quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Tear e Atear




a bordo do navio que naufraga
das suas mãos nada se agarra, nada
as braçadas em espirais imensidão
as mãos essas mesmas carrilhão

num vaivém libertador de todo o mal
...deixa-la ir saciada de água e sal

e o coração do homem
agora um novelo sem fio
na surdina dos dias sem restauro
no labirinto
ser ele mesmo minotauro
que de si teceu uma vida insana
de um ódio faminto
esse é o trabalho da aranha
distendendo os músculos na teia
sem dar tréguas ao mastigar do pensar
que um mortal de carne e osso
nunca ele possa atear

e uma tripla aliança se ergue
a fome, a elevação e o excesso
e como que retornada dos calabouços
uma alma mais cristalina
que leis misteriosas regem o universo?

e por todo o sempre que se perca
os labirintos sem teia serão sempre
a sua fiel e amarga Tarefa






Seria pombo ou cotovia? E isso que importa...



do acordar à oração prisioneira
do bater de asas alguém que parte
lá longe, uma voz que chama
rareando o ar que agora se respira
porque é já quente o dia
de uma verdade nunca crescida

Tenho tanto tempo!
ecoando numa casa simples
onde os vasos se encostam no muro
e as patas acordam os primeiros raios
e os ovos colhidos na algibeira
para nunca chegarem à frigideira

atravessando no devaneio
uma sirene sem estrondo
porque corria atrás de uma cotovia
o menino ficou
debaixo de um comboio
apanhado no fim da linha

e, ainda à tardinha
tudo em desmaios
de luto em marcha o silêncio
violetas, terços, missais
a aldeia reunida nas cancelas

e de noite se abrem as goelas
nas fogueiras e nas tascas
mas que deu no garoto?
estaria surdo, cego ou tonto?
acaso um comboio é do tamanho
de um pombo?
agente sente-os crescer na barriga
e depois de nascer dá nisto
tragédia, miséria...partida
tudo antes da hora, mas que sabemos?
ele é que manda
mas o rapaz morreu tão novo!
ele é que escolhe, quem cá fica
bem sabe, que não é melhor!






terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

um céu imenso



e mesmo os dias que passam sem mim
são apenas dedos dormentes
que pairam na beira da folha nervosa
que se inventa
que se vão levar na boleia as Antilhas
Gritar-se no alto do Olimpo, o bronze
de se sentir busto gravado nas estrelas
chamo ainda o retorno
daqueles que de mim nunca partiram
no cerco de tudo se desvanece
como a chuva que lava a poeira
permanecer dentro de um fusco corpo
ou de uma malha que se escapa
na imperfeição de um poema farpado
o que só existe
tudo nos soletra em riste mas triste
a necessidade da voz de Deus
soprando auras de cinza
para nos lembrar do que é a vida


párias ventos
um fio de esvoaçamento
tudo a arder
-é o nosso dever!
Aquelas chagas de assunção
da labuta da noite
anciões guardiões
do braço da morte

essas gaiolas que nos ensinaram
as asas são apenas vestígios
e toda uma panóplia de utensílios
que nos adoecem os cílios, vão!
os flagelos estão dentro do peito
porque o mundo até pode ser...

um lugar agora imenso
que se abre para lá dos trancos
a charneca das cantadas movediças
em que ousamos albas as garras do fogo
mas...que mais senão o crematório
tudo nos leva daqui, em fúria
numa caldeira de lutas entregues
poemas sem tréguas
é esse o calvário de um capataz
que deixa abandonado o seu tempo
para andar para trás

e ao olhar para dentro
com toda a ternura que encontro
mesmo os dias que passam sem mim
não deixam de ser sempre
um retorno










quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Sandeu



as pedras que arruam os nossos pés arrumam
o nosso lugar. ainda que a vala uive ensandecida
que tudo nos seja embalsamado no desleixo do
deixa lá ver se passa despercebido. a orquestra
conduzida pelo único dono de circo do planeta.
o último.
a trote de uma mulher gorda, metralhadora
as barras do estore salivando de golpes de sol
o crucifixo às aranhas nas paredes do cubículo
e silhuetas de formigas projectando sombras
-Meu Deus e as contas?
o galo já morto pingando no alguidar a linfa
dos nossos corpos inertes, tarefa finda tendes.
no tapete a terra acusa o trabalho noutra musa
mechas de intervalo entre horas pagas e tusas
o despertador avariado preso na liga da perna
bisnagas para refrescar a cara.
e do alto da capoeira a galinha toma poisice
comadres, foi como disse, a sociedade agora
nos pertence! Tirânicas, sedentas de crendice.
As galinhas se tornaram beatas.


Diz à mãe



tudo isso para chegares ao topo da torre
e do topo da torre te atirares em voo
que sem asas ou engenharia mecânica
o teu voo é apenas uma chegada rápida
aos pés da terra árida donde foste parido
é tudo tão cíclico...é tudo tão pérfido
ao colo do barco encalhado, vai e vem
o olhar do homem de mar traiçoeiro
como pronunciar de sedução ruína
essa trepadeira de ideias sem beira
gaivotas estampidas em pedra
das mãos-rochas escorre a areia murcha
uma algibeira de concha aleatória aberta
auréola de azinhagas por onde silêncios
seguem as pegadas das aves que hibernam
e das amígdalas se aventam palavras
em dialectos de bruxas, sussurros aflitos
naquele triângulo de mapa desaparecido.
-Diz à mãe que eu parti assim que nasci.
Não bibelô ou napron, ou chorão refilão
mas no ralo do tanque, toda essa branquidão.
fui como lata de biscoitos assaltada
riscos de lápis em cadernos molhados
é que eu era a única vela da casa assombrada
e dela as letras não se me aprendiam nada.
-Diz à mãe que eu sinto-lhe falta de mim.
da significância de uma caneca
na especulância de me entornar mundo fora
no instante em que abri a porta
no pedal da máquina de costura
o pé ser serradura, o pano ser pestana e pálpebra
mas a maçaneta ardia-me nas palmas
de lugar continuado o poço ser gotas
de boina francesa e meias brancas de renda
o gesso da canela autografado por vedetas
tenho tanta febre que o colchão se multiplica
e lá em baixo, sempre, a tal ervilha




Poemar-Hit




é um verbo vital anti-riscos anti-reflexos
uma galharda onde o pai o filho e a obra
se campeiam, de alfarda a poesia enfarta
é todo um folclore, novo cavalo de Tróia
balbuciar ditos arrancados à força, vetos
de um edifício sobre a água, perpetração
quintal de ervas daninhas de vil extinção
execução de quem o é, a execução de pé
acrobatas de gula anónima visco elástica
proto-sensório-à-distância vareta volante
sommier elevatório, tabuleiro derrubado
formato acústico-silencioso, água morna
de imberbes, arpoar as peles da cara seca
descolar de dentro é um desfile trapalhão
boneco de pelúcia, croutons encharcados
na sopa hectares de pomposos Gremlins,
cestos de begónias em flor na Primavera
e o poeta não é senão esteva, hera, fúcsia.

onde se projecta como lobo sem matilha
porque o caminho é um atilho sem saída
flipper de zipper entalado, ou enlatado
no labirinto do fauno sem fauno, fadado
de cavalo de pau, bicicletas de rodinhas
no chão, triciclos de consolas de papel
a última das gerações asa delta de Abel.
cão faminto de tesoura a verso, dedilha
o fio de lismo lírico espinho sem cadilha
uma mosca se amena na cratera craneana
cor rubi, baunilha e coco, todos bebemos
do mesmo copo, raiz hidrófila passional
nas paredes vertebrais do soalho mundo
a alma desatinar no estertor do túnel-íris
e aos engulhos atalhos becos, tudo baratas
tontas de aloé vera pantufas tudo meninos
estufa, transgénicos, de versos higiénicos.


mas ainda assim, poetas do mesmo jardim
mistos bichos e arranjos, balões de soro
de folhagem resistente, somos a pele de Ísis
cacimbando ao levantamento do ouro
arrebiques, berliques e berloques, vozes
tersa, lacerante, angustiante, comediante
a cadência interna do fanatismo palavroso
essa luta obscura ou excêntrica, poema do osso
cântigos, cânones dos quatro cantos do homem
embalando no berço o filho caçula, apropriarão
de tudo o que é vulva a terra sentir, enxotarão
do seu capote confortável, a água da máquina
que nos encarde, que nos confunde com a lama
que por aí anda, e nunca é tarde nem baldada
antes enaltecida por uma alma nunca vencida
de vertigens aos tombos os cascos da evolução
nunca os poetas omitirão no seu papel varão


Hit the road jackass, fit the clouds small mess.




segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O eu visível (possível)



vamos falar na primeira pessoa, sem pudor
porque se pergunta onde anda o poeta
nesses poemas de dor ou de revolta
ou de idiota presunção ou de vaga flutuação
todos eles serei eu, sabe me mal dizer eu
mas um tu seria um espelho que não satisfeito
nesse imperioso colossal poema de projecção
sentimental simbolica encriptada voz na voz.
E continuando sem falar de nada, enleada
até conjugando feminina me agonia,
mas sim, vamos falar de mim, a poetiza
ou a mulher que escreve poesia ou a pessoa
que é mulher e tudo isso, como não poderia
deixar de ser, no compromisso, de o ser
ainda que apenas neste confessional escrito.
E repare-se que nem mais poema é.
Pois não podia mais ser. Está entretido na fuga,
no esconde esconde da sombra que o acusa.
Será frágil? Será sensível? Será trágica ou triste?
Será que chora e sente? Ou será que tudo isso
não tem qualquer interesse a quem o escreve?
Não, não tem mesmo. Tudo isso importa tanto
como saber a hora, o tamanho, o peso, o nome.
Que importa o grupo sanguíneo quando da mulher
nasce um poeta? Que importa o sangue que lhe corre
na veia se é na linha que ele respira e anseia
e é na noite lírica que vagueia e no dia cavernoso
que odeia, que conspira, que respira e acredita
que só há uma vida para ser vivida
quando desta forma se é concebido.
Não te importe a ti também que a mim,
já há muito que não me convém!

morte ao romance



a serenata de um par de cravos pálidos
a janela entreaberta escoando conversa
tudo lá fora é um outro planeta inverso
e os dedos se tombam na tua perna lisa
isenta de estrias e crateras celulíticas
as faces aventadas uma à outra, beijos
e passos no chão frio do nosso quarto
as unhas rasgam feridas nessas vigas
que tectos temos como abrigos vagos
é o verdete que nos adoece pulmonar
de um império de vermes que debaixo
dos panos brancos insiste em respirar
e de repente a cama se gira heliolítica
os fios da cabeleira ardem madrugos
os músculos entrançados, sexos sujos
somos espíritos exorcistas e egoístas
e cai! atira-se um penhasco entre nós
esse impossível de teoria espástica
onde os nós se enforcam na ausência
onde só cabe uma frase e tão quase
que da boca se escapa, mas não frase.
tudo notas presas de uma morte, lenta
tudo notas soltas de uma morte, voga.
E os cravos velando lá fora
uma vida de dentro colhida.







Vai e vem-Te


-Afinal este planeta está apertado.
o ser inanimado é estrangulado
por teoremas de lascas destinado
-vamos às fatias, é mais barato!
nos microfones o voo foi cancelado
e o bilhete sempre foi um acto falhado
Arre tanto bico em vão!
Multiplicai-vos por quinhão de penas
de pavão!
o mirão ataca a articulação
não há como sair do chão
todo o material é apreendido
pelo invólucro do indivíduo
assim o respira, assim o vista
um palito se melindra nos dentes
são os restos da fatura do ocidente
o princípio activo é injectável
disponível mas não comum
a ruptura no pormenor do factum
é precisamente a omissão da origem
até o plástico reciclado é importado!
-o que é que está na grelha? fuligem!
Que a alma há muito que deu à soleta.
porque agora são as escolas de samba
que nos enchem as ruas de purpurinas
e é isso! a extrema cancioneta
do apocalipse chegando de tanga
em lâmpadas led e meninas de mamas flat.
Ah! God Save de last grave for de shame!
Shame of us, same of us, everyday Amen!
mas o sacos continuam a ser polemica
e a consciência é o que se apela na novela
reutilizar, reutilizar!
mas ainda assim, importar!
É limpinho e certinho que nos levam
de carrinho!
Todos passando enrolados e atados
pelo bip bip do registo no supermercado
mas power to you, power e oportunidade!
Tudo pode ser seu, e  quem sabe venceu,
uma viagem a Marte! Lets go to Marte!
O sonho da colonização a passar em rodapé!
como missão, Big Brother na TV
This is your chance!
Mas para já,
não há como voltar!










quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Os meus mortos



e fugi do cemitério
fugi a sete pés correndo
deixando para trás o silêncio
o cinzento do mármore frio
as estátuas de braços fechados
as flores murchas dos vasos
os rostos dos retratos mordidos
as vaidades e as mentiras
dos jazigos até das crianças.
fugi. fugi porque os meus mortos
ainda não conheci.
donde, visitando estranhos
me ocorreu o sentido
dos meus abraçar ainda vivos.
mas na verdade, correndo a eles
nao os encontro em parte
não sei donde ficaram
não sei se me procuram
dos que amo, se os amo não os vejo
e não é porque a luz esteja em falta
ou porque lhes seja distraído
As ausências dos vivos
são como sepulturas abertas
Abertas e feias.
E um eco longínquo me chama,
é a sombra do tampo de madeira
-Quem me fecha?
-Não te recordas?
(ou a serena calma que me resigna)



Consolo



Diz ainda que a dor aproxima
na doçura da compaixão
tomando-a por melancolia,
e a vida da união humana
é a luta contra essa dor,
de acreditar num amanhã melhor.
Somos os filhos da Eva,
vivos porque na dor
no repouso porque no trabalho
na calma porque na ira
na bondade porque sofrida
no amor porque na guerra,
despertos porque sentidos.
Que se fodam os filhos da Eva!
Que mistério maior sobre a terra?
Nos opostos de vida e morte,
nos contrastes de bem e mal.
Há em tudo isto, um perverso
fatal abismo.
Haverá homem sem dor?
e dor sem homem?
Nunca tal conhecido.





Elas



não é já madrugada? as persianas
acusam a escuridão da manhã
o dia de ontem ainda é o de hoje
as gatas que roncam nas horas mortas
as roupas que não secam na corda
porque afinal a poesia é mulher
diz que é...para se levantar descalça
e no pó do café acordar a valsa
lenta dos girassóis de costas voltadas
dos jornais das letras contadas
da loiça ainda por lavar na pia
da verdade que espia e se conforma
do roupão o borboto de fora
do cabelo que o branco colora
da pele que a mancha incomoda.
Serão horas? De se vestir de senhora
de saltos crescer por fora
de apertos as formas da cintura
os seios levantados à altura
e os lábios rubros de loucura
Estarão certas?
Não fossem também elas, mulher,
são horas dentro de casa
e outras fora dela.






Confissão ao Vácuo



a morte chega-nos de mansinho não é?
numa palavra, num gesto, num texto
ela chega discreta
sem darmos por ela, sem crermos...
no momento em que nos atiramos
esse momento é muito anterior,
depois, tudo o que vem é somente dor
daquela que lentamente mata muito
mais do que a própria morte, consome.
Dor daquela que tem o rosto da culpa.
Dor daquela que luta para ser absoluta.
Dor daquela que não tem cura.
Não é como cair da bicicleta
ou como levar uma sova
ou como sentir vergonha.
Dessa dor que passa, a criança ultrapassa.
Passo a passo, o recuo é gravidade.
Que te suga e envolve.
Que te embrulha e devolve, em pedaços.
E a vida não é senão fragmentos
ora de luta ora de desistência
que se somam e multiplicam
de ilusões de seres mais forte.
Mas não o és pois não? No ponto
exacto em que te atiraste
muitos anos passarão para que deixe
de ser afinal um ponto final.
E de interrogação muitos nãos virão.
De talvez, de quem sabe, de ainda posso.
Mas que podes? Se o teu corpo já foi
atirado e o que ficou foi um estilhaço
que nada pode porque em nada inteiro.
É isso não é?
É por isso que não se compreende
que aos outros sejas capaz
do mesmo acto que cometeste.
Mas somos todos fracos não é?
Todos feitos do mesmo barro
e da mesma vontade de encontrar
a felicidade.
A morte tem perdão. Diz que tem.
Diz que tem só porque sim.
Diz que tem só para mim.


Pegadas



o elefante chegou tarde demais
a carga pesada nos pés se arrastava
a filosofia antiGanesha rotineira
das rudes gentes de pedra rasteira
-Uma falta de respeito o atraso!
na ponta da tromba uma sineta
para dar as boas graças à colheita
-Está o leite derramado e o ano
agourado. A fatalidade popular!
O tribunal da mente é implacável
uma fábrica de espelhos notável
mas falível, mas mais fácil!
a Roma dos Césares em miopias
de perfeitos deuses que dormem              
na ponta do mundo.
-Como é gigante o fardo de pele!
Foi um flautista que ousou elogio.
E o elefante parou e dobrou-se,
uma vénia de transporte convite.
-Tens a alma de uma criança.
Um pé humano agora à mesma
escala.







quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Marsupial Drama




O pano da barriga da preta vai liso
avinagrado de colheradas de progresso
os chifres lânguidos do rancor das ancas
cruzeiros de trocos de santa combalida.
Criatura agourada pelas tranças apertadas
Semicerra de olhos de perpétua missa
patriótica defensiva pela salvação exército
de fotonovelas de escriba de mão beliscão.
Tem pés de virgem, esmorecidos de napa
a voz esganiçada num dialecto telepático
que apenas uma lágrima deixa no prato.
Iscas à bulhão pato, sardinhas à Gomes Sá
Fiadinho! O galo de Barcelos depenado está.
De âmbar incenso no leito do padre-nosso
setes fodas bem contadas no terço do regaço.
Era caixeiro-viajante antes de o ser mourisco
e na mala um país antes de o ser no registo.
Num ápice, todos saímos de engodas
mais magros que engordas, de parvos a bobos
mais lisos que panos de pretas sem ovo.
É o avinagrado da punheta progressista
que as iscas já não se temperam de véspera.





terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Nos pedais do tempo




A bicicleta pedalava no instinto 
de uma recordação de menino
a síncope de uma emoção-ira
manicómios de melancolia
hipo reacção nervosa de limbo.
a simples presença de um balde
onde se banhava por baixo 
das escadas, um pau e uma bola
a baliza um buraco na camisa
das glândulas, coração, vísceras
a consciência do risível objecto
-sinto-me ridículo neste assento.
e a ideia venceu, atenta primária
mãos ao volante aviador errante
dos travões ainda o processo rival
linhas oblíquas do simbólico 
o sinal do espelho metabólico.
Travar? Travar para quê?
a justeza de um minúcio medo
de ser paciente de um corpo frágil
Hoje, o joelho é mapa de estrada
e a cabeça uma estrada sem mapa.
Mas a bicicleta ainda pedala
vital de ideia própria, imaginária.
Quisera ele pedalar com ela
se as suas pernas ainda fossem
as do menino histérico-limbo
feliz nessa manhã de aniversário.



Baloiços



no balanço dos pés o corpo
onde se senta, não almofada ou cama
um tubo metálico frio, equilibrista
a criança considerada patológica
comporta sub-divisões de vista
-desta maneira a alma se endivida
doente, deficiente, inteligível
à anatomia comparada uma árvore
dentro dela se estrangula, se luta
a casca embora rija é transparente
mas o mundo ainda, inacessível.
o seu primeiro amigo num ramo
os passarinhos cantando fininho
submetendo ao factor do instinto
o trabalhar em volta de um ninho
uma obra prima construída num dia
e meio, mas a epidemia é histérica!
há que construir mesas e cadeiras
da ilustração a devastação cega
o sangue pingando à terra
-estão a cortar-me a cabeça!
mas a criança que já não é criança
no balanço dos pés se embala
onde não se senta completamente
antes, se equilibra ou tenta
porque a ideia é metálica.


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Dialecto de Velhos



cintos de segurança, hábitos
a bordo da aventura, inúteis
de nos atirarmos borda fora
de vendas e mãos atadas

dos dedos pálidos o firme abismo
da impressão que fica, em cada fibra
nessa página de sangue, o carimbo
estarei louco! e cada vez mais nítido
o coração se aquietando, pára!
o espírito abandonando o chão
o carácter marulhante da alma
descolando da pele de Laverna
É ela mesma que nos empurra
que nos dá aquela curva, o frio
dos ossos que estalam idosos.
o turbilhão das vizinhas, as buzinas,
os trocos para a bica e a barba
tudo deixado em terra!
para onde vamos, nada nos pesa.

a massa do escaravelho coleta
o sagrado por ali fica no corpo.
a misericórdia de alguém
de nos cobrir de pedra e lágrima

que o diâmetro da vida
não encolhe nem estica,
isso pensam os jovens da botica!
mas quem parte, sabe
que a estima do tempo, é a arte.

Que mania de negar o que existe
e explicar o que não existe!











Micha



o ursicídio para mil campas de mel
a revoltante irremediável filiação
a um estado a que se não pode mais
pertencer, a ânsia frenética de querer
ser criança para toda a vida. Micha.
vejo a imagem flutuando por águas
escuras, tu gritas terror nocturno
em pesadelo de ser adulto.
Acordando na margem chegando parte.
A cabeça sem orelha, o tronco sem
a perna. A impressão de que a terra
vai terminar essa tarefa que os anos
não cumpriram. Um olho carrego,
amuleto que guardo no bolso, terno.
Em momentos de desespero procuro
ainda o apego, o aconchego do pêlo
mas que posso? O rio foi mais forte.
E na minha mão esse olho plástico
que me vê de um ângulo mágico
um semi berlinde, meia esfera
que brilha pelos dias de escola,
no tempo do leite e das bolachas
das sandálias e das coisas fáceis.
Nessa campa de imagens estanques.
Não há como regressar, nem tu feito
de carne e osso e coração a bombar.
A bem dizer nem me recordo do dia
em que te perdi de vista, nem sei
se fui eu que te dei, se foi alguém
que te levou num qualquer saco
juntamente com os casacos apertados.
Eras apenas um brinquedo não eras?
Micha, divago com mil diabos!
em bicos dos pés, chego ao telhado
tenho essa impressão mas na verdade,
sou tão pequena que toda a infância
me cabe ainda num poema. Micha.
O que teria sido se da prateleira
nunca tivesses saído?
Todo o passado seria agora vitrinismo
O ursicídio seria o homicídio
não digo suicídio porque não haveria
um eu para puxar o gatilho.
E as campas não seriam campas
nem seriam mil infâncias de mel.






terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O poema bloqueado




cintilam os ornatos dos sucessos
no espelho um pente que se escorre
pelos compridos cabelos da neurose
os móveis sentam-me penetrado
no empedrado do que foi já conquistado
Senhor! Se nem bem estava em mim
não me recordo sequer do momento
em que da minha boca saiu ondulação
e que agora como que sem refrão
dentro de mim, escuto soltas as rimas
incapazes de se arrumarem na linha
tão bela a feição divina, mas breve
porque há que continuar em frente
e no superar, e melhorar e vencer
o primeiro pior dos entraves
tu mesmo! a porta foi aberta
não por desmazelo ou assalto
mas porque o tesouro que se guarda
não tem mapa, tem deixar-se ir
tem fé porque a doutrina vem de pé
a grande marcha é cega
porque é pelo sentir que se apalpa
e a cada nova palma, uma salva
não de prata, não de platina,
uma salva-vida!
Mas nada disto me serve o propósito
do momento presente,
o que quero é declamar completamente
e enumerar todas as palavras que oficiais
sejam capazes de chegar às finais.
E ás vezes na pressão ou na pressa
o bloqueio se instala
e é preciso uma pausa
e voltar ao início, voltar a percorrer o caminho
não em pessoa, mas no rápido documentário
que já foi explicado e resumido pelo narrador
que temos dentro do próprio actor
E a dor, sim, é árduo o percurso do exigente
nada lhe chega, nada é suficiente
e depois se apaga e se volta ao início
e depois de muita volta, nada.
E é aí que se sai de casa, que se passeia.
Que se afasta o que nos bloqueia.
E é nessa distância que se consegue
esse dito domínio sobre o que se escreve.
Ou não. Ou insistir-se até quebrar as lianas
e todas as teias de aranha,
insistir até a raiva surgir, no ponto certo
de dizer: eu daqui não saio enquanto
de mim não sair o poema perfeito!











segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A mulher que não tinha caninos (versão de Mc Santiago)




I

As maçarocas de milho tostavam no forno e os quiabos ferviam ao lume. Limpou as mãos ao avental e olhou-se no exaustor, aparando o baton nos cantos da boca compondo o caracol na testa. Na porta duas pancadas soaram. Era ele. Atirou o avental para a cadeira da cozinha e passou pela mesa da sala para se certificar que as velas ainda estavam acesas. Parou junto da porta, respirou fundo e calmamente abriu. Ele levou a mão ao chapéu, pedindo permissão para entrar. Ela sorriu-lhe dando-lhe passagem. Está uma noite fria, como foi o teu dia? Cheira deliciosamente. Ela olhou-o com o sorriso no canto da boca e deixou-o na sala buscando na cozinha as travessas. Quando regressou ele estava já sentado numa das extremidades da mesa tocando no prato. Enquanto o servia ele passou a mão pela cintura dela Estás mais linda do que nunca! Mas estranhamente silenciosa. Ela passou-lhe a mão na testa Aprecia o teu jantar, foi feito com toda a dedicação.  E serviu-lhe vinho no copo de pé de cristal.
Enquanto ela se afastava ele provou o vinho e um gole foi o que bastou para cair redondo no chão.

II

Aproveitando a carpete, arrastou-o ainda meio dormente pelo corredor. Uma pequena porta dava para a cave. Pelas escadas o corpo aos trambolhões balbuciando Porquê? Que fiz eu? Chegando ao compartimento, sentou-o numa poltrona, algemando-lhe os pés e as mãos. Com fita adesiva silenciou-lhe a boca. Ao lado uma mesa com vários utensílios. Pegou no pente e passou-o pelos cabelos negros dele. Deixou-o com um risco ao lado. Depois abriu um boião de creme e delicadamente massajou-lhe o rosto hidratando-o. Com uma lâmina aparou-lhe os cantos da barba. A pouca resistência que ele podia ainda oferecer fez com que a lâmina lhe golpeasse o pescoço o que a irritou. Agora era preciso trocar-lhe a camisa manchada. De frente um armário com um espelho. Várias eram as peças de roupa masculina e ela escolheu uma camisa branca de colarinho azul claro. Esta deve servir. Mas antes que mais algum imprevisto aconteça...Pousou a camisa na mesa e trouxe consigo uma seringa. Na veia mais saliente do braço injectou algo que o deixaria absolutamente inconsciente. Por algumas horas. 
Mais tranquila retirou-lhe então a camisa. Como era delicada a pele dele! Morena, com apenas alguns cabelos no peito. Percorreu todo o tronco e retirou-lhe as algemas das mãos para que o pudesse desencostar da poltrona, queria apreciar-lhe as costas. Passou-lhe a mãos pelos ombros descendo da coluna vertebral ao coxis. Não, algo não estava no sítio. Uma cicatriz que atravessava a parte esquerda do final das costas. Procurou por adesivo da cor da pele e tapou-a. Não fazia parte. Abraçou-o e embalou-o. Do seu pescoço um perfume doce voltou a irrita-la. Procurou por um pano húmido e lavou-o. Esfregou até que o odor desaparecesse. E do frasco de perfume sobre a mesa untou-o com duas gotas. Sim, agora sim o perfume está correto. Tombou-o sobre a poltrona novamente. Tinha um ar sereno dormindo. Passou para as mãos. Com uma lima de cerâmica tratou de unha a unha para que ficassem arredondadas e curtas. Na mão direita um calo no dedo indicador despertou-lhe novamente a atenção. Procurou pela pedra pomes e esfregou, alisando-o depois com creme do mesmo boião de antes. Passou a mão dele pelo rosto dela, estava liso e sedoso. Vestiu-lhe então a camisa apertando botão a botão. E voltou ao rosto dele. Abriu-lhe a boca e sentiu os dentes dele. Não eram afiados o suficiente. Vestiu-lhe então uma bata que lhe cobria a parte superior do corpo e ligando a broca, redesenhou as pontas agudas dos caninos. Esta tarefa levou-lhe algum tempo cansando-a na precisão de os deixar ambos idênticos. 
Quando terminou a sua obra contemplou-a satisfeita. Estão enfim prontos para serem recolhidos. Mas antes o retrato. Também sobre a mesa estava a câmara que utilizou para captar o rosto de boca aberta. Depois, com um alicate, começou a abanar, e insistindo daí a pouco o dente estava na sua mão. No buraco deixou um rolo de algodão para que não jorrasse o sangue que já irrigava a boca toda. O dente foi deixado num boião de formol e a tarefa repetiu-se ao outro canino, trocando entretanto o algodão para não o engasgar. Por hoje é tudo. Veremos como acordas amanhã, se tens febre. Voltou a algema-lo certificando-se de não poder libertar-se, tapou-o com uma manta e levando o boião consigo subiu saindo da cave. Sentou-se à mesa, a comida já esfriara mas a refeição soube-lhe bem. Depois deixou tudo na cozinha, apagou as velas e subiu ao quarto para dormir. Amanhã é outro dia. Passando pela porta da cave dorme bem meu encanto!


III

Pelas seis da manhã despertou com gritos vindos da cave. Levantou-se, calçou os chinelos e desceu. Lá em baixo na luz trémula, ele gemia de dores transpirando febril. Vejo que o teu acordar não foi dos melhores. Sobre a mesa estava a mesma seringa e ao lado numa prateleira vários frascos com líquidos etiquetados. Enfiou a agulha num deles e levou-a ao braço dele que tentava resistir-lhe implorando-lhe para que o deixasse ir. Vamos, não resistas, será pior, deixa-me cuidar de ti. Ele  contorcendo-se de dores, desistiu por fim na esperança de que a dor parasse. Injectou-lhe então o anti inflamatório analgésico e em poucos segundos ele começou a sossegar. Passando-lhe a mão pelo cabelo ela encostou então a cabeça dele ao peito dela Pronto meu doce, pronto eu estou aqui. Cuidarei de ti. Ficarás bem, sim ficarás bem aos meus cuidados. E ele chorando de desespero não conseguindo de forma alguma desenvencilhar-se das algemas, cedeu adormecendo. 

Na manhã seguinte ela levantou-se energética e antes de ir à cozinha preparar o café passou pela cave para verificar o estado dele. Ao descer as escadas notou que estava ainda adormecido dado que não lhe viu qualquer reacção. Aproximou-se e ao vê-lo de frente o seu estado entranhou-a de raiva. Não, não podes! Porque o fizeste! Eu teria cuidado de ti, fraco! Da boca dele, os algodões haviam sido cuspidos e voluntário ou não, as feridas dos buracos haviam-no sangrado até à morte. Estava sem pulso e sem sopro de respiração. Branco, imóvel e frio. Não, gritou ela de nervos, eu sabia que devia ter-te cosido, não o fiz porque me pareceu estável, não...agora não estás apto à fase seguinte! E limpando as lágrimas, agora respirando mais calmamente, como que desperta de uma convulsão, levantou-se, retirou-lhe as algemas e embrulhou-o novamente na carpete. Da cave uma outra porta dava para o jardim, era agora preciso enterra-lo e despejar o carro dele ainda estacionado à porta, ao rio.    

IV

Uma semana passou. Na mercearia ela deambulava pelos corredores olhando as maçarocas de milho já no cesto. Desistindo de outras compras dirigiu-se para a caixa onde um homem alto e magro, de cabelos negros pagava. Os olhos dela brilharam, empurrou o peito para fora do decote e aproximando-se simulando distracção deu-lhe um encontrão. Ai, peço desculpa vinha distraída. Sorrindo charme. O homem apresentou-se Não tem importância, não machucou, chamo-me T. e estou de passagem, talvez me pudesse mostrar algo de interessante por aqui. O isco servira e ele estava agora a cair na rede dela Sim, tenho todo o gosto, eu ia agora preparar o almoço em casa, porque não é meu convidado? Por estes lados não recebemos muitas visitas, sabe como é, terras de interior! Ela olhou para o homem da mercearia e deu-se conta de ter sido desleixada, certamente ele escutara a conversa e em breve se dessem pela falta do forasteiro, iriam fazer perguntas. Foi então que lhe ocorreu alterar o formato original do seu modus operandi. O senhor também vive sozinho não é verdade? E ao fazer esta pergunta deixou deslizar intencionalmente os dedos sobre um dos seios. O homem um pouco mais velho do que o outro, de estatura baixa e farfalhudo desconfiou mas era bem conhecida a sua fama de não resistir a um rabo de saia e ela pressentiu-o ao ver os seus lábios morderem-se olhando o decote dela. E respondeu Sim, a minha mulher faleceu há uns anos. Ela riu-se Pois então faremos do almoço um jantar de convívio, jantaremos os três hoje à noite em minha casa. O senhor dirigindo-se agora ao forasteiro pode vir comigo agora se não tiver outro compromisso, podemos ir adiantando os preparativos. E piscou-lhe o olho. O homem achou que havia ganho a lotaria e mesmo lhe incomodando a presença do outro, achou-se na vantagem do adiantamento do convite. Iremos então, não precisa de trazer vinho, tenho em casa, aguardo por si às oito, despedindo-se do merceeiro. 


V

Desta vez não haveria falhas. O tempo marchava e era preciso tratar de um para manter o outro. A questão que pairava na cabeça dela enquanto T. a conduzia era qual dos dois serviria, qual dos dois sacrificaria para poder manter o outro no seu plano. E em tantos outros falhara por diversas razões que em si a pressa de querer ver satisfeita a sua tarefa, estava a atrapalhar-lhe os sentidos. Era preciso calma para que tudo corresse por fim como desejava. Certamente que o merceeiro não preenchia os requisitos, havia sido um acidente no percurso mas algo nele a fizera vacilar. Talvez a ideia de estar só há muito tempo, a morte da mulher, qualquer fragilidade nesse sentido a conduzia a coloca-lo no lugar do candidato privilegiado. Estaria então decidido quando na porta estacionaram.
Irei preparar qualquer coisa rápida para o nosso almoço e depois podemos descansar, o que me diz de uma sesta? Piscando-lhe o olho. O homem encantado ficou. Que tal um copo de vinho para relaxar? Ela precisava que ele bebesse o vinho para ir directamente ao assunto. O prato principal seria o outro. Mas o homem retorquiu Vinho não, preferia algo fresco, pode ser um chá? Compreende, preciso de me por ao caminho logo mais, ainda hoje tenho de chegar ao meu destino. Ela voltou da cozinha de mãos vazias curiosa Ai sim? O que tem de tão importante à sua espera? O homem sentou-se na cadeira da mesa da sala, exactamente no lugar do anterior Investigo o desaparecimento de um homem que vivia a trinta quilómetros daqui, provavelmente não o conhecia, era vendedor de enciclopédias ao domicílio, bom talvez até lhe tenha vindo bater à porta, quem sabe. Ela congelou, e procurou desviar o olhar da prateleira junto à lareira. Lá estavam as malditas enciclopédias que deixara no desleixo, por ali. Ocorria-lhe agora que o homem podia não ser assim tão ingénuo quanto teria aparentado e era urgente desenvencilhar-se dele. Mas sabem que parou por aqui? A pergunta era em si denunciadora e sentia-se a perder o controle da situação, certamente o homem desconfiara dela. Malditos homens, se não são maus são dissimulados pensou para si mesma mordendo a língua de raiva. Falava-lhe da cozinha preparando o chá com uma dose reforçada de sonífero. E ele da sala andando agora de um lado para o outro respondeu-lhe parando exactamente de frente para as enciclopédias Não, não era suposto este desvio. A resposta podia não ser verdadeira mas ela seguiria com o plano Aqui tem o seu chá, fresquinho. Ah está a olhar para essas enciclopédias e a pensar se serei uma assassina em série. Pois quem sabe se não sou mesmo, rindo-se, e se fosse provavelmente este chá estaria envenenado neste momento. Riu-se com uma grande gargalhada, colocando o chá na prateleira ao lado das enciclopédias e aproximando-se dele seduzindo-o. 
E ele não resistiu ao encanto dela, levantou-a nos braços sofregamente. Para que lado é o quarto? E ela ao ouvido dele e porque confiaria eu num oficial de justiça que se perde por atalhos com mulheres que não conhece? O homem na pressa de conseguir dela a confiança que o levaria aos céus do prazer pegou no copo e engoliu metade dele, perdendo em poucos segundos os sentidos. Ela suspirou de alívio Todos iguais. Certificando-se de que ele estava inconsciente aproximou-se do rosto dele, batendo-lhe na cara. E nesse gesto a boca dele abriu-se Mas como? Não pode? Como não reparei nisto antes? De facto o homem falava sempre com a boca semicerrada, pouco dos dentes lhe havia visto, o que até lhe dava um ar misterioso, mas agora que olhava de perto apercebia-se, ele não tinha caninos, tal com ela. Esta situação mudava completamente o cenário. Ele não tinha a maldade e nesse sentido ela não seria capaz de o fazer, não encaixava.

VI

Sentada de frente para a lareira ela permanecia imóvel olhando para ele adormecido. Este impasse colocava-a numa situação demasiado frágil. O homem era uma ponta sem nó, mas corroía-lhe o sentido, ser capaz de matar alguém que pertencia ao reino dos sem maldade. Não podia fazê-lo, ele seria o único de uma espécie extinta de homens. 
As horas passavam e o outro deveria chegar a qualquer momento. O relógio da parede batia os segundos aumentando a ansiedade dentro dela. Que fazer? Também em pouco tempo ele acordaria e saberia então que ela era a assassina, não a perdoaria nem se compadeceria por ela. Ela sabia que não tinha perdão, não queria o perdão de ninguém, tinha uma missão e isso bastava-lhe. E tinha até prazer na sua missão, isso permitia-se confessar a si mesma. O relógio bateu o último segundo das sete horas. E na porta bateu o outro. Estava na hora, só precisaria de alguns segundos para despachar o merceeiro em tudo teria uma solução, confiando de que T. não acordaria entretanto. 
Abriu a porta sorridente com outro copo de chá. Entre, vejo que gosta de ser pontual. O nosso amigo está a repousar na sala, o nosso almoço foi pesado e ele caiu no sono. Eu precisava de uma pequena ajuda sua na cave, tenho lá o vinho mas a porta da adega empenou e não consigo abri-la, preciso de um homem forte como o senhor. O homem inchou-se de orgulho de poder ser útil. Diante da porta da cave ela estendeu-lhe o copo Eu estava a beber um chá fresco, deve vir com sede, têm sido uns dias quentes, quer um golo do meu chá? E esta expressão foi o suficiente para o homem se sentir em casa e beber do copo dela. Já a descer as escadas, sentiu-se tonto e descarrilou caindo no chão da cave. 
Lá em baixo ela procurou pela seringa e de um frasco de veneno mortal injectou-o no braço. Um último par de caninos, os últimos da colecção. O homem espumava da boca inconsciente, o veneno corria-lhe voraz pela veia. Agarrada ao alicate pronta para arrancar o dente, a porta da cave se abre. T. despertara.

VII

Ele viera visita-la à prisão. Ela aguardava-o sentada numa sala despida de tudo. Ele entrou e sentou-se na frente dela. Pode começar do início, vim recolher a sua história, sabe que tem direito a um advogado mas prescindiu dele, não quer ser ajudada deduzo que se dá por culpada certo? No seu quintal foram desenterrados doze homens, o que tem a dizer sobre isto senhorita sedutora perigosa?
Ela observava os dentes dele. Como a fascinavam. Sabe que é o único da sua espécie? T. desafiava-se a si mesmo a uma compaixão impossível por esta assassina Como assim? Sou o único? Foi por isso que não me matou ou não teve tempo para cumprir o seu maquiavélico plano, já agora qual era o plano mesmo? Ela respirou fundo e chorou. Levou as mãos à boca dele mas ele afastou-se, esta mulher provocava-lhe arrepios. Ela controlou-se e continuou Acaso já reparou que não tem caninos? Eu também não tenho os meus mas isso é outra história. Todos os homens que habitam o chão têm caninos, por isso são irremediavelmente maus, a menos que lhos sejam arrancados. Deus dotou os homens com a perícia do animal, para que rasgassem a carne e dela se alimentassem. Mas os homens tornaram-se gananciosos, e numa altura em que a terra escasseava de alimento, começaram a comer-se uns aos outros. Deus zangou-se, havia alternativa mas o homem é um ser preguiçoso, não vê além do que está diante dos seus olhos e por isso um dia, Deus lançou sobre a terra o dilúvio e pediu a Noe que construísse a arca, salvando a sua família e um par de cada espécie animal. Essa parte todos nós sabemos, não sabemos é que todos os descendentes de Noe incluindo ele mesmo, não têm caninos. Por isso foram poupados. A marca do mal, entende agora? T. era absolutamente agnóstico e todas estas crendices as via como fraquezas de gente simples sem cultura. No entanto, e como lhe cabia a si recolher a história acenou com a cabeça para que ela continuasse. Gerações passaram e parece que nalguma zona da terra, voltaram a aparecer caninos, como ervas daninhas, proliferando e dominando os de bem. Até que a balança pesou irremediavelmente para o lado do mal e hoje, como lhe disse, é o único homem verdadeiramente descendente de Noe. 
Ele desviou o olhar dela ignorando essa atenção tão especial que pendia sobre si. Interessava-lhe ir ao cerne da questão e ele estava precisamente na história dos caninos dela. Compreendo, eu gostava de saber como foi que ficou sem os seus caninos. Interessa-me a sua história porque algo em si me diz que é mais importante que esta cantiga bíblica. O objectivo dele era provoca-la, ira-la para que de ódio desabafasse tudo. E foi precisamente o que aconteceu Você não sabe nada, nada entende? Como pode negar a sua própria essência? A sua natureza tão pura, tão diferente de todos os outros! Eu sei o que é a maldade, se sei. Ele estendeu-lhe um lenço para que limpasse as lágrimas. Eu só tinha quinze anos, era uma menina. E ele veio, todo cheio de encantos, parecia que tinha sido criado nos meus sonhos, tudo nele era perfeito. A pele dele, o cheiro dele, a voz dele, as mãos dele. Não poderia esquece-lo nunca. E T. insistiu Então ele era bom, não tinha caninos portanto? rindo-se gozando-a. Não, ele tinha-os, se tinha, os caninos mais perfeitos e afiados à face da terra. E com eles me arrancou toda a inocência, batendo, todos os dias do nosso casamento, batendo sem piedade nem razão, batendo só por maldade e puro prazer de pisar a fragilidade e cuspir nela. Tanto bateu que um dia foram-me todos os dentes da frente. Dos que me conseguiram devolver à boca implantando, os caninos nunca apareceram. Porque eu já não os merecia entende? Eu era agora má, queria vingança, sentia ódio no peito, maldade da mais pura das maldades. Compreende agora a minha história.
O homem levantou-se enfim satisfeito porque compadecido deixando-lhe um último consolo de apego à terra Compreendo e lamento tudo o que lhe foi feito, mas para que conste, os meus caninos foram-me arrancados por um dentista quando era pequeno porque tinha os dentes grandes demais para a boca que tinha, não me cabiam na boca. Tão simples como isso. Adeus, bela perigosa. E se me permite uma empatia final consigo Que a sua alma tenha descanso, ah e sim, teria amado estar nos seus braços, vivo!

domingo, 1 de fevereiro de 2015

objectificando




se o coração fosse um chaço
que não tivesse mais andamento
encostado enferrujando,
aguardando o ferro-velho
o desmantelamento.
se o coração fosse um ferrari
polido de vermelho reluzindo
de interior de pele de leopardo
conduzido sem amor à vida
curva a direito, estampado.
Se o coração fosse um cavalo
possante, vibrante, selvagem
transpirando de cascos untados
relinchando, sem doma
um puro sangue para venda.
se o coração fosse uma formiga
frágil, lenta, continuada, obstinada
carregando migalha a migalha
no carreiro da colecta, cega.
se o coração fosse um parafuso
duro, perfurante, esburacando
que a um só buraco pertencesse
segurando, sustentando,
um qualquer adereço de parede.
se o coração fosse um acordeão
ou uma concertina, abrindo
fechando em leque, harmonioso
nas mãos de um moleque
pedindo esmola na esquina.
se o coração fosse uma cela
quatro paredes gradeadas
onde um prisioneiro chora
pelos crimes de vidas passadas.
se o coração fosse um deserto
camelos, tendas, atravessando
uma caravana de cães ladrando
e uma miragem de sede, saciada.
se o coração fosse uma criança
teimosa, mal educada, caprichosa
e uma palmada na hora certa
lhe servisse de emenda, ou trauma.
se o coração fosse uma pedra
atirada, borda fora, ou encaixada
no murete de uma casa, de xisto
para delimitar ou para guardar.
se o coração fosse lixo
empecilho, restos, embalagens
o tesouro de outros, reciclando
alimento para a boca de velhos
ou miúdos descalços, com fome.
se o coração fosse a morte
desejada, temida, ignorada
a angústia nas últimas palavras
o adeus a tantas horas.
se o coração fosse nada
um músculo esventrado arejado
onde batesse qualquer coisa
que não significasse senão, vida.
se o coração como afecto e emoção
fosse outra coisa, o umbigo,
uma perna, um braço, uma mão
tocando, mexendo, agarrando, ligando
ainda assim, o coração se chamaria
coração? ou o amor teria a forma
de um joelho, um cotovelo, uma unha
ou uma cova?






Poeta convidado deste Blog hoje Nuno Piteira (Eco Drums Lab)

https://soundcloud.com/eco-drums-lab/no-caminho-de-santiago