domingo, 1 de fevereiro de 2015

objectificando




se o coração fosse um chaço
que não tivesse mais andamento
encostado enferrujando,
aguardando o ferro-velho
o desmantelamento.
se o coração fosse um ferrari
polido de vermelho reluzindo
de interior de pele de leopardo
conduzido sem amor à vida
curva a direito, estampado.
Se o coração fosse um cavalo
possante, vibrante, selvagem
transpirando de cascos untados
relinchando, sem doma
um puro sangue para venda.
se o coração fosse uma formiga
frágil, lenta, continuada, obstinada
carregando migalha a migalha
no carreiro da colecta, cega.
se o coração fosse um parafuso
duro, perfurante, esburacando
que a um só buraco pertencesse
segurando, sustentando,
um qualquer adereço de parede.
se o coração fosse um acordeão
ou uma concertina, abrindo
fechando em leque, harmonioso
nas mãos de um moleque
pedindo esmola na esquina.
se o coração fosse uma cela
quatro paredes gradeadas
onde um prisioneiro chora
pelos crimes de vidas passadas.
se o coração fosse um deserto
camelos, tendas, atravessando
uma caravana de cães ladrando
e uma miragem de sede, saciada.
se o coração fosse uma criança
teimosa, mal educada, caprichosa
e uma palmada na hora certa
lhe servisse de emenda, ou trauma.
se o coração fosse uma pedra
atirada, borda fora, ou encaixada
no murete de uma casa, de xisto
para delimitar ou para guardar.
se o coração fosse lixo
empecilho, restos, embalagens
o tesouro de outros, reciclando
alimento para a boca de velhos
ou miúdos descalços, com fome.
se o coração fosse a morte
desejada, temida, ignorada
a angústia nas últimas palavras
o adeus a tantas horas.
se o coração fosse nada
um músculo esventrado arejado
onde batesse qualquer coisa
que não significasse senão, vida.
se o coração como afecto e emoção
fosse outra coisa, o umbigo,
uma perna, um braço, uma mão
tocando, mexendo, agarrando, ligando
ainda assim, o coração se chamaria
coração? ou o amor teria a forma
de um joelho, um cotovelo, uma unha
ou uma cova?






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