caveiras de impressionismo
o horizonte exposto de uma vida inteira
e completos os terços do mirrado corpo
a velha de negro cabelos brancos soltos
sentada na cadeira á beira da linha
volvidos os outonos da embriaguez
de noite sempre noite viajando
agora sem olhos e com ramos de amparo
o silêncio pactuado com tentáculos de grito
grunhido animal num tipo de obsessão
pela escuridão
senhora do trono sentada
escuta se a guitarra mais triste
dedilhada por dedos cadavéricos quase sem vida
num tipo de obsessão quase penitência
os dedos agulhas de nós e malhas
para tudo buracos da memória que agora incomodam
como escribas do diabo
nessa devassidão de só
os declives das frotas das sombras que se levantam
das margens, da linha do comboio, da azinhaga, dos poços
dos pomares das serpentes da expulsão do ventre

e ela tramitando um búzio enleado nos dedos
peneirando a poeira dos tempos
para o mortífero estalo do pensamento

fareja lo, vergado enevoado
esvoaça nos meandros da casa essa áurea
buracos que ladram e lavram por si
aduncos dedos sementeiros de nada
nos intervalos do desuso
para catar as carraças do animal que fica
e os espinhos armilares da vida







sexta-feira, 19 de julho de 2019

o velho e as pragas



as primeiras luzes rudimentares nascem com o dia
juntam-se ao café, ao açafrão, à manteiga
da farinha, dos ovos, da alma
as sobrancelhas brancas, os cotovelos perros
fazendo sinal para que entrasse
com a profunda tristeza de um vestuário fantasma
o beiço inferior pendente de algum beijo
o desespero de permanecer incógnito o tempo
faz ninho nos cantos a espuma da superfície aquática da boca
essa casa jangada que brota vulcânica
no gado habitáculos de vácuo
o solo depois de cultivado restolho de choro
ditos que depois de proferidos são exóticos
as frases desconexas como géneros de peixes
que habitam agora a terra com guelras
ou a raiva babilónica sem opulência
a vida um boomerang na mão incapaz
o sinal do infinito que se desfaz na cúpula
e toda a paisagem uma tragédia estética
ou apenas a decadência melancólica
Mas ergue as mãos frágeis aos céus
cavaleiros do apocalipse rompem nuvens
a luz partindo de cima aos olhos
olhos que choram de cegueira e dor
o velho parte-se em dois num rasgo
o maior compartimento da torre o peito
agora peitos sem vigor geminados
um chefe de orquestra sem músicos
babujando-se entretido de brincas do demo
para caminhar em sentidos de costas

e percorrer a terra inteira
porque redonda haveria um dia o reencontro

o velho canta só
a alma partida em duas
as grandes lâminas de ardósia da escola
agora limpas
escuta com prazer o carrilhão do eco
fantasmagórico
retira estupefacto da boca do cão
pedaços do seu coração
amassa-os com choro monólogos sem voz
o seu coração enrugado despedaçado
depois de confundido por pedra
num qualquer canto desta terra

como cão que em vez de osso levou pedra
como cão que em vez de osso levou pedra



segunda-feira, 15 de julho de 2019

Tammuz



como pedras imóveis na encosta
e uma figura negra estreita junto à única árvore
depositado no topo
um homem campa ou pastor
lentas, rebolando milimetricamente
a vida imaginada do pastor
a ribeira, o silêncio, a solidão
o alimento arrefecendo nas mãos
paralisado no limbo último
do alpendre a mesa, a toalha evocando o vento
um alpendre sem voz, peso ou lembrança
um alpendre quieto como nenhum homem
as pessoas entrando depois saindo
passando por entre os quartos
através das paredes
a sala ecoando os passos
o lugar de si, das coisas de outrora
coisas que não são pessoas nem mais coisas sem pessoas
Deito-me no chão de estrelas
empresto à luz um corpo exausto
e dedos varinhas para o desejo
levo a mão ao sexo húmido
aberto recolhe a dor da ausência
a outra mão sobre o livro
as palavras sofrerem o abismo
um arrasto de pele e vício
as pernas fecham-se em choro
os grandes espaços da terra loura
as planícies abandonadas suicidam-se
ao passar para a outra margem o pastor
deixa a cerca em aberto
os animais esparsos sonâmbulos
para refrescar as mãos das palavras
esfrego-as no fundo do sexo
um cadáver de homem deitado ao meu lado
tâmaras e gemas de ovos continuando
no atalho de uma receita para queimadas
à borda da estrada as malas sempre feitas
grãos de cevada queimados na cafeteira
as aldeias apareciam de negro
caíam por si
e dos utensílios de barro abri o peito do pastor
manchas desiguais de dor
às vezes, por entre as ervas altas um bosque de loureiros
para me lembrar da tragédia de se amar
sem se encontrar
os objectos da casa quietos
a mão esfregando com mais força
a morte sempre a morte num orgasmo Pégaso
às vezes, um pó de carvão para refrescar as mãos e atiçar o ventre
para a última queimada da terra
As paredes de cal suja do assalto das ossadas
ou porque a cabra coxeava, num templo distante
o escravo lançou-lhe as pedras
que à luz fraca do crepúsculo
no nosso idioma são ovelhas
e os dedos cortados para o prazer
retomam a imobilidade das paredes

Antes do sol nascer, acordou-a.



sexta-feira, 21 de junho de 2019

o arado aritmético



quebrar, arar

de perfil os campos
uma cabeça de leão desfigurada
e do alto do escudo um olho terceiro
quero romper com a violência de mim
passar pelo interior em campo aberto
levantar de helicóptero os cabelos
consumir os sapatos de caminho no ar
e passar cortando as pernas pela revelação
assim poder violar o coração de oculto
e todas as horas de diferentes mecânicas
bater ao mesmo tempo desconectado
assim poder dissipar-me num miar de ânsia
e brotar da gelatina dos astros
falando-me da luz do prosseguir dos raios
para continuar a marcha e fender-me em dois
deixar-me para trás a cessar num de repente
e em anéis de febre as linhas da alienação
quero introduzir a desordem
interromper um tratado de paz imposto
as algemas presas nas copas despidas
para sempre um inverno confortável
e romper em luta que rompe com o silêncio
falar depois de estar calado
ser o primeiro a falar
fazer ruína para tudo o que está calado
e em silêncio
para segredo confessar o nome vulgar
que está prestes a assentar-me
Saída
na cola na cauda do animal ferido
vermes da ruptura do alimento onírico
a mão corre com o som seco e áspero
os ramos bipartidos espartados
e as patas de um rinoceronte crescendo na fronte
ronco e respiro a custo
aqui do alto o ar é raro e cavernoso
o fluído respiratório dos ossos
brônquios cordéis superiores
o ronco da mais bela aurora
diz-se um animal dentro da cavidade abdominal
andando em roda aflito
para enfim se descobrir qualquer coisa
que se rondou por anos
desfigurado da oclusão perfeita
vibrante está-me de visita o verbo transitivo
Hoje, ganhar tempo na ronda
quero mais tempo para podar a alma
e versos que não se repetem de fim
Hoje o pêndulo sou eu
E o homem saiu de casa, levou a chave
ao bolso e começou a andar.
Como um foguetão lançado ao espaço
o caminho fugindo abaixo dos pés
a cegueira o suor a língua seca
a correria dos objectos devolvidos ao caos
e carregar nas costas o filho morto.
Fabricante de rocas.
O homem adulto, sem sonho.
E para aliviar a pressão
despe-se, descalço
.
Tudo é água e pedra
e nenhum pássaro levantou.

Ficaram as imagens, dentro de casa
no lugar comum arrumadas

E os insectos e as larvas.

E os pulmões respirando para o nada.

Nesse pequeno ornato de cor agora azulada.

Para ser ainda a onda




domingo, 16 de junho de 2019

uma cadeira vaga



havia o anonimato das portas cerradas
a frequência dos objectos quietos
das suas massas musculares em repouso
havia a fuga e o ruminar do longe
o lugar da sua fria cólera
e ácidos tragados pela fome
o estômago vazio e Olimpo
uma temperatura tépida
para mais tarde o arder da película
havia a marca do sol no pulso
a sombra da falta de tempo
janelas em ogiva para a distorção
e dedos quebrados pela areia lençol
havia a nudez ainda pouco tocada
a casa crescendo dos braços viris
comprimindo-se da sucção
com os seus quartos escuros
que a pouco e pouco se iluminam
o trabalho demolidor do animal
na sua obra de cópula virtual
a união física para engolir a saliva
e o guarda santuário com a sua respiração
que todos os dias assiste ao cavalar
das paredes que se abrem como páginas sem lombada
todos os dias nasce a tarefa de a tecer e voltar a tecer
como uma narrativa dactilografada na pele
depois há os dias dos lábios secos
lábios de escarlate fulcral ao amor
insondáveis da vontade de me dissolver
e o grande invólucro que sou
mergulhado em suores frios
como um inexorável fantasma
deixado cair da cortina e um soluço de angústia
encontro-me aos tombos mobiliários
a consciência de uma casa em abandono
como pesadas colunas e pó do lugar vazio
afasto-me no sonambulismo abissal
como um caminho cego e compulsivo
e apenas heras que trepam
sobem por mim acima para chegar às janelas
cobrindo os vidros e entre as calhas musgo
e o espírito no seu rasto gladiador
na perseguição do fim de poder chegar ao topo
desses telhados de zinco mais perto do céu
da porta dois degraus de pedra suja
escutam-se os passos da rua passos que não entram
porque as coisas do lado de dentro são desfocadas
a última flagelação que habita ainda pela falta
e a vaga de quem não chegou ou talvez sequer nasceu








quarta-feira, 29 de maio de 2019

a recta mais longa



A casa dava-me pontapés
numa zanga espiritual de não adeus
do corredor à casa de banho
uma recta tão longa
para um veículo de luzes apagadas
aninhar-se os olhos confortável na paisagem
nesse nocturno de altas formas e ramos
dos fornos fluídos em repouso
para abrigar o braço
dos freios da artilharia do coração
depois aceleramos como canhão
um tiro rápido
e um abraço que estreita o tempo
reparador de calor
a extensão rumina o recalcamento
a terra de uma força viva
animais recolectores desse reco reco
de aço temperado
o vento pela janela esfriando lentamente
para abrandar e pelas lombas de alcatrão
a voluptuosidade do carnal
o meu corpo pensante um recreio
vejo anjos sentados nas copas negras
agitando as pernas baloiço
e as asas em repouso
nesse nada de instantâneo
que é a nossa travessia industrial
a água acumulada nessa obra
dique de lágrima reprimido
e tubos de pvc resinosos
somos particípio do passado
e o anjo vira o rosto com a autoridade
de um animal só e em paz
nós que seguimos sentimos esse rapto
é a nossa alma que deixamos para trás
na fronteira com o Inverno o gelo
no banco do passageiro
sufocante, o ar para o cronometro painel
ou as horas arqueológicas que nos depositam
como contos do passado agora futuro
os animais dormem na beira da estrada

atravessa-se, com a preocupação da descrição
a fita que se arranca da caixa para nenhum aparelho de leitura
as palavras são ondas que se dissipam
e os nossos dedos moinhos sub aquáticos
o anjo regressa com a cabeça meditada
no alfinete e na distorção da sua língua
para nós a recepção é sempre terrível
e sempre ainda assim familiar
as plantações prisioneiras da terra
a terra encantada como cela do imaginário
se o mapa acabasse nessa recta
não mais que a vida chegando à morte
e a chama azulada de um aparelho de soldar
a ânsia de chegar sem nome
e as palavras um enxame neurológico
quando a manhã se aproxima de um lilás desmaiado
e o anjo depois de estrangulado
tomba semente
páro o carro, corro como gente aflita
se eu for agora beira de estrada
talvez o tempo se reflita em mais tempo
e os bichos saiam das tocas no seu resíduo de voracidade
respirar, o oxigénio onírico para entrar na combustão
de espírito limpo
grita, gritar mais alto
para acordar a vigília do mundo
e o quebrar dos ciclos ou o ácido genocídio
e a alma ripada pelo tempo
ritmo, ritmos
nessa sucessão de intervalos metricos
descanso repouso num escudo rombo
Aonde diabo vais?
quero sentar-me para ver os outros passar
cobrir-me do manto pesado da roda
que agora não mais me devora
E a casa zanga-se porque pensa que a abandonei
mas estou aqui, e o anjo e os animais
e as palavras e a recta..e a escuridão
que nos espera





sexta-feira, 24 de maio de 2019

Ruminação sem beira



 o silêncio das searas
mas os passos por lá ficaram

passos antigos
que arravessam a extensão dos sonhos
duas irmãs duas vidas
automatica mente ao infinito
para a retribuição da morte
as searas chegando à cintura
os bichos sorrateiros que dormem
a sombra o amarelo torrado
e uma irmã que fica para trás chorando
um futuro natal no cimo do monte
a lua a escuridão os fardos de amanhã
duas irmãs escravas da terra
caracóis negros olhos azeitona verde
e o balbucionar de um não me deixes para trás
os animais profetisando a morte
vagueando como ilha e um faisão
o nascimento súbito do tempo
pentrando pelas vigas do telheiro
esse sol ateu incêndio
saltar da cama cair de joelhos
gatinhar-se de esperança
quando se dissipa o nevoeiro de fim de tarde noutro inverno
e se ajeita a lenha para se acender o esquecimento
daqueles que partem daqueles que ficam
as cinzas atiradas ao vento
com a vontade de gritar o pensamento
duas irmãs caiadas de dor
como paredes onde se regista o tempo
ou a altura do crescimento
castelos de auto controlo
para passos que hão de ser gigantes
Não me deixes para trás
porque as searas são da minha altura
e eu e os bichos somos maus
ou apenas o eco da divina loucura
Abriam-se as pequenas janelas postigos
as redes cheias de mosquitos
a avó trazia o leite fervido
e a idade amassada com amargura
Vejo ao longe esses passos que nunca nos levaram ao cume
a superfície lodosa da terra venenosa
Sulfurica
a madeira impregnada de salitre
quando a terra se cobriu de lágrimas
e o juramento de por lá ficarmos
sentinelas da solidão
para assistir à mutação do homem besta
e ao sussurro do ancoramento do mal
em nome do fogo
e das comportas cerradas do coração
e das sombras das redes de almas perdidas
molho agora as mãos no nevoeiro
visito essa praia colina
Vivo à beira de um vale ventoso
como a aranha que se esgueira pela gaveta
como quem
quem nada tem a vender ao diabo
e minha irmã cerra os lábios
num calar-se para sempre de distância
começo a andar mais depressa
porque o tempo não espera
e a avó partiu fazendo o sinal da cruz
como um catamarã de dor funda
para curvar as baías do limbo
para ver finalmente surgir
o canal do coração em aberto
o próprio mar vivo movendo-se sobre nós
com os seus molhes esbugalhados de prata
e o corpo peixe despido
olhos nacarados sem pulilas só fantasmas
o fantasma do som das searas
de uma madeixa de cabelo caído
da avidez dos gestos da penumbra das salas
que agora sem tecto nos aguardam o regresso
Começo a cantar, a meio de uma palavra
uma oração com a imperfeição de um tampo de mesa ou de campa
o som rítmico e estridente da passagem
das cordas que ainda hão de vibrar num amanhã
os braços da criatura abertos
e a força de um ferro de forja
embalo minha irmã nessa cadeira de baloiço
hoje não se sabe se velha ou criança
escultura de animal que decora o espaldar
para que absorva o calor e a música
e a terra a mover-se sem pressa
o som era alto e vibrante
para o divagar desses passos de infância
dou-lhe a mão, nunca a larguei da mão
nessa imagem que hoje, depois de quase morrer
restaurei



segunda-feira, 20 de maio de 2019

Uma casa para a criação



A idade começa a crescer-me entre os ossos
como aquelas ervas rasteiras dos passeios
e um rosto sem par que por mais aparado
suspende-se ao espelho como daninho
aquele corpo ave que se vai cansando de levantar
e as horas deitado ou as patas amarrado
a vida como um relógio de sol sempre na escuridão
e uma alma sincera de dor, exausta por repousar a cabeça no exílio da sombra
a poesia sempre como uma auréola mortal
para a avidez humana de lhe servir de escudo
batem-me à porta homens aflitos
de tudo quanto existe para além do terreno
este quarto uma praia árida onde só o silêncio
em bruto, continuamente o céu empurrando-nos para baixo
só o sopro das janelas uivando de medo
para saborear a liberdade e a dissoluta água que reside no poço da morte
A idade...
como aquele galo que canta atordoado fora de horas
para nos revelar as vicissitudes da luz
e o descanso inigualável da noite
tudo vem ao chamamento magnetismo
a violência dos aquedutos do tempo
e os passos que na surdina da mentira nos afastam de nós
a caneca fica suspensa no canto da mesa
como que por impossível força suspensa
é essa a beleza da decadência
como uma casa agora desabitada por nós visitada
porque se visita a própria vida vista de fora
quando somos animais roedores de vigas
ou cortinas ou a tinta que salta das paredes
e os ecos das pessoas que lá moraram
soam dentro de nós sem saudade
Como se pode ter saudade do que nunca se viveu?
A fantasia visita essas casas quando se entra por uma porta escancarada
e o chão tapete de ervas daninhas
Só então, nesse momento, essa casa pode ser o pensamento, livre.
Fotografam-se, arquivam-se.
Guardam-se em albuns de memória como canecas suspensas antes da queda.
E escondem-se, dentro dessas casas devolutas à espera.
Enrolados na febre da solidão mais forte que o tempo da morte que não vence.
São as unhas que raspam vivas o caixão






sexta-feira, 17 de maio de 2019

Um dia perguntaram-me: porque pensas tanto sobre a morte?



Um dia o meu pai há-de morrer
como um cristal quebrado do lado de dentro
daqueles que trazemos ao peito
assim nú, onde os fluídos da ânsia
apagam depois
as faíscas dos corpos vivos e uma tristeza barroca
depois fica-se à espera
deixando que o quarto anoiteça
com um sopro no coração ou a chuva em queda
Nesse dia morre um pedaço de mim
transbordando dos aglutinados momentos
ou talvez apenas mais um retrato morto
Parte, extingue-se a voz e o calor
e os lacaios estáticos de tons humanos
porque a carne se enrijesse
e tudo anda à roda assim a meia luz
Varriam-se os planos no voo sem alvos
Quando ele dizia que eu andava à deriva
quando me carregava ao cólo
e o meu corpo avião sem sólo
Parte sem que lhe diga adeus ou até breve
e a dor fica-me finada entre os dedos
como a areia dessa ampulheta quebrada
num vago de ausência e presença
para as descargas do pensamento
ou os passos que se aventam sem fé
Um dia passeámos a pé
a vida mudava
e depois como um regaço de gadanhas
cabeças de hidra guizos de prata
ou libelinhas de suavidade
Se eu pudesse dar um passo para fora da terra
os olhos estrelares pintados de negro
e buracos de vácuo
aonde o embate nos vence transferidos
e as linhas batem na janela
porque entre o espaço e o quarto
havia sempre uma fresta
Sucede-se a vida, sem darmos por ela.
Um dia,
deslizando como verniz na porcelana
que hoje nos recebe solitária na entrada
um dia voltaremos a ser pai e filha holográficos
Depois há sempre uma casa
com as suas mutações contínuas
as curvas da escada o tapete o casaco atrás da porta
os objectos que nos vivem das suas crónicas diárias
e o mundo que lhes descansa sobre a forma
Depois há uma folha de jornal ou um vizinho que se chega à porta sem entrar
Porque dentro daquela casa hoje se chora e há respeito



quinta-feira, 9 de maio de 2019

A velha e o aquário



A velha coberta de trapos negros olha as marés, a agua que vai e vem aos seus pés
Olha com a serenidade de alguém velho
E a água vai e vem com a impulsividade de algo novo
Mas é sempre a mesma não é? A água dos oceanos é sempre a mesma não é?
Porque a terra é sempre a mesma não é?
E a velha olha para a linha que a separa do infinito sem qualquer pensamento.
Expira de muito fundo o ar que é já rarefeito e volta a inspirar com a salinidade de uma lágrima.
A vida terrivelmente drástica quando atravessada para a morte.
 Mas esse é um pensamento exterior à velha.
Avança e recua com o pé descalço na água fria de inverno. Não se recorda do seu último mergulho.
Não se recorda de ter sido criança se alguma vez o foi. Porque as mãos já amanhavam o peixe, quando o peixe ainda era peixe no aquário de outras crianças.
A vida é um grande aquário de perdas.
 E nós peixes, no esquecimento das suas paredes redondas. Mas este é um pensamento  exterior à velha.
Porque as paredes do oceano não são redondas nem de vidro nem seguras. E o mar não lhe trouxe de volta a vida.
Até os peixes se suicidam. Atiram-se cá para fora, ficam a dançar no chão para o desperdício das suas últimas golfadas de ar.
Os peixes, esses, despedem-se da vida a dançar. Ou a lutar desesperadamente por respirar.
Porque se atiram? Porque as paredes são redondas e eles não  se esquecem que já deram a mesma volta centenas de vezes. Matam-se por desespero.
Porque o aquário é redondo e depois, como todos os seres vivos, lutam contra a última golfada de ar tal como lutam para que o ar lhes saia dos pulmões na primeira golfada do nascimento.
Mas este é um pensamento exterior à velha. Que podia ser rocha ou grão de areia ou pedaço de madeira de embarcação.



Inverno tardio ou o pior poema de sempre



Porque o poema chega sempre com a melancolia de um inverno tardio
como se gasto fosse já da sua energia vital
chega com a fatalidade do depois
como em tudo na minha vida e até a própria vida
Eu queria escrever dessas histórias perfeitas um romance ou muitos igualmente ilusório
mas como posso parar de viver se não paro?
vivo ao ritmo da respiração ofegante de um grito abafado nesse peito
e se não paro como posso escreve lo?
talvez por isso só me crio de poema
de rápida combustão e sempre tardio entendimento
Depois paro às vezes por tão breves segundos que os fotografo
novamente a ilusão de que me permaneço de algum lugar com tempo
e são os carris que me seguem do avesso
dizes que ao contrário estaríamos sempre no começo e que dessa forma nunca nos perderíamos na última página
dizes tanta coisa que se perde na verdade
as estações nascem fora de tempo à parte de qualquer tempo
Nascem-me dentro do peito porque as sinto
dessa forma como minhas
tu também nasceste do meu peito ou de um parapeito de onde me inclinei debrucei e caí
E é no fundamentalismo da melancolia que te registo assim alinhavado mal redigido sujo e pouco definido
Talvez o pior poema da minha vida
mas que vida?
Tenho às vezes a sensação de ter vivido tantas vidas que não vivi ao certo nenhuma
porque para se viver alguma é preciso escolher e abdicar de todas as outras
talvez por isso seja cobarde, acima de tudo e em última instância, cobarde
mas não tão cobarde a ponto do fim
esses são os bons cobardes
os outros escrevem poesia

Havia sempre uma cadeira no teu poema
No meu há uma cama
Deito-me nela aqui quando te escrevo
ou crio a ilusão de uma extensão de uma ideia que se deita num poema
e estar aqui

E o poema cansa se de racionalizar
pergunta-se pelo corpo que o faz vibrar
A cama fria vincada de suores frios
Chama pela voz que o há de soletrar
A cama fria deixada pelo corpo que lhe faz vazio...chama, também ela nasce com a sua própria identidade, é só uma cama
Só eu é que não sou..chama..chama-me
Uma e outra vez, entrando e saindo por esse canal húmido..de lágrimas ou fruto de uma masturbação solitária
Ou a grande penetração da vida pela morte
O poema tem a sua própria vida tão maior que a morte
E todos os nós que até aqui enevoaram a sua conclusão é porque são nós atados de paixão
Daqueles nós que agente aprende e depois esquece como se desfaz
E o poema ganha a sua própria vida, os seus pés, as suas pernas, a sua vagina e até..a sua própria ironia
Depois caminha de boca em boca como uma virose que se pega sem roupa
Para nunca mais ser livre
Porque se nos apega e nos apropira e nós dele
E nós? E eu? E a cama...sempre a cama a interpor-se entre nós ou esses nós que nos atam de depois...
Depois o poema nasce e está tudo na mesma foda





quinta-feira, 2 de maio de 2019

Iconoclasta sem asas




A porta das estrelas
O corpo em escamas
A linguagem das trevas
Além para além do anoitecer
caem me pétalas ácidas da boca
O toque do mercúrio para o fim
Reflexo do futuro
Rolos de papiro onde nos suprimimos de tempo
A grande massa de estuque ilusória
em que nos decompomos em memória
Pergaminho de pele humana e suor
As sobrancelhas negras erguidas contra o sol
O segredo do pó do inferno guardado no ventre mais esventrado de morte
Tenho em mim a inquietação fomentada
Aos adoradores do fogo presto o corpo
As duras rugas dos golpes do coração dobram me de dor
O ventre contraído de dor
Homens de todos os cantos do mundo
paridos deste ventre
A bagagem revisitada nos olhos que me mergulham sem ódio
Tâmaras esmaltes estalados os dentes
que me devoram
Uma bacia de azul para banhos de insustentável voo porque não se parte nunca
Missao - cuspir me para o chão
Ser Nómada das tripas da terra
Na ponta dos dedos
sentir a lâmina da cólera
As veias os rios as margens
Fortificações de cisternas e vértebras
As línguas imperiais emaranhadas agora entre nós
Pedaços de pano cutâneo para nos dissolvermos
Furos abertos das falhas do crânio para nos estendermos ao Sol
A areia do lado finito da ampulheta
E o movimento perpétuo desse sonho

Viajantes do barro composto de terra e lágrimas
A existencia revista em absoluta incoerência 
Nómada das tripas da terra
Na ponta dos dedos
Sentir a lâmina da cólera

E um clarão imperial que inunda
as forças que nos sugam à terra
Sentir os pés como pás
Para poder levantar voo o arranque
a impulsão de libertar de dentro esse espaço a mais
E rasgar a pedais o fardo do corpo







quarta-feira, 17 de abril de 2019

19-04-2019



o dia nasce de luz artificial
atravessa os campos de lágrimas
esboçam-se agouros
coroas de louro que os pés levam para mergulhar
à ressurreição de um corpo que sangra por dentro
na simbiose do enxofre e algo doce
o espírito sofre de modificação na morte
por ser hábil de violações ejacula o vómito
revirado do avesso o espírito
na última respiração promete-se o começo

caminho de costas
descascando a alma epidérmica
que atiro à beira da estrada
piramidal acientífica em queda
hermeticamente o meu corpo mortal em queda
embrulhado em celofane
plástico e espasmódico
orgásmico de fome de terra natural
caminho ao ritmo melódico dos passos
que invejam o voo dos pássaros
no afastamento prestando respeito aos mortos
os maqueiros da morgue são os ramos
uivam na escuridão de dentro da paisagem
da amálgama do acaso para a confusa arbítria presença
sentida ou pressinta no golpe de remo que empurra a nuvem
a mulher a vagina o peito dar de mamar ao demo
e à intersecção mágica do pensamento

além, aqui além
o animal pendurado ainda quente
passos de sangue coalhado ascendem ao altar sem santo
as velas ardidas até ao fim
no culto dos campos amanhados
os homens carrascos de si mesmos
quando fizeram a autópsia encontraram restos
de espigões que nunca os trouxeram à tona
um bordado de ponto cruz sem começo atado
caminheiros do odor das hormonas de cães ciosos
os lábios flamejantes do sexo sem mistério
e o olhar em frente para o silêncio sem gente

virar costas
ecos que incomodam as almas do purgatório
a precipitação está agora mais suave
ergo o rosto para os campos sem horizonte
debaixo profundo sinto os pés cavarem na terra
uma força materialista acordando outro mundo
na sua doentia manha os pés sujos
víboras e galgos salteadores para meditar
levo a boca à bica dos sonhos seca do calor do inferno
atiro-lhe saliva e dentes e língua
a minha garganta é o sino da capela sem corda
porque não se visitam os abismos da terra
nem se corrigem os declives da alma
dentro da capela
a humidade criando ferrugem nos pregos
o corpo ajoelha-se e pede perdão a si mesmo
que o sonho a si nada tenha servido
depois de acordado

porque não se visitam os abismos da queda
depois de caída

virar costas e caminhar
há gente que nunca se cansa
de engolir a vida
e renascer a cada passo da morte


terça-feira, 9 de abril de 2019

Passo de raspão




A gaivota plana aerodinamica mente apanhando o reverso do céu
que como um rebuçado brilha no seu interior de açúcar,
assim sao os pedaços de real
que apanhamos como farrapos ou gotas
que nos caem do céu ou o ruído
da lambreta subindo lareira acima..
e ainda o ferro velho do elétrico
da agora minha terra, ou um pequeno pedaço de vermelho luminoso exposto

no lugar proibido depois os carros rolam como carrinhos de linhas, e as vitrines expõem o âmago da pele ou o espeto do porco ou do corpo.
E as portadas abrem se duras. 
E os candeeiros iluminam o caracol
daquele prédio onde se subiu de capa amarela..e pedaços de azul laca..outros tempos. .ou farsa
Os quadrados vítreos onde em tempos fomos uneos
Esse cacifo metafísico

As botas do sapateiro
O velho sentado entre os contentores
na rua
Fazer das cinzas cimento
Pétreas
Incontido
A caixa azul de cartão e asa de plástico,
um presente, um tesouro
Uma perna mais curta, calças de ganga rasgadas
Às vezes um saco de carcaças outras de cascas de batata
Ser convertido em novo, reciclado, da sua matéria putrefacta nascer um objecto,
uma pessoa, uma paisagem não repulsiva
gradiente da réstia que fica pelos telhados

Mesmo a última aparição que se estoira pelos ramos vítreos da vida
Ou um avião que rasga o céu
E sentado num banco de fim de tarde
O único pássaro voa no céu

A antena fria do triângulo de telhas

Mesmo a última aparição que estoira pelos ramos víteros da vida
Ou um avião que rasga o céu
E sentado num banco de fim de tarde
O único pássaro voa no céu

As portas do sofrimento..o grande vulcão da poesia

A soma dos dias
A sinfonia dos porcos
O Hórus  minimalista da pequena folha que se esbeira da nossa mão
Assim foi uma eternidade esbraiada num segundo
OU uma ponta afunilada ao fim do mundo
e talvez um acorde



terça-feira, 26 de março de 2019

Sol posto



Vaporosos os rostos do bosque
as árvores tumultuosas perpetuadas no meu imaginário
acompanha-me uma borboleta templária
ou talvez o prenúncio do dia catastrófico
cresce-me a primavera florida entre os passos
o raiar dos caracteres violento do dia
e do invólucro respiro para traçar o espírito dos buracos do tempo bruxuleando-me de pequenos nadas
é o pulso estático deste arfar de vontade suprimida
e as névoas ocultas da vida
Ando, de modos calados e vento
pela tutela do demónio
tenho as sombras vértebras fios de marioneta
e tudo o que quero é o flutuar terno
da pedra de granito minguando-me de chagas já cativas sem dor
a criação do astro
a lua vai explodir
tenho na mão uma bússola inanimada
é por isso que caminho sem estrada
depois contemplo as muralhas pálidas do céu
esse bálsamo para a pupila
mata-me mas por favor já sem vida
quero um santuário de retratos pendurados nos ramos
e um sol posto moribundo no trono
tudo eu suspenso
a vista desmanchada desmantelada
a vista num atropelo que me rasgou o peito
e deixou os olhos de outra metade pregados no horizonte
mas mata-me com carinho
como os elefantes choram os seus pais
para ser estátua estampa de mistério
num qualquer recanto intocável ou etéreo
Inviolável alicerce de fúria sem fúria
para um qualquer pássaro me pousar na dobra do céu
e nas coisas inefáveis da morte





quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Os pregos da cruz



Seguimos os pregos.
Contemplam-se as planícies do tecto
o tecto que acompanha a medula
de máscaras insubmissas
a noite roxa dos limites do empedrado
o charco das aves da madrugada
imitando-se o feliz
Estradas de espelhos para morrer
nesse denso breve prematuro
as ruínas erguem-se à minha volta
levantam-se como sóis de madrugada
caminho por ripas de sonho débil
a falta de luz na pele vítrea
Um xaile ao horizonte cobrindo-o
casas desamparadas em devaneio de sangue
o teu rosto do amanhã para depois
as saias rodadas ao vento redes do mar
apanha-lhes o sexo a volvição do mundo
os seios trovões rígidos da secura do sal
choraram no teu peito homens adultos
ossos de cristal para o mar a vulso
e acima de tudo a liberdade de partir
Pelas alamedas do crânio a dentro
minas profundas escavadas larvadas
para as alturas o coágulo do mundo
cães ferozes do estilhaço da carne
e pontes para a loucura
Sem ponteiros de relógios de parede
o enforcamento à beira do horror
tenho em mim a lama tecida triste
e o ruído da ferrugem e dos corvos
Deixei lívidos os lençóis que nos rasgaram
as linhas do rosto
Às vezes contesto-lhes o real
ou o arrombo do espírito por devastação
ou o pior do ranger dos dentes
E a manhã nasce como um aspirador
com a possibilidade transnormal
os dedos trémulos a um palmo de sonho
Afeiçoo-me
Há gente que morre por menos.
as serpentes da insónia guardam em espiral
os mistérios de nos extrairmos de dentro
vejo cadáveres flutuando no plasma interior
e o fim ilusório dos crepúsculos
Eu sou a membrana triste e trémula
com que do cimo do parapeito contemplamos a terra
a bílis do dia que ao dia torna
regurgitar de náusea as têmporas melancólicas
para aceitar as ruínas da lonjura
A noite monstra.
quando estás fora do teu corpo
e houve tempo íntimo para flutuar por céus de zinco
Houve a tarefa de plantar a lucidez
ou a pior das pestes no coração
Eu preciso de repousar na cabeceira do demónio
esta necessidade desossificada dos grandes restos
e a liberdade adormece agora
para o nada do tecer do crânio
e os instrumentos da rara felicidade exercerem a sua labora
A aproximação dos orvalhos chorados
cobras percorrendo-me o corpo
em parafusos de ânsia
o corpo encardido de excessos de luz
porque nos vence a teima do tempo
como aqueles girassóis da infância
uma ventosa para alma para o derradeiro fim
A noite de uivos incessantes
aqueles espaços ósseos
os membros espartados entre os dois
e losangos extremos de extrema unção
O corpo desaba no chão frio da cela
em duelos de maus tratos e toxicidades mundanas
O tempo vomita-se de sangue
a penumbra é um canto íntimo onde me recolho na alma
para me sacudir dos compassos do ventre
e bater-me no desastre da desintegração do meu último átomo
Os próprios ácidos do estômago para a desintegração da dor
e a sedimentação do ser
A mão trémula nos ferros. Agora pregos




segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Todos os dias morrem pessoas


A minha avó chama-me nos sonhos. Outra vez.
Puxa-me pela mão para a casa do forno.
O forno está frio, a casa tem teias de abandono
e talvez ratos pelos buracos de companhia.
Era uma casa grande. Foi-se tornando só.
Os armários, as louças, as chávenas pintadas de flores brancas.
Quando ela penteava os cabelos longos de cinza.
Eu assistia como as crianças assistem ao que ainda não compreendem.
Era a morte que ela penteava. Eu assistia ao futuro.
Talvez nenhuma outra casa me tenha marcado tanto como essa.
Como um ferro marca as costas.
Depois deitava-me naquele quarto de metro quadrado.
E olhava pelo janelídio que dava para o pomar.
Pomar? Seriam maçãs? Ou pêras ou laranjas ou loureiros.
Na eira secavam as pevides. O pão não crescia no forno frio.
Minha avó era religiosa, eu não.
No dia em que morreu senti tristeza pelo meu pai, no ciclo
seria o próximo. Minha irmã disse-me o mesmo.
Eu senti-lhe as lágrimas correrem me minhas.
Abraçamo-nos como se abraça o sangue para a vida inteira.
Foi a primeira a morrer da geração que conheci em vida.
A primeira do nosso sangue.
Quando penso nela sinto-me descer à terra.
É a descida do corpo junto à campa.
Não sei como viveu tantos anos só.
Junto à televisão e à águia empalhada.
Aquela águia causa-me arrepios.
Diz que o meu pai precisou de banhos de ervas. O cobrão.
Era assim naqueles tempos. Outrora, bruxas.
Quando visitei aquela casa no dia da sua morte as molduras apodreciam
de pó na mesa redonda do centro da sala.
Todos os anos ela coleccionava um novo retrato nosso.
Doeu-me o passado ali esquecido.
A escuridão dos quartos no dia do funeral.
Era uma mulher bruta, gorda e à sua maneira terna para as netas.
Visitavamos a casa uma vez por ano. Depois no lar nem isso.
Uma vez visitei o lar. Ofereceu-me uma camisola e um anel de prata.
Era a sua maneira de pedir atenção, visitas para a solidão.
Não a visitei mais.
E depois há o jazigo.
Que é afinal uma família partida em dois?



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

esse trémulo pulso


a luz que pisca na intermitência
esparsa depois numa imanência boreal
a escada de corda por onde trepa a alma
e a primeira carruagem do embate:
agora rasando o horizonte próximo do frio
cabeças de nós dando um salto ao infinito
e o sol poente ardendo-me nas mãos
lume para cozinhar o espírito de medo
senta-te a meu lado e contempla o vácuo
não há estradas nem pontes nesta ilha
ou animais grandes e pequenos
a escuridão desafiando bancos de areia
que o mar engole e regurgita
as cavidades do tempo ecoando
cantilenas de choro e birra
as coisas torcidas agora de longe
num desleixo doentio
para a claridade intermitente de um sol ardente
àquela hora da noite
brotam-lhe dos olhos cristais
o rosto infantil do lamento
e uma bacia inteira onde aportam ruídos
que os homens quiseram esquecidos
são os pescoços de palmeiras e as cabeleiras
cometas rastos de estrelas
e a areia pálida movediça destapando
as vigas de uma estrutura insustentável
despir da terra as suas vestes
um prédio em abandono de construção
placas acimentadas deixando a nu os seus dedos
o mundo assente numa coluna vertebral
desorbitado no silêncio do espaço
depois as sílabas cruas
num esforço de arrimar as ruínas
e empurrar ao esquecimento as memórias
trepando por essa escada de corda
nesse lugar perdido de mim
um terraço de gritos e euforia
dos patamares da visão nocturna
ela contempla a milhas de distância
os campos livres as fogueiras autónomas
porque na simplicidade dos desertos
numa tangente de gente o vento
um vulto que cai nos seus braços
um peito de pára quedas
e no olhar o próprio rasgão das estrelas

a luz que pisca nas intermitências
traz e leva a pulsação da terra




quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

o cristo do avesso



infringe a imagem da fúria
e tudo o que fica no arrefecimento
quando apertas a mão na mortalha
e o esgar no rosto para a contracção do ódio
a consciência clara e fria da água
que escorre por esses lençóis
o soalho viscoso do choro dos peixes
que te assoma nos olhos
uma casa apeada na escuridão
onde só os passos e um cata vento metálico
do ventilador por onde respiras
um lugar simples para ficar
onde só se consegue dormir
as pedras no cumprimento do solo
que tu não podes mais atravessar
o tempo solidificado em âmbar
num quarto cinzento e limpo
a lanterna que atravessada pela noite
te procura nos olhos o sinal vital
o acordar dos espíritos deixados no limbo
silenciados na cova funda do peito
e um saudade triste e amarga
da força que tinham as palavras por dentro
agora registo retido num álbum
e espaços vazios dos que não se recordam
sobre a mesa uma colher de pau
um pote de vísceras em sal
a pele pendurada de avental
a porta escancarada levantando cabelos de teia
e os pés sempre de arrasto seguindo te os passos
os passos que imaginas percorrer pelos corredores
que acolhem outros gemidos outros terrores
viras o rosto na almofada
na convicção de um lume apagado
e um conforto que não chega
apertas o rosário na ponta dos dedos sangrados
para que as feras passem ao largo
e o tremor da terra em desabamento
não te chegue com a agonia da dor
as pernas amarradas os braços presos
as janelas do vento e do sustento do mal
emoldurado num esqueleto de ave fedorento
o cenário da ruína de um velho sem vista
que encontramos do lado de fora
uma bengala sem imaginário
e uma capela sem relicários
a fina casca de ovo porcelana para o ritual
de se chegar à medula da consciência gravítica
e do desfiladeiro da vida
aqui se apita de ruídos mecânicos
a locomotiva bafienta do arrasto
e baforadas de oxigénio em artifício
inundam os pulmões de preces para o fim
fechas os olhos para o fogo do movimento
quando dançavas nos braços dele
o vestido branco de pétalas de pêssego
aqui se apitam as máquinas da morte
e os corpos dependentes de soros
para o prolongamento do desespero
nesse limbo que te retém como um castigo
ou uma tinta que se esbate brutalmente contra a parede
do teu ventre





sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

murmúrio do belo


a síncope cardíaca num manto de espuma
por onde se é absorvido como uma força
ou lugar nunca atendido
o culto da imagem própria entorpecida
joelhos e mãos estendidas a altares vazios
e o acto violento do coração apeado
soletrar o caminho onírico lúcido
um mundo sempre temporal e nervoso
nativo dos confins dos ossos
havia prazer em trocar me as voltas
no desafio de superar a revolta do mar
a água sempre a água crescendo na boca
a tua presença holográfica de passagem
deixando de rasto uma inquietação antiga
liberal esta paz que depois de acordar fica
uma luta sem opositor ou um quadro sem pintor
a massa que corre ao exílio dos espíritos
lugares de pessoas que foram exiladas do corpo
pairam em solidão pelos cantos dos rochedos
a realidade pulsátil patente nas palavras
que ficam dentro da gente
numa precipitação de chuva que não molha
e momentos de euforia que não sentem
uma cartilha fisiológica de animais desatentos
os peixes deitam-se na areia... adormecem
as escamas secam as guelras fecham-se
a espinha agora consumida pelo sol
para deixar uma presença subtil na areia
que na primeira vaga de onda se desvanece
assim acontece com as carcaças dos barcos
e com a vida dos homens
só as conchas, escudos, búzios, pérolas
uma convulsão reversível dos ciclos
seres que se assumem objectos
do tempo mais longo além da negrura
comprimido numa constelação rítmica
a curiosidade sempre viva a consciência nuda
uma crosta de libertação uma viagem sem termo
prenúncios de vagas estrelares
amor e inspiração a obra lenitiva da luz
e outros dias virão




terça-feira, 15 de janeiro de 2019

a noite mais longa


o mar de arrasto
e o palpitar do anoitecer ancorado
viajo descapotável na asfixia
a nu a fantasia de um nevoeiro salino
abrindo paisagem de arbitrário
na vassoura antigravítica
na bigorna do ofício aéreo
para um mapa mundo inquieto
desenho de rasgo na plataforma sem estações
a planura dos assobios
tudo em mim ecos de corpo celular melancólico
recolha de imagens que pesadamente me servem
ou o peso de um pássaro sem asas
trago os olhos cansados na maioria dos tempos
e o arranhar da letra rude ou da raiva balística
tudo animado de animal ferido
a mão peneirante infernal
o abismo solene do teu olhar
são pedaços de alma em vénia
para uma alcateia de estrelas mansas
vejo a sombra dos telhados em escama
a mácula funda abissal dos homens
ou a fecunda paz das searas
como o imóvel vagar das rugas no rosto
aos espelhos dos lagos das fontes lá debaixo
diz que fui um ângulo inesperado
exasperado de aflições mundanas
o calvário foi o ventre das mães in vitro
agora sombras aninhadas nas paredes
o mundo florido de raiz débil
o mundo febril de lábios gretados
o espaço vítreo do pensamento derrotado
as pálpebras abertas ao espaço

fica a mais fina das flores colhida lá no alto
secando entre as páginas do caderno

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Trago na mão um totem


acordar do torpor do ecrã 

nos bancos esculpidos de pedra
a silhueta na transferência de nadas
e o abate dos silêncios
austeros e distantes nos cremos
um purgatório de pele e osso e saliva
vejo o caminho varrido pelos passos
e o vazio dos infernos de dantes
um suspiro espalhando as cinzas
e é possível desvanecer. desse suspiro
as válvulas assinaláveis da vida
os entretantos parasitas ávidos 
do espírito estilhaçado sem autópsia 
escutar se o lugar do abandono
o berço desse órgão por nascer
um quebra ondas sem mar
e a asfixia de um pedaço dilatado
que não se conhece do outro leito
a alma perde se de corpo em corpo
agrilhoada de estranheza e febre

e é possível escutar se o desapego 
tão subtil como o rasgar do fio da seda
e o desamparar da terra
de não haver retorno do teu peito

O desespero 

Quero acreditar que trago na mão um totem, talvez uma caixa de fósforos 
Vejo a espiral abismica da porta aberta 
a caixa que a morte dela não encerra
vejo nos a todas escoando sem mais presença 
E sonho lúcida nesse peito
porque abraçar te sem corpo 
porque abraçar te assim depois de morto