terça-feira, 31 de dezembro de 2013

O Fio das Palavras

A torrente é amiúde
climatizando o sentido
a cada passo escrito

vítima de uma vontade
de artesã insurreccional
paixão gramatical
À Liberdade!

E que por elas
nos levantamos
e que sem elas
nos definhamos

Ao largo, sozinha
no centro
A palavra é o único
momento

uma dor só no mundo
uma folha que a ignora
e cai que teima, chora
a brisa que aclara a aurora

Não importa a perspectiva
elegias marinando
lágrimas cristalizando
e tudo
num imenso trânsito

Velhas, novas, negras
brancas
sem alarido de auto protesto
récuas em metáforas singelas
cruas, duras, anarquizantes
telhados dos afectos
dos amantes

E que sem elas o que seria
de nós?
Quem tradução
do batimento, abatimento
e alegrias fantasias?
Que o pensamento descarrilando
em reacção apenas sendo
partícula sem filamento

Enfim...
às vezes em desabafo
nos cansam
nos pesam
nos matam aos pedaços

Mas são e serão
sempre
o encanto dos nossos laços









domingo, 22 de dezembro de 2013

Votos natalícios em papelote

Como uma linha
de esparguete seco
serve de entretém
e enfim de mote
para que o papelote
possa cozinhar
um desejo:

-observar como brinca a gata
-segui-la com os olhos por alguns minutos
-cortar pequenos quadrados de papel e dispo-los num tabuleiro

Ir aquecendo o forno com um bom Jazz
Acender um cigarro, beber um golo de chá verde e começar

Para a massa:

-100 g de água quente passada pelo corpo (pode apagar a luz e faze-lo à luz e vela
como sugestão)

- 40 g de espelho (de preferência vestido com algo atractivo e aparência cuidada,
demore o tempo que quiser aqui, o resultado requer dedicação)

-280g de estrutura: há que buscá-la nas gavetas da infância naquele momento 
em que começamos a descobrir que temos capacidade para dizer sim ou não,
gosto disto ou daquilo, quero mais assim ou assado, sinto-me bem ou mal,
posso ir até aqui ou mais além, gostaria de...

-uma pitada de amargura (vai permitir que a massa fique consistente impedindo
o aparecimento de bolhas de ilusão)

Esfregue as mãos uma na outra e amasse bem todos os ingredientes até fazer uma bola
inteira agregada. Procure pelo rolo "dos outros" e deixe que estendam até ficar bem fininha,
cuidado para não chegar ao ponto de ruptura. Procure pelas obrigações e pelos papeis sociais
e corte então a massa entendida em quadrados, rigorosamente iguais. Deixe a repousar.

Para o recheio:

-70 g de memórias maduras, plantadas sem aditivos e colhidas no tempo certo
-1 lata pequena de obstáculos que já conseguiu ultrapassar
-120 g de lágrimas que só lhe fizeram bem chorar
-400 g de amor, de todo o tipo de amor que conseguir encontrar, que já deu ou recebeu
-Novamente, uma pitada de amargura para contrastar com tanto doce
-6 desejos embrionados (deve sonha-los e desejá-los com todas as suas forças)
-1 colher de chá de carícias íntimas (lembre-se que este é o corpo da massa!)
-Raspa de dois livros de poesia: um sobre vida e outro sobre morte (queremos o recheio
bem equilibrado)
-esperança para polvilhar por cima

Triture as memórias e reserve. Triture os obstáculos e reserve também.
Em lume brando vá mexendo as lágrimas e o amor bem devagar. Queremos que fique em ponto de estrada. Retire do lume e acrescente as memórias, os obstáculos e a pitada de amargura. Envolva tudo com uma colher de pau. Adicione os desejos, as carícias e as raspas dos livros, sempre envolvendo
com toda a sua dedicação. Volte ao lume por mais alguns momentos, sempre atentando para que não
se queime.


Recheie então os quadradinhos da massa. Não é preciso que fique muito preenchida. Pode usar
uma colher para medir cada dose, assim terá a certeza de todos ficarem iguais.
Junte as pontas dos quadrados e faça um embrulho com o papel.

Leve ao forno 40 min e ofereça neste Natal.

Nota de Aviso:
Não se espante se, ao consumirem o seu voto os outros tenham manifestações como sorrisos, vontade de abraçar, chorar, calores súbitos, gemidos e até em alguns casos raros, alucinações ou fantasias consigo. No caso de os ver pendurados numa janela já sabe, agarre-os!














terça-feira, 10 de dezembro de 2013

beija me nos lábios
agora
estão protegidos com bálsamos
da noite escura
ergue-te e caminha risonho
orgulhoso de
teus nefandos crimes
modernos hindus
que hoje rezam de pé
já nem é preciso fé
é costume cognominá-los
lá do alto do fogoso corcel
ai não, afinal a fé está morta
foi confusão prodigiosa
apenas do meu olhar

e se restaura a cada lábio
artificial






Pária

pararias um só segundo
de criar o teu mundo
só porque aos olhos
de todos os outros
és apenas mais
um vagabundo?


purana
na era do hipnotismo

em sessões experimentais
gota a gota
por hábil gramática
de combinação assimétrica
homem, mulher
porque tem o alfabeto sexo?
devanagari
a cada um o seu par
e todos o verso

em sincretismo
as próprias cinzas
na candura
um guerreiro ferido
esgotado em sangue

a adesão absoluta ao rei
e aos pobres de espírito
aos seus devotos
e ao admirável mundo

numa e noutra parte
Sava munisa me paja


SE a terra tivesse um apoio material
e esse outro que o elevasse
e por aí fora
até ao universal

não seria outro lugar?
onde fosse bom acordar


Um livro nunca aberto

Essencialmente
naturalista
aguardando no alfarrabista
de concepção equivalente
deixado ao toque do infinito
teogonia de aceitação
em reacção, no chão
em cooperação de Karma
Deus único e imaterial
de perfeição à mão humana
e filosofia mundana literada
onde o pensamento
é superior à acção
pelo amor
à invasão do apego
ele pede:
-leva-me para casa




sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

É uma roca!
As tripas lhe estão desfiando
abrindo-se bolsas
caindo moedas
dois leões estatuados
lenha verde não arde
que a comadre não se zangue
enrolando com a agulha
o fio que nos prende

Não traga luz para aqui
o xaile pela cabeça
damos as boas noites
jogando a barra
em terreno sacra
é a voz do Tónio
Tua mãe precisa de ti
temos zorro
saindo de trás do morro

e na arca de pinho
ainda de avental
deixou uma lágrima
de hora a hora
a vida melhora
tira-se-lhe o freio
a benção primeiro

e de seguida engoliu-se-lhe o senhor
-Uma roca, é tudo o que preciso
por favor

Descalçou os sapatos
mergulhou os pés no mar
estava um frio de rachar

sem dizer uma palavra
escutou
a presença constante ondular
o coração estoirava
quiçá encontrá-lo mais tarde
objecto do sonho
enfrentá-lo
numa madeixa rebelde
pentea-lo
serei um bom costureiro
quantos pedaços de terra
de textura grosseira
e paredes decrépitas
e eu disse-te para seres
paciente

um hexágono
irrompia como espigão
de fogo esgadelhado
e alguns olmos
desequilibrados
pendiam ao chão

acabrunhado
o ser desmanchou
do fundo gemido
e dor de sombra
uma inquietação idiota
impunha um novo andar


Muita gente à mesa
da travessa a festa
que coisa asseada!
que há-de estimar
da altivez de estar
-uma fraga de cada lado
onde o mar é agora
riacho

e chamá-lo à realidade
Transe crudelíssimo
-e se começasse amanhã?

do passo à bruma
da bravidade vagabunda
répteis e aves
fugidia e ténue
onde os olhos flamejam
como se fossem
lôbregos
ases






quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Mais tocada do que tu
por um certo mal que me aflige
e a resposta obriga
a uma certa desilusão
em cima da colcha
terna e melancólica
à beira da cama
um destino que se cumpre
quando a criança reza
num impulso instintivo
de atingir  tempo
do absurdo

Que mal te reconheço?
como nos dedos inábeis
num género de coisas fáceis
creio eu
que os pedaços são cada vez
mais pequenos
por hábito ou formulação
de preguiças ou meandros

Gestos lentos e sonhadores
como uma colcha de croché

Deus
para reconhecer a alma feminina
teve de expulsá-la da sua área
apaixonada
vertiginosa
irreflectida
como se deseja uma jóia
ou será a boca de uma jibóia?

Abrir-se-ão na Terra
em carícias ternas
a limitação é o catalizador
supremo sonho
ligeiramente diferente
do Outro

O papel mais cativante
em má gestão de turnos
numa história pobre
de acontecimentos verídicos

Aos extremos
sim, um brinde
à memória, ao corpo
ao espírito do calulu
à marca de nascença
e até uma certa angústia
trágica ou cómica
às meditações absurdas
aos homens efeminados
às irmãs siamesas
à sorte maltesa
e decerto
aos confins da natureza

Brindemos
Juntos
Eis por fim
a página que nos diz respeito
que ecoa do meu crânio
disforme de realização modesta
da minha experiência sincera
a meios insuficientes
em todo o louvor
que se abre das asas de um cisne

Mais forte que um tornado

Poesia de Academia

Enlouquecido pela magia
dessa boca que infringe leis
nesse turbilhão de palavras
e de tantos não seis
Quimera de Ouro
tudo laçada no ovo
nuvem vertiginosa
de limalha nocturna
se interroga a dor
que aos bocados nos foge
e decorre por canais vagos
inalienável beleza
que eventualmente
não esmoreça

Oxalá

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O Homem de cabeça virada

-Que estupidez!
Se o meu corpo caminha para a frente
e a cabeça para trás...

E o livro quebra-se
a cada página virada
da altura se precisa
de algum toque de companhia
de ultrapassar a ruptura
em dedicada luta
se a vida pode ser indelicada
que quadro arqueado!

-A senha por favor
Soberba beleza
desta terra de palmas
limito-me a agradecer
tudo-nada melancólico
prolongada alma

Como se tudo fosse
um jogo de spectrum
com o maior cuidado
um a um
descendo os degraus
da ternura lado a lado
de antiga simetria
à maneira de uma gravura
de cor e luz
van gohgiana

-Leva tudo agora
insinuante professora
estonteada preciosa
a da menção
"muito audaciosa"

Tranquilo
como o barco que baloiça
sozinho

E com a cabeça
apertada nas mãos
trazendo o alívio
lá em cima indeciso
em misericórdia
consolação
-cora, com razão

Minuciosa
mesquinha à medida
esse compartimento
de encadeamentos
a minha humilde farsa
pálida, de sorte a obra
ficcionada

Uma mensagem aérea
autora da narração
no ideal eléctrico
uma voz longínqua
nitidamente a minha
de um dia primaveril
-o carril onde está o carril?

Felizmente que o homem
tinha a cabeça virada
e não me viu

assim, estouvada



quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Preferia ir
em expedição
subir de balão
sair do domínio
da total estagnação

Desta odiosa maquinação
desde o começo da história
e nem vinha de longe!

Tudo isto como se vê
se indispõe comigo
como se fosse um destino
total calúnia e castigo

De tectos baixos
fui raspando daqui e dali
como uma aranha
governanta
me enrolei febril
na curva da cabeça
procedi de ofensa

O dinheiro da velha
da minha carreira
independente natureza
(se tudo corresse depressa)
e ser forçada inquieta

eu até dizia:
que maravilha de vida!

Mestre-escola
deitei mão
mau, vil, invejoso
há muito que minto

 E o rapaz parou a meio da rua
sons de clarinete e violino
sombrio mas cristalino
-faça o favor de o pôr no sítio
sempre lastimei o precipício



A sua ideia seduz-me
mergulhando
Como teve tempo de..?
Em desabafo
Tudo são cantos
e em mim redondo

Incalcularam-me
por testamento celeste
por acrescento
ou de empréstimo

Em contos largos
dormi outrora
trapaçando abraços

E o silêncio
fisionomado
absolutamente necessário

O manifesto é prejuízo
em entrevista confessa
mil rublos
e diante da ociosidade
-somos vultos

Esburacado o meu casaco
atirado o relógio à parede
Tomo um café, olho
ao insignificante fugido
-que prazer tens tu!




As coisas só existem
porque as sentimos
absoluto e premeditado
confundido desorientado
que circunstância!

Houve um caso
parecido com o exacto
singular lhe dá a fé
autêntico alucínio
acusou-se por falso
decidido esmagado
-ou quase

Nas costas do sofá
curvado

Referindo-se à enfermidade
no desejo de a interrogar
-Aqui estou

As horas são incapazes
a queda no tema de conversa
a dama da inércia

Assim me baloiça
o corpo

Afadigado
metade pra cada lado
porque as palavras me deixam
como que embriagado



A par de nada

Só dunas
que a mão amacia
muitos quilos de peso
que se encostam a dentro


Rebolando
cabelos na bacia
a manhã que rompe
apreensiva

Temia por excesso
de imaginação
gentil respiração
de fronte ao espelho
o heroísmo

De propósito
cortando na pele
a custo de pouco
indo a caminho
do fosso

Repudiando
a vaidade
de um adeus
ingrato

Tanto tempo me levaste
para crescer

Faz frio lá fora
não faz?

Entre
a meada e o desgraçado
a geada e o embrulhado
dessa morte
no entorpecimento
se perdeu um norte
um qualquer
por atropelamento
do momento
por dentro

E ela não quer partir
rapidamente
se atavia de tudo
que energia
que vem do mundo
agora
a sinto como tudo!


Um Poema

Protege estes órfãos
um Poema
à escala de órgãos
de ordem pessoal
enteados adjudicados
passaram-se...segundos
dentro do quarto

Em meu entender
como assim dizer
o vinho da madeira
a desgraçada viúva
o último
pedaço de pão
nesta refeição

Basta-me olhar
racional e harmonia
por direito, se sofria
o comportamento
sem respeito
meus olhos ao vento

Como um machado
e descer a escada
perder-nos das coisas
ao de leve, lambido
magistrado prossiga
Já se faz justiça

Um caso patológico
de amor e ódio
sem estar de vigia
e não ocultar
do fundo, a poesia

Não o acredito!
borboleta de arrepio
o tempo da volta
se pega a moléstia
hesitasse na frase
e o que fica
é o mosto da birra

Daí o tal enigma
diferente cuidado
fugira-lhe da boca
escorrendo pela roupa
a resolução inabalável
Que bicho te mordeu?
Esse tal de poema
que em mim adormeceu


sábado, 23 de novembro de 2013

Meu palácio paterno
faz-me perder o sentido
resistindo
correndo pelas mãos
entardecida
as linhas da ira

Querida Estrela
tão negra de pó
velha e respeitada
pátria modesta

Orgulho do passado
canção do ÓóH
corpos de claridade
pasmado

Sou só uma criada
da mão mal educada
E saí satisfeita
sem o menor brilho
social
dessa alcunha
amarfanhada folha
antonomásia a Tal

Caneta sinistra
democracia de rua
em traje de passeio
apalpa me o veio
novilho estilista
engomado
de total idealismo

Porra, que é isto?
Jogando pião
Tamanha ingratidão
ao coração



Estirão

Se eu morri,
porque não vejo
o céu ou o purgatório?
Cá e lá são o mesmo
ébrio e acelerado
acaso forjado de calejo
rodeado de chumbo
de cancros taberneiros
uma legião de turcos
rixas na lotaria
para no final
acabarmos todos
na padaria

Bem
o ajudante de enfermeiro
do mundo material
a terra cheira a cadáver
o estertor
em forma de mulher
astral
o pensamento é forma
apertando nós
relâmpagos
"como é aí desse outro lado?"
já sentindo empacotado
e na ardósia
no alvoroço das cinzas
um arrepio inexplicável
de o saber antes de ser

São os ossos
a fera do homem vivo
do vício bailado
um burro e um palácio
e o pretexto é acaso
animal flechado
finca-pé ora fica
que a porta é vagabunda
ao fundo da memória
uma corda de cânhamo
Lua-Cheia
de encanto


Desconcerto

Espetara-se-lhe a ideia no crânio
como prego de ponta ferrugenta
etéreo e absoluta térrea
irmã gémea do sono

Tal cordão luminoso
entranhado até ao osso
desperto e sôfrego
ao roer dos vermes
sonâmbulos imberbes
onde um homem
corrige outro:
-génio, só morto!


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Ideias Op.a2

No lavadouro público
arregaçou as mangas
e dos punhos
manchas

-SE a melancolia é um vício...

Nos campos de aviação
correndo campos de lírios
a silhueta
ruído surdo

No dia 1 de Janeiro
por cabo telefónico
Jesus,
és americano!

Banzai
estavas preocupado
que necessidade
do fim

O Prince
Churchill lia
mozzarella de Búfalo
guelrando-lhe
de combustível
o aparelho sensível

-De posição de gatas...já!

Uma velha metralhadora
encravada de dores
cavando no solo
a sepultura do sargento

Fortalezas voadoras
o peito a dentro
4 minutos mais tarde
um post-it:

Fodi-TE

domingo, 10 de novembro de 2013

Teoria Geral do Amor

Não vale a pena vivê-lo em partes, pela metade, tentar fugir dele, controla-lo, nega-lo ou sequer tentar que ele mude, que ele cresça, que ele seja. Não vale a pena contentarmo-nos com um sucedâneo daquilo que é a única forma conhecida e original dele mesmo. Não porque estamos sós, não porque não encontramos nada melhor, não porque o tempo passa e nada acontece, não porque o passado já não volta ou aquela pessoa está longe ou não nos quer. Não vale a pena se a razão é essa. Para isso mais vale estarmos sós. Porque quando ele aparece nós sabemos, nem todos passaram ainda por essa experiência, porque não acreditam nela ou porque acham-na uma fantasia idiota, ou porque lhes passou ao lado e confundiram os sintomas com outra coisa, ou ainda não tiveram essa sorte. 

Na verdade, quando ele aparece, de facto parece que estamos mais doentes que saudáveis. De repente tudo o que conhecíamos como nosso, como familiar, tranquilo e seguro, desaparece. O nosso mundo perde o chão. O nosso estômago embrulha-se e o nosso apetite vai-se. A ansiedade e a angústia dentro do peito são tão grandes que mal conseguimos respirar e nada mais tem importância na nossa vida senão o momento em que estamos com o outro. Já não nos conhecemos e nem sabemos bem como nos mostrarmos ao outro. Já não estamos seguros nem confiantes e por isso tudo o que fazemos são disparates género ridículos. Deixamos de ser um só para sermos dois, dentro de dois, simultaneamente. Abdicamos da nossa estrutura e dos nossos hábitos anteriores na necessidade do outro, ao encontro dele. E fazemo-lo com o maior dos prazeres, porque fazer o outro feliz é fazermo-nos felizes. Nada disto é cor-de-rosa a tempo inteiro, precisamente porque é um mergulho no escuro, sem asas para mudar a meio do percurso de direcção, sem discernimento que ilumine a certeza do caminho, sem garantias de nada que nos traga de volta da mesma forma, inteiros. E porque tudo isto é doloroso, nem todos sabemos que o estamos a viver é amor e muitas vezes viramos as costas àquela que pode ser talvez a única oportunidade de o viver na sua real plenitude. Há quem o encontre cedo e o reconheça e há quem tarde ainda o procure. Mas a maior parte contenta-se com o chamado amor de conveniência. Há quem já o tenha vivido e pense não voltar a vivê-lo. Ninguém disse que só o sentimos uma vez na vida. Não é assim tão milagroso mas também não é vulgar. 

Dizem que ele pode ter muitas formas, é mentira. Ele tem uma só veste e uma só cara. Tudo o resto são afectos coloridos que apenas se aproximam dele. Dizem que ele é tranquilo e doce e fofo, é mentira, ele tem tanto de amargo, de destrutivo, como de incondicional aprisionando-nos numa cela onde já não pode estar só um. Dizem que a isso se chama paixão. É mentira, a paixão é um estado de ilusão, passageiro, que arde até ser extinto. Ele é luta uma vida inteira, mas é uma luta dentro do próprio, de não querer deixar de ser para passar a dar e receber. Uma luta para conciliar todos os tais sintomas doentios com o apaziguamento entre os dois. Uma luta para que os nossos defeitos e os defeitos do outro não passem a ser a única imagem ao espelho. 
Todos amamos de forma diferente? Não, a forma é a mesma, mas na verdade nem todos amamos de facto. 
Todos procuramos o mesmo? Não, nem todos queremos vivê-lo, dá trabalho e como disse é incómodo e portanto, chateia. O amor é uma chatice, é. Quando o nosso umbigo nos chega e dedicamos uma vida inteira a retirar-lhe a teia de aranha de dentro, polindo-o e enfeitando-o para cá ficar emoldurado no museu das vedetas egocêntricas. 

O amor tem na verdade um pequeno grande defeito, é que nem sempre é correspondido e aqui é que roça a imperfeição divina. Sim, é um afecto que transcende o próprio homem mas que tal como ele, não é perfeito. E não devemos aqui confundir com engano. Não há engano, há desencaixe. Ás vezes a nossa chave não bate com a fechadura do outro, o que não quer dizer que o que sentimos por ele não seja amor. Lidar com essa desilusão é desastroso e ao contrário também. E depois de uma vez vivido, fica o trauma do regresso, de voltar a acontecer, e é isto que muitas vezes faz com que a fuga nos seja mais confortável ou seguir por variantes de conotação afectiva mais leve e tolerável. 

Dizem que antes de mais é preciso amarmo-nos e só depois procurar o amor no outro. Errado. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. E o amor não se procura, encontra-se e bem que o sabemos quando lá está. Muitas vezes é o amor no outro que vem então compensar o amor ao próprio que provavelmente até veio de uma infância de amor defeituoso e que quanto a isso meus amigos, bem podem fazer terapia que nada há a fazer, senão amar um outro, podendo aqui ser si mesmo, mas um novo si e para criar novos sis, é preciso que muitos outros o amem. O amor partilha-se, não se faz crescer sozinho dentro de si a partir da não matéria. Amar o próximo pode ser mais elevador do que passar a vida a tentar amar-se a si próprio. Não é um pensamento cristão, é um princípio da natureza, nada no mundo está sozinho e isolado, portanto, não faz sentido essa procura desenfreada pelo amor próprio ao próprio, isso é um produto das sociedades modernas individualistas, onde todos temos de ser pessoas de sucesso, capazes e autónomas e...lá está, independentes. Mas independentes de quem? De quê? Formam-se as famílias unipessoais, onde um T1 é até espaço demais e é nos animais onde vamos acabar por compensar esta ausência caindo no ridículo de passearmos coelhos de trela. 

Da teoria à prática estão dois passos: acreditar que ele existe e deixar que aconteça. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Um dos meus grandes desejos era saber tocar piano, quer dizer eu sei mas de tal maneira pouco que é como se soubesse ainda apenas as letras do abecedário sem as juntar em palavras. Quando era pequena ia às aulas e pedia à professora para tocar só pelo prazer de a ouvir, fazia-me impressão a feitude da minha inaptidão ao ouvido. Então eu pergunto se realmente eu gostaria de saber tocar ou se sou apenas efusivamente escrava do ouvido? E não será assim com tanta coisa que pensamos saber gostar? Falamos de prazer de receber e não de prazer de fazer. Talvez o amor seja qualquer coisa parecida com isso. Do género: ela gosta mesmo dele ou do que ela gosta é da maneira como ele gosta dela? Ou, eu gostava tanto de ir viver para o campo mas será que é mesmo isso ou apenas preciso de umas férias longas no campo? É aquela linha ténue entre a fantasia e a realidade, ou a expectativa e a constatação. 

Então, arrumou as perguntas. Que não serviam para nada. Cronicamente distantes da verdadeira necessidade do momento, crónicas de verdades que nem a si lhe interessavam e que não lhe esclareciam momento algum. E lá na nota do topo, a última da escala que essa melodia alcançava, baloiçou, pendeu e...vertiginosamente, desceu para calmarias menos fervorosas. É assim uma epilogia. Encostada na contra capa. E depois vem a parte em que mais serenamente se embeiçam as duas contra correntes, delicadamente convergentes e ausentes, tudo na mesma camada cutânea feminina de uma folha branca. 

E se brinca de balões e gelados de cone. 
Mas e há sempre um mas. Saber que tudo isso é enrolar e pastilhar. Que sorriso malandro é de outro plano. O fato de palhaço ou a pomba do mágico. Saber tudo cansa ainda mais do que não saber nada. E que tudo assim bem fragmentado e espalhado na cabeça tem mais jeito, aquele do indivíduo que só está perdido mas ainda está em movimento. Que se move em estilhaços atirados para todos os lados. Crescendo a probabilidade de acertar no alvo. E é nessa viagem entre a mão e o ponto ao centro, que está o engodo e o desafio. E então já sabes se gostas afinal ou não? Penso que a resposta é de um tédio profundo.  
Porque nada do que se passa à nossa volta merece nem o nosso sofrimento nem a nossa morte...a vida deve ser tomada como uma vingança. E estas palavras nem eram suas, foram-lhe dedicadas muitos anos antes de as compreender. E aos poucos, de dia para dia, a sua força retomava o lugar de sempre. Ficando para trás a culpa, a tristeza e todas as lágrimas que já não faziam mais sentido. E crescia uma vontade de começo, de construir, de procurar pelo caminho, acreditando haver ainda um. Nada nos prende a lugar de ausência de nós. A coragem. Em falta não leva a lugar algum. Mas a coragem sem a esperança é um tiro no escuro ou na própria cabeça. Porque da esperança nasce a vontade organizada. É o peito, este peito que às vezes parece saltar de dentro das vértebras. Vértebras? Teremos o coração afinal entre as pernas? Que noite fresca para se caminhar, exclamou. Enquanto ando o pensamento desenrola-se como se passadeira fosse abrindo um novo horizonte. Amanhã apetecia-me ficar na cama e cagar-me para esta merda toda. Porém, a vida não se vive na cama. Pelo menos não a tempo inteiro. Novo ataque de riso. Fenómeno que ultimamente lhe era familiar, chegando muitas vezes com momentos retidos de situações minimamente ridículas e completamente loucas. Estarei a enlouquecer? É agora que vou queimar o último fusível? Antes rir que chorar. 

É no surrealismo que finalmente se consegue a distância necessária para apagar de todo a neurose. Andamos naquele remoinho de vai e vem, ruminando picando os miolos para quê? Não há de todo um nível de compreensão possível. Acontece e pronto. Aconteceu e foi. E depois, em frente. E depois, qualquer coisa. Sinto que faço a espargata de cada vez que tento ser. Porém a fome é igual: a pressão para tentar. E não deve tratar-se de incapacidade ou estupidez. Antes, um empurrar à força para aquilo que não é. Se eu fosse teu terapeuta dizia-te: mata-te ou vinga-te! 
Apetecia-lhe fumar na cama. Mas se ele voltasse não ia gostar. O scenário tinha apenas odor, de livro empoeirado. Ai que a minha frase é mais longa que a tua, terminas sempre sem doçura. Uma polca onde se desenrola uma história entre uma porca cor-de-rosa e um ouriço piolhoso. Ainda não te tinhas lembrado disso pois não? Ela virou a página e parou de ler levantando o olhar. Estava assim a começar. Chegando de uma vontade miudinha não satisfeita. 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Vamos
virar tudo ao contrário
fazer de conta
E que olhando para trás
nada nos arrepende
E que até o tempo
foi e só sinceramente

Trauseuntes. Prodigiosos.
E completamente odiosos.

Que
tudo isso não foi em glória
na amargura do afinal ou se

Sabes,
que nem todos os dias
somos verdades

Mas
que como milagres
acontecemos
de vez em quando
ser encontro



domingo, 3 de novembro de 2013

Não é preciso viver mais nada para que tudo se transforme em poesia.

Guardo-Te no bolso

Calma, calma ...calma..que as bolachas não se fazem mais depressa porque estamos com pressa..shiuuu..nada disso...ele sentou-se e olhou para dentro do forno ao fundo da cozinha. Há quanto tempo que não se encontrava para dentro? Numa corrida desenfreada para empurrar a baixo do tapete o que lhe remexia como um foguete de impaz. Meramente um acaso ter-se cruzado com ela nessa tarde. 

Quando cruzou os olhos numa montra e ela olhava um vestido de cetim azul petróleo. Deixou-se ficar cuidando não ser visto. Como era delicada, as mãos pálidas acariciavam o tecido lembrando-lhe momentos adormecidos quando despidos ela lhe dizia estar ardendo..assim quietinha? Assim mesmo. Descalçando-se para não acordar as cegonhas, entrou na loja e chegou-se às suas costas. Abrindo os braços, fundiu-se nela. A cada gesto seu, o mesmo. Como era intenso esse azul que lhe cobria o corpo frente ao espelho. E por dentro do ouvido falou-lhe: és linda! Ela sorriu mesmo sem ouvir, encantada de si procurou pelo par de sapatos que melhor combinariam. Aqueles, quero aqueles na prateleira de cima. E a mesmo melodia que há tantos dias murmurava dançava baloiçando a aba do vestido. 


Vamos? Não tens frio assim vestida?
O sol caía escorregando nas pedras da calçada o dia. Hoje a noite é de quem souber escolher as palavras. Debruçaram-se, a cidade tal pinheiro de natal, piscando galáxia de candeeiros ou ponteiros de momento. Quero provar da tua boca a que sabe isso do amor num beijo lento, vagarosamente discreto. 

Então saindo de dentro dela, esses berlindes rolando, coração a dentro, se fosses removendo esse pouco que em mim teme sermos assim. E na sua frente apareceu deixando-se ver. Os meus olhos nunca esqueceram. Ainda trazes estrelas no bolso. 

E a mesma melodia rodando a alavanca da caixa de música. De bicicleta passa o amola tesouros. Dá-me uma moeda depressa! Lima afia-me a alma. Agora estamos prontos. 

No forno tudo queimou, por distracção que o tempo avançou. Tudo se foi como se cru não pudesse mais co-existir no paralelismo que vontades contrárias escreveram. Guarda todas essas palavras de raiva. Chamuscadas essas bolachas são a prova de termos levado tempo demais. E que triste que é constatar isso mesmo. Correu à mesma rua, de volta à mesma montra e no lugar dela, uma boneca coberta com o mesmo vestido de cetim azul petróleo. Não há mais lágrimas dentro de mim, exclamou gritando: eu quero que todas as cegonhas levantem voo! Desfazendo-se envidrado, rolando transparente, como basuca ausente. Deixou-se cair pela rua, chegando aos pés de uns sapatos brancos. Ela tropeçou nele. Baixando-se, trouxe aos olhos três berlindes de laivos azuis e verdes. Recordou-lhe a infância, o jogo do buraco. Guardou-os no bolso para mais tarde. 

E na cozinha amassando a massa de manteiga, buscando o lenço ao bolso, cai um berlinde. Indo ao forno, as bolachas crescendo e numa delas...te recordas da princesa ervilha? Como podia esquecer, foi a primeira história que contamos à nossa filha.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

...Porque aqui não há tempo nem para saber como se chama o filho do colega de secretária, porque não há tempo para tomar um café para apreciar a paisagem, porque não há paisagem...e não haveria tempo para aprecia-la e não há filho nenhum porque não há tempo para o amor e nem há sequer dinheiro para o café.
 Como é viver assim uma vida inteira? Não faço intenções de descobrir, não quero viver vida nenhuma que se aproxime sequer desta. São 14 anos. De uma capital que se foi perdendo nos braços do capitalismo infernal, das empresas, das grandes superfícies, dos centros comerciais, do trânsito desesperante e da hiperlotação populacional. Como era Lisboa antes de tudo isto? Como era eu antes de tudo isto? Como era no início passear de taxi como se fosse Nova Iorque ou Paris, onde não se dormia e tudo nos consumia de novidade, ao virar de cada esquina uma oportunidade, de algum futuro encantado. Já não se fala de encanto e muito menos de futuro. Não podia estar mais longe de tudo isso. 

A hora mágica é o momento em que coloco a chave na porta de casa. 
E lá fora fica toda essa mixórdia de poluição tóxica. Eram outros tempos com certeza, aqueles que encantavam o poeta. A baixa hoje é um antro de consumo e da alma, nem o perfume, a graça ainda se vai aguentando com alguma vegetação pitoresca, o castelo só turismo, em alfama o fado já não pia e de resto, tudo é periferia. Eu pagava para sair daqui, se tivesse como. Posso sempre colocar tudo isto para trás das costas e empacotar-me mais os animais e ir na boleia de qualquer nada. Não será preciso procurar muito. Deixar-te. De vez. Pela última vez. Dizem para não voltarmos ao lugar onde já fomos felizes, eu já devia ter ido há muito tempo, só assim teria preservado a tua beleza. Não fui, envelheci-te, consumi-te, desgastei-te...matei-te. Porque talvez tu tenhas sido sempre assim e só agora os meus olhos conseguem ver-te. Tirei as lentes da fantasia e a realidade é o que é. 

Já não és nem menina nem moça. Envelheceste por dentro, entre paredes que se descascam de podridão e que alguém pinta e retoca para enganar a multidão. Já não és nem nunca foste minha. Hoje mais do que nunca, sou estrangeira. E quero o meu bilhete de partida, antes que seja tarde demais. Antes que apodreça contigo emparedada e angariada pelo tempo em que não fiz nada para não o ser. Já não adianta rezar nem chorar mais. É ir e pronto, sem olhar pelo ombro, para trás. Porque só na distância dos quilômetros e dos segundos, é que voltaremos a estar apaixonadas. Agora não. Agora estamos exaustas uma da outra. Tudo fizemos para sermos felizes juntas e se não resultou é porque não era mesmo para ser assim. O meu Alentejo, fiel amante ainda me espera. E lá tem muito espaço e muita terra e muito tempo para se envelhecer com calma. Muita planície onde os nossos olhos se espreguiçam, muitos girassóis que ainda seguem o sol. Muita escola onde os nossos filhos podem aprender a sonhar. Muitas páginas tranquilas à espera de histórias. Muita poesia nas memórias que lá ficaram e lá nos esperam. 

Em contagem decrescente, o único alento que me mantém acordada. Desta partida nunca antes tão desejada. E com toda a minha convicção, dar um passo nessa direcção. Dizer-te adeus é a última coisa que posso fazer por nós. 

sábado, 26 de outubro de 2013

Conversa simples com Ele



Gostava de falar um pouco
Contigo

Saber se andas por aí
quando olho para cima
Se num raio de sol
ou numa cortina de nuvem
Num trovão imponente
ou numa gota de chuva

Sabes que por aqui
uma grande confusão
Os Homens não sabem
e andam na direcção
dos dias da escuridão

Não creio que haja
solução

Comigo
Não sei do que digo
Ando perdido

Procuro
Por cada gesto Teu
em cada dia Meu

Quero acreditar
que ainda vale a pena
Lutar

É tudo...
Se Quiseres
Sabes onde me encontrar
Na Tua mão
Onde sempre esteve
meu coração



terça-feira, 15 de outubro de 2013

O Homem Palhaço

De entre sons de marteladas, picaretas e tábuas se alojando, escutava-se o hino num assobio intercalado com pedaços de letra..heróis do mar, nobre povo...Da janela o sol timidamente se esgueirava, hoje o dia parece estar chuvoso. Pesado, este céu cinzento. Mas dentro de si uma leveza de tranquilidade iluminava-lhe o rosto. Respirava profundamente devagar. Chegava do exterior também um odor de bifes na frigideira, louro e alho. São onze da manhã. Ao menos se...

-Bom dia! Então já arranjou alguma coisa?
-Difícil, isto está muito complicado, nunca me vi assim tão enrascado!
-A taxa de desemprego está nos píncaros! Tenho tanta pena dos jovens...
-Que se há-de fazer, é continuar...
-Vai ver que sim, esperança, é disso que precisa!

Seguiu pela rua baixo, levando na mala um molho de currículos. Cansado de horas perdidas em frente do computador decidiu procurar pessoalmente, deambulando pelas ruas em busca do tão desejado precisa-se. Andando atento deu-se conta de que teria estado demasiado tempo fechado em casa, meses talvez. As coisas tinham mudado. Muitas lojas encerradas, cafés, restaurantes. As ruas em obras davam a sensação de tudo estar desaparecido. Uma cidade fantasma, pelo menos nesta zona. E as pessoas com que se ia cruzando...tristes, pobres, pedindo, encostadas nas esquinas...nunca esteve em tamanha degradação...não serão só os meus olhos que assim vêm...Se a vida fosse uma película cinematográfica  agora...

Sentou-se numa paragem de autocarro. Sem intenção de apanhar algum, apenas para descansar as pernas. Já caminhava havia um par de horas, os pés doíam-lhe. A leveza que sentira de manhã começava a chamar pelo regresso a casa. Dentro de casa sentia-se tranquilo, apenas dentro de casa. Onde as suas coisas o protegiam da feitude do mundo exterior, da degradação, da pobreza da alma e da vida. Não havia um jardim, uma flor crescendo, uma criança correndo, um sorriso saindo. Gente, gente passando apressada, mal amanhada, pálida e cansada. O horizonte já não existe mais aqui...Talvez seja hora de partir...E os seus olhos preferiam agora contemplar sarjetas, passeios, cães vadios. Tudo isso era normal, excepto o resto. 
No conforto do esperado, repousando a atenção num contentor, um homem aproximou-se. Observou-o. Remexia procurando no lixo, talvez comida, talvez coisas objectos úteis. Quando conseguiu ver-lhe o rosto, inspirou de susto. Porque a sua cara era estranhíssima. Era a cara de um palhaço! Sem pintura, sem nariz vermelho, sem vestígios de circo ou de sorriso esgarrado. Um palhaço, ali mesmo, remexendo no lixo. E a vizinha falava de esperança...Era mesmo um palhaço, a fisionomia do rosto, o cabelo, o próprio nariz...até os sapatos por sugestão de tudo o resto lhe pareceram ligeiramente grandes e arredondados na biqueira. Provavelmente são grandes porque os encontrou...Então uma ideia tomou-lhe de imediato o pensamento...vou segui-lo. 

Esperou que o homem terminasse e a uns metros de distância começou a segui-lo. Devagar lá ia ele andando, com os pés um pouco angulados, como se patinhasse pela rua. Coçava o rabo, coçava a cabeça mas ia a direito. Bêbedo não está...Ao curvar da rua deteve-se um pouco para não ser descoberto na sua perseguição. O outro era bem mais lento e ia carregado com dois sacos de plástico com o que pareciam ripas de madeira. O homem seguiu por uma rua mais estreita que logo dava a outra e a outra, saindo da zona, para uma mais periférica da cidade. Acho que nunca estive aqui...Pequenos pátios, casas sem passeios que se revelavam por ruas estreitas, tão estreitas que talvez os carros tivessem dificuldade em passar. Afunilando, bifurcando, perguntava-se aonde iria ele. E parou na porta de uma padaria discreta despercebida denunciada apenas pelo odor de pão acabado de fazer. Como é que será que alguém sobrevive aqui tão escondido? 
Viu ele a entrar, esperou e viu ele a sair com um outro saco transparente carregando papo-secos. Passou então por um jardim, com árvores pequenas, laranjeiras jovens, como aquelas que na sua rua de infância vieram substituir árvores centenárias sabe-se lá porquê. Havia também algumas mesas de ferro com cadeiras pregadas ao chão. Havia um bebedouro e o homem encheu uma garrafa. Do outro lado do jardim, estava uma casita que não devia ter mais de quatro metros quadrados, parecia uma casota de cão, de cimento e telhado, sem janela, com uma porta de madeira semi aberta. Será que mora aqui? Lembrou-lhe também os jardins de outros tempos, havia sempre um lago com cisnes e umas casinhas pequeninas onde recolhiam os bichos durante a noite. Nesses jardins, moravam sempre, os guardas dos jardins, numas outras casitas, não muito maiores que estas. 

O homem entrou. Atrás de uma árvore que não o escondia totalmente, creu que até aí o outro não tinha dado por si e aguardou. Mas o tempo passou, não escutava nada e o homem não saía de lá. Será que adormeceu? Aproximou-se muito zeloso da porta e procurou escutar. Nada. Nem uma respiração. Empurrou a porta que mal dava para ser totalmente aberta. Ninguém! Não havia rigorosamente nada lá dentro. Excepto um alçapão de madeira no chão, atrás da porta. Como tinha uma argola de ferro, puxou-a abrindo-se uma escadaria que desaparecia na escuridão por ali abaixo. Nada se escutava de lá. Então foi por aqui que ele foi...não sei que faça..pode ser perigoso...Perseguir alguém de dia pelas ruas não lhe parecera nada de extraordinário, mas agora, as coisas tomavam outro rumo, não sabia o que o esperava lá em baixo. E sozinho temeu. Do bolso retirou o telefone que tinha uma aplicação de lanterna. Conseguiu então perceber os contornos do caminho e dos degraus, mas em curva, pouco mais se via à frente...este palhaço anda às voltas...E desceu, um pouco mais seguro pela precária iluminação. 
Era húmido o caminho. Lembrou-se do seu pânico de animais, ratos e ratazanas, morcegos, sabe-se lá o que anda por aqui...Talvez seja uma passagem do tempo da guerra, já me tinham falado disto...Sabia que estava a descer em caracol. E desceu até encontrar uma sala com várias saídas. Bonito..agora por qual terá ido ele? Em silêncio tentou escutar um sinal do homem. Deitou-se e encostou o ouvido ao chão em cada uma das saídas. 

Quatro caminhos possíveis, se errasse não só estaria igualmente perdido, como tudo isto teria sido em vão. Mas na terceira saída, havia algo de diferente, não sonoramente. Quando se chegou ao chão percebeu pegadas parciais na viscosidade que o tinha acompanhado nos pés todo o tempo. Foi por aqui...E por lá seguiu. Agora o caminho era mais amplo e horizontal. Realmente pareciam esgotos, porque se começava a escutar água correndo ao longe, por entre as paredes. Sempre tive curiosidade em saber o que se escondia debaixo dos nossos pés...É provável que o homem viva mesmo aqui em baixo...O corredor dava agora para vários compartimentos ao longo, entradas para lugares vazios, mas numa delas, havia coisas. Tralha arrumada a um canto e uma cama de cobertores no chão. Devagar entrou não havendo sinal do homem, nem de nenhum outro. Um bafio de meias usadas e reusadas invadiu-lhe as narinas. Saiu e continuou. Nada havia ali que lhe desse pistas da vida de alguma coisa concreta, porque em nada diferenciava a cama improvisada dos mesmos mendigos de rua lá em cima. Mas na porta mais à frente, havia movimento. De fora, escondido, procurou perceber o que se passava. Ouviu sacos sendo mexidos, depois um barulho de alguma coisa a partir-se e finalmente marteladas. 

Era ele. Eram as ripas de madeira. De dentro do compartimento saía uma luz trémula de uma vela. Se fosse descoberto...e se o homem palhaço tiver um desequilíbrio? E se ele for perigoso? Um palhaço assassino! Procurou desenvencilhar-se destas ideias que neste momento não ajudavam ao batimento cardíaco que já ia mais que acelerado. Espreitou e sentado no chão, construindo qualquer coisa, estava ele de costas. Sentou-se também no escuro a observar. Enérgico, o homem atarracado estava absolutamente concentrado na tarefa. De início não se percebia o que era. Era apenas ainda uma base não muito grande. Depois parecia que estava a dar-lhe paredes, uma caixa talvez. Algum tempo passou e o homem finalmente levantou-se deixando ver na íntegra o objecto. Era...não..não pode ser, para que é que ele quer isto...uma caixa que baloiça? Então o homem foi buscar uma manta azul encardida e dobrou-a na caixa...um berço? 

Nesse momento o seu coração disparou, recuou e pensou que era hora de regressar. Porque esta história estava definitivamente a sair da estranheza para algo perigoso. Um mendigo solitário a construir um berço num esgoto no fim do mundo. Não se escutava choro nenhum de criança e mais ninguém parecia estar por ali. Sentiu o homem a caminhar e correu para se esconder mais no fundo do corredor. O outro virou na direcção oposta levando no braço o que parecia ser a manta, como se fosse a carregar uma criança. Mas se não vira criança nenhuma...Continuou a segui-lo. E uns passos à frente ouviu: chorar. Choro de bebé pequeno. O homem parou e embalando o embrulho no colo começou a assobiar...sim reconhecia essa melodia..música de circo, de malabarismos e...palhaços. E a criança calou-se. O homem continuou e foi desemborcar numas outras escadas que desta vez subiam. Viu-o abrir um outro alçapão. Aguardou um pouco e também ele passou para o exterior. Estava novamente na cidade. Desta vez reconhecia em redor. Estava nas traseiras da estação de comboios...não me tinha apercebido de ter andado tanto...pelas minhas contas estava bem longe da estação...Em volta, procurou pelo homem. Havia muita gente que passava. Umas entrando na estação, outras seguindo. Do homem nem sinal. Desespero! Depois de tudo, perdera-o. Entrou na estação, procurou junto dos comboios, nas bilheteiras, nas casas de banho, no exterior, nas paragens de autocarro, nos cafés...nada. Que desalento...

Nos dias que se seguiram procurou em jornais e noticiários por raptos de crianças de colo na cidade. Esperava encontrar algum sentido na história que tinha seguido. Voltou ao contentor onde tinha visto o homem pela primeira vez, à mesma hora durante todos os dias da semana que se seguiu. Procurou fazer o mesmo caminho que dava ao jardim e por mais voltas que desse para a frente, para a esquerda, para a direita, as ruas pareciam todas iguais, baralhando-se num mapa que parecia alterar-se à sua passagem. Não o encontrou. Nem sequer conseguiu dar com a padaria. Chegou a ponderar ter sonhado acordado, uma espécie de surto ou delírio. Foi passando o assunto a secundário e outros do seu quotidiano empurrando-o para o esquecimento. Chegou numa última tentativa a pesquisar na biblioteca municipal por mapas de esgotos e antigas passagens de guerra. Mas nada de concreto encontrou. 

Estávamos no Inverno. Dois meses depois do encontro com o Homem Palhaço.
Dez da noite. Terminara finalmente o dia exaustivo de telefonemas comerciais. Doía-lhe tudo. Oito horas do seu dia perdidas naquela rotina, numa sala fechada, onde dezenas de outros operadores faziam o mesmo. Os dias eram de facto, todos, infernalmente iguais. Caminhando para casa, apressado porque a zona cada vez estava mais violenta e os assaltos àquela hora eram frequentes, escutou do nada, um assobio...o assobio da melodia do circo. Parou e olhou em volta. Estava naquela mesma rua do contentor. E de volta do mesmo contentor, estava o homem. O homem remexia em roupas que estavam abandonadas num caixote. Roupas de criança!  E agora? Vou falar com ele? A rua está deserta...E se chamasse a polícia e contasse tudo...provavelmente não chegariam a tempo ou não acreditariam em mim ou seria tudo um miserável engano e...E o homem virou-se e fitou-o. Estava poucos metros à sua frente a olhar para si, olhos nos olhos. 

As suas pernas tremeram. Procurou desviar o olhar e na sua mochila fingir que estava à procura de qualquer coisa. Na verdade estava, do seu canivete, um minúsculo canivete suíço que quando muito lhe serviria para cortar as unhas do outro. Conseguiu abri-lo e entalá-lo nos dedos da mão, disponível para sua defesa. Quando recuperou o homem no olhar, ele estava na sua frente. Tudo isto em escassos segundos de terror.  Balbuciou um ridículo berro rouco. E o homem tocou-lhe na mão. Sem reacção, paralisou. 
-Sei que me seguiste há uns tempos atrás.
-Eu..ah...
-Não tenhas medo. Não faço mal a ninguém. Respira - e sorriu, e esse sorriso pareceu-lhe mais macabro do que nunca, só lhe vinham à cabeça histórias de palhaços assassinos e até aqueles bonecos aterradores que matavam criancinhas - Eu conto tudo. 
- Não..ah..não é preciso, eu estou com pressa...peço..desculpa - e tentou desembaraçar-se da mão pesada do homem.
- Se vieres comigo, eu explico-te tudo - largando enfim o braço dele - anda. E começou a caminhar dando-lhe as costas com confiança. 

Não sabe porque não aproveitou o momento para correr desenfreadamente na direcção contrária. Em vez disso, caminhou atrás dele ainda desorientado. Não tinha a certeza de se ter urinado pelas pernas abaixo. 
- Mas..onde vamos?
-Não muito longe daqui. Vens?
E fez-lhe sinal para se colocar a seu lado. Com o ar mais descontraído do mundo, andando devagar com o olhar caído. Havia tristeza profunda nele e isso começou a tranquiliza-lo. Talvez tudo isto tenha uma explicação lógica...

O caminho foi então familiar. Mas antes de chegarem ao jardim o homem passou por um pátio que dava para um pedaço de terreno abandonado. E lá estava ele. O cemitério do que fora em tempos, um circo. Pedaços de lona riscada caída, cartazes com caras de palhaços desbotados e uma caravana que...parecia ter sobrevivido a um incêndio...

-Foi aqui. Que elas...naquela noite..eu tinha ido reunir-me com o resto da trupe num bar lá em baixo na avenida. Estávamos no auge das nossas vidas...toda a gente ia ao circo...éramos amados e aplaudidos, havia artistas de todo o mundo aqui e viajávamos por onde queríamos. Éramos tão felizes...Sabes que os palhaços nunca choram? - e riu-se - a minha bebé ainda nem andava...e já tinha um minúsculo narizinho vermelho. Lizzi. A palhacinha Lizzi. Aurora, era o nome da minha mulher. Era uma acrobata lindíssima, quando ela voava pelos céus do trapézio o meu coração...e tudo naquela noite, ardeu...
- Mas...eu escutei naquele dia um choro...- e começou a chorar desalmadamente - que história triste...tudo é tão triste..não há esperança de nada...que desespero...
- Quem disse? Vem comigo...

Caminharam até ao jardim. Na mesma casita lá estava o alçapão. 
-Confia em mim..os palhaços são todos boas pessoas.. - e começou a assobiar aquela melodia.
Descendo e percorrendo corredores, chegaram ao compartimento. Acendeu a vela. E lá deitada no berço estava realmente, uma criança dormindo com um pequeníssimo nariz vermelho.
-Quem é? - arriscou a perguntar...
-Lizzi, a palhacinha. Não vês que é ela? Oh minha pequenina...vem ao colinho. 
A criança abriu os olhos e choramingou. Depois acomodada nos braços do homem voltou a fechar os olhos. Tocou-lhe para que as suas mãos sentissem que era real. 
-Mas o incêndio..tu disseste que...e o tempo que passou..ela teria crescido...não entendo...
-Não entendes? Porque os teus olhos não têm esperança...Toma - e da sua mão abriu-se um nariz de palhaço vermelho - põe no teu nariz. 

Iria entrar dentro do delírio do homem quando muito para não o irritar, havia ainda em si a leve desconfiança de que irritado poderia ser perigoso. Levou o nariz vermelho ao seu nariz e encaixou-o. Piscou os olhos porque lhe fazia impressão nas pestanas e quando levantou a cabeça, na sua frente estava...

-Eu?  - deu um salto para trás.
-Quando foi que te mataste? Lembras-te? 
-Eu..não..não..eu estou bem vivo..vivo - e desatou a correr aos gritos pelo corredor no caminho de volta. Abriu o alçapão e correu mesmo sem saber para onde, correu até conseguir reconhecer a sua própria rua, a sua própria casa. Fechou a porta trancando-a correu ao espelho. De olhos esbugalhados, lá estava ele, um nariz de palhaço, preso, incorporado no seu rosto. Incapaz de o remover, com todas as suas forças, tentou até a pele sangrar em redor. Não, nada disto é real..não pode ser..eu..um palhaço? Porquê? 

Em desespero deixou-se cair sobre a cama olhando o tecto...e dos seus lábios, da sua boca, escutou-se então a melodia..do circo.










sábado, 12 de outubro de 2013

KFC do SEXO

Take-Away: lingeries, brinquedos
lubrificantes, aos melhores preços
Uma galinha
potenciador debaixo da língua
cápsulas e cremes, suplementos
Hard, Vigor, Xpower, DuraMais
lá pelo Japão, sexless marriages
gado de desenvolvimento técnico
calculismo do cérebro de superfície
conveniência e companhia, Hentai
Herbívoros! Império sem sentidos!
Rajeracac
escultural e atrevida, massagista meiga
rabuda, escaldante, princesa, estudante
A duas patas, pela rua depenando
foge da alçada da panela e do testo
globalizando sem compromisso
virgens, adolescentes ou mestres
espectadores, clientes, navegantes
caixa, casa, montra, página
controverso, lucrativo, prazeroso
produtores, sexólogos... religião
dependência, carência...curiosidade
a base da pirâmide de Maslow
linha ténue, abuso ou satisfação

Chew and Swallow..e as penas?










quinta-feira, 10 de outubro de 2013

No Inter-Espaço

É no inter-espaço que se verdadeiramente é
na ínfima fronteira entre cada uma das células
no gesto em slow motion aquase em grau zero
no momento em que nos abandonamos ao sono
mesmo antes de nele cair, no silêncio absoluto
quando nenhuma voz de dentro sair, o cérebro
e o corpo, em total repouso, liberto das coisas
das ideias das forças, dos medos, dos sonhos
é precisamente nesse espaço, que somos...

E que enquanto da nossa sobrevivência
estivermos ocupados, sufocados, morfinados
e o espaço se sobrepor e alastrar por zonas
ditas musculares e ossais, capilares e unhais
e ditados orientados pelo tecto pelo estômago
e o valor de troca for o desespero...números!
Incontáveis micro, nano, pico...peões do sistema
Já se sabe, a esfera não é perfeita, e o vácuo...
a maior arma que na mão errada, na pressão
no limite, na sobredosagem, no abuso intruso
que se esgota! que se explode! que se evade!

E que tudo isto é verdade, já se sabe...
E que tudo isto é desastre, já se sabe...
E que tudo isto é o oposto do suposto
Guerras de Espaços, de Vida e Morte
Era de Vácuos Mecânica Sorte...






terça-feira, 8 de outubro de 2013

Tenho frio nos pés...porque o tempo arrefeceu
tochas penduradas dizendo...aquece-me a alma
conversas interrompidas que alguém emana
espantosas palavras que alguém da boca perdeu

Tenho cortes nos dedos...sensuais e amenos
manuseados por objectos de emoção afiados
fechando gavetas, retratos atravessam gretas
amante em pedaços, de impotência a braços

Passemos ao teatro, camarotes virtuais fóbicos
colocando binóculos que trespassam o pano
de inócua máscara o rosto, a cidade que demora
na última hora, a invisível palma batida morta

A grande vala, cavalheiros e senhoras de pressas
explicando-se uma nova era, de má-fé, de mau pé
que avança ao fundo...ecoando obsceno o futuro
o sonho de perfurar o poço, a cegueira, o tesouro

Brusco, o operário do afecto se atira do prédio
vertigem sobre-humana, uma alegria espantosa
de dizer Basta! No degrau final da decadência
a liberdade que desembrulha, em ascendência

E tudo retoma a rotina da natural volta do sono
em toda a parte, pés se esfregam um no outro
roubando um pouco à miséria
do pássaro de fogo

Tenho fio nos pés



domingo, 6 de outubro de 2013

the only One

7 soul
barcos na escuridão
de efeito borboleta, uma célula de sonho

11 boats
da lama se remove uma semente
e se escolhe ser gente

eleva me pois

e depois e depois
all in 1

Caíste?
E ela bateu com a onda.

Queres ver que não se encontra
um dó li tás...

7 soul
dos dedos escorregam areias silêncio
castelos levedantes, momentos de tédio

11 boats
e tudo se reduz a pó, que a terra engoliu
já viu? que o que foi é pedaço vazio

encanta me pois

e depois e depois
all in 1

fadas, flores e jardins
channel nº5

engole, é apenas um verso sem Sol
do poema inteiro que alguém...

contou só pra você



terça-feira, 1 de outubro de 2013

O ajudante de cozinha virtual

Doíam-lhe as costas
Não de se vergar por mais 
senão por si próprio 
Na cabeça um repouso 
posto depois de trabalho
assente no fazer das coisas
Soube-lhe bem o descanso
depois de meses de ócio
Umas férias de si mesmo
que começavam no relógio
- 5 cm, o abacaxi
seis pedaços, o frango
três fatias, os queijos
assim..perto do perfeito! 
assim.. nos diz o manual
para que tudo seja igual..
Deu-lhe vontade de rir
da receita, da bíblia, 
da repetição...
das estruturas
absolutas 
dos esquemas
e anexos e tabelas
e contagens
sucessivas..

Ironias..
Bruscamente atirado 
de uma rotina sem qualquer plano

E no final do dia, o corpo gemia
dando finalmente... descanso 
silenciando-se a mente..
E amanhã será diferente
e depois de amanhã...idêntico 
E assim alternando
se vai, despertando
numa cozinha virtual
de mecânicos passos
...abrindo espaços
...ao universal




segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O logar

Em 1927
o Logar estava na espera de ser ocupado
por todo e qualquer ser desenfreado
ávido de carácter de conquista
de uma mente, eleita, perene...

No prefácio a nota editorial
é substituida pela mão de Marden,
editado pós O Sucesso pela Vontade
onde se lê: sacudir jovens que se estiolam
sem um ideal..

No outro dia..
-Então mas o Comunismo também é
uma religião..Marx estava errado?
-Todo o ideal o é porque pressupõe
uma fé..

Aspirações adormecidas...
tal como participações políticas
assutadoras abstenções...
a idade dos que chegam ao voto
já nem lhes permite discernimento
e acompanhamento, só de atestado
bem bem,
- os jovens devem vir à tarde..
sim sim...menos de metade!

De se reter:
-incutir alento
-novos estímulos
-maiores resoluções
-abrir caminho à vida
-um propósito decidido

"Não há nada que estimule mais um jovem resoluto
cheio de vida e de energia
do que as anecdotas biographicas
de homens que se distinguiram pelos seus feitos...
A Juventude exclama Vida! Mais Vida!...
que os fracassos e os tropeções
para o débil e vacilante
são pretextos e victorias para o forte e o decidido"




sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A escrever...

As duas velhas à janela. Cada uma no seu andar, uma por cima da outra. Quase que se consegue imaginar a de cima a babar-se para a debaixo. Talvez não seja imaginação. É o que nos espera no fim da vida, estar à janela, numa cidade grande. Podia ser à porta, sentadinhas lado a lado, conversando sem torcicolos, mas não, aqui a porta do prédio é pública, dá para passeios ocupados por carros estacionados e cagadas de cão. A vista é apenas o outro lado, um outro prédio, onde por azar, no caso destas duas velhas, não moram outras duas velhas para conversarem frente a frente. E talvez o grau de surdez não o permita mais, nem para a frente, nem para baixo ou para cima. Assim se olham apenas, a de cima mais que a debaixo. São as pessoas que passam o entretém do último sentido da vida, o olhar, isto se também este estiver em condições de alguma distinção. 

E às vezes, quando alguém passa e olha para cima e sorri, as velhas recolhem-se tímidas mas regressam com ar desconfiado. E se a mesma pessoa tomar por hábito o sorriso diário, depois de algum tempo, elas sorriem também. E mais algum tempo e até se conseguem ouvir algumas frases típicas de velhas "é a vida..lindo cãozinho, também tive um durante vinte anos..andamos sempre carregados e não levamos nada.." E se por acaso essa pessoa tiver disponibilidade de parar para dar mais conversa, ouvindo o que têm para contar, mesmo que seja a mesma história repetida e repetida...essa pessoa está a cometer um milagre, numa cidade, grande. 

E assim se tornam vizinhas, as vizinhas velhinhas, que à janela nos esperam todos os dias com mimos e sorrisos, em troca de outros mimos e outros sorrisos. 

Mas antes de tudo isto, estavam duas velhas à janela, uma por cima da outra...

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Ai, não diga isso...

-Estava a ressacar de ti. O vinho está azedo.
-Deixa-me provar. Não, parece normal.
-Ah, deve ser de ter lavado os dentes antes.
-Lavaste os dentes antes de comer?
- Sim, para não contaminar com restos de comida.
-De ontem? Isso é que foi um banquete!
-Sim, mas não havia nenhum como tu..




L.

Nuvens. Laranja.
Planos de rasgos atiçados ao longe
ninguém as desenha como estradas
Se elas fossem caminhos de gomos
e nós doces como ser sem caroço
E os prédios definhados 
o gosto que contrasta e nos afasta
com orifícios respiratórios 
que dão directamente 
para a frente de outros 
Tem qualquer coisa de acolhimento
tipo compartimento galinheiro
onde chegamos, nos arrumamos 
e por lá ficamos. Sem gema no Ovo. 
Como o cubo mágico
movendo, trocando
acertar as peças, homogéneo
Idêntico lado a lado
Perfazendo assim um quadrado. 
Tudo, perfeitamente, encaixado.
Tudo, Laranja. 
Pelo menos
do lado de fora. 



Preguiça


Será que consigo escrever deitada?
Ou a tinta se recolhe na direcção oposta
e a caneta de pernas ao contrário
não escreve?
Serei eu que estou de pé
e tudo o resto está horizontal?
Não,
perpendicular, não,
o que quero é estar em sintonia terrestre,
que o corpo se alinhe
na linha do equador e descanse.

Poema Inacabado


o poema é holograma objecto
de largar tudo o que não importa
fechar portas dentro de tecto
ser projectado no lugar de nada
pelos veios do imaginário
ser tudo possível espásmico
ser tudo o que nos foge
enquanto somos elástico
do nosso ser alforge

um amor assim não se queda
não se apaga por cansaço
não desiste por obstáculo
nem se dá nem se empresta

é um estar de egoísta
um espelho contra espelho
onde no meio, se exista
e tudo o resto, lhé alheio

é feliz e triste
não neutro
onde choraste e riste
em silêncio
completo inacabado
depois de passado
eterno

por isso o poema não pode
ser humano
por ele passa atravessando
disfarçado
de corpo mente mundanos
deixando ou levando
o melhor o pior
desagregado corpóreo
de uma elevação, maior


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Até ao fim..

Havia qualquer coisa de mágico nesse observar do cair da noite através do vidro da janela da sala de aula. Pela estradita em direcção a casa seguia, já a noite caída, todos os dias. Ocasionalmente, encontrava-o. E por um pedaço de estrada, conversavam, a casa dele era próxima. E conversavam sobre o dia de escola, sobre música ou filmes. Sobre namoricos e amigos. Quando se despediam havia sempre uma parte da história que não havia para contar. Ela baixava a cabeça e seguia. Pela linha do comboio, temendo sempre algum encontro não tão desejado pela escuridão que projectava o caminho. 


E num dia de Novembro, depois do toque de saída das seis e meia, quando passava o portão da escola, ele a esperava. O pai. Deu-lhe um beijo na face, estava gelada. Vamos dar uma volta querida? Tenho algumas coisas para falar contigo, que tal se fossemos ao salão de chá? 

Sobre a mesa torradas banhadas em margarina arrefeciam. O chá opacado com o leite fumava. Olhava o rosto dele. Estava envelhecido e olheirado. Falava devagar, parecia mesmo cansado. Sim filha, estou doente. Não me resta muito mais tempo. O drama instalava-se como roupa em fúria na corda abanada de ventania. Chorou primeiro, depois falou. Pai, o que vais fazer no tempo que te resta? O pai olhou para as torradas e deu uma dentada na mais periférica do prato. Mastigou. Vou fazer o mesmo que tu fazes todos os dias, viver. Viver como se fosse o último dia. Tenho tido muitas saudades tuas. E não creio que estar doente me valha um perdão pela minha ausência. Ela encerrou as mãos na frente da boca escondendo o lábio que mordia. Onde será que esta história vai terminar? Sim, ele vai morrer, sim eu já estou a sofrer, mais ainda do que estava antes. Mas..e então, no meio de tudo isso o quê? Como ele disse, viver?

Três dias passaram. Tocou na porta do prédio. Duas vezes. Sempre duas vezes. Que neste gesto se sentia mais motivada. O pai finalmente abriu. Chegando ao quarto andar, ofegante, entrou e alguma coisa naquela casa estava já diferente do dia anterior. Números, tudo na vida são números por onde o tempo se estende e se perde. Encontrou-o sentado no sofá olhando a janela. Hoje escreveste pai. Vejo que estão novas páginas escritas no teu caderno. Posso ler? Foi encomenda da editora? Mas as frases entalavam-se atrapalhadas sem nexo pela folha. Umas por cima das outras em desespero. Vamos passear? Talvez precises de inspiração lá de fora. Ele sorriu-lhe. Sim, vamos. Gostava de ver como progrediram as obras do novo jardim da Sé. Pelas ruelas andaram toda a tarde. Conversando sobre um pouco de tudo e olhando as paredes da cidade encontrando motivos curiosos. Já viste? Nesta rua viveu a tua avó há muitos anos atrás, hoje a porta dela dá entrada para uma gelataria. E ela odiava gelados, dizia que lhe davam dor de cabeça. Tenho pensado no teu futuro. Tu tens pensado nele? No futuro? O caminho de casa para a escola era o seu mundo agora, dentro da sua cabeça tantos outros habitavam, mas no presente. Não sabia não. Sem grande pressa de se projectar numa profissão gozou na resposta, acho que gostava de ser um pouco como tu, calão, e sorriu ocorrendo-lhe que poderia ter ficado ofendido. Recordou-se do acordo, doença não será nunca desculpa para não haver honestidade. Um acordo que depressa lhe foi contaminando a revolta, apaziguando-a. Revoltar-se contra quem? Havia que aproveitar o tempo, isso sim, e de forma honesta. Tão honesta que prometeu a si mesma não ir vê-lo quando não lhe apetecesse ou se aparecesse outra coisa mais interessante, como, aquele amigo convidá-la para irem ao moinho. Sim o moinho, todas as outras já lá tinham estado e a si, ninguém convidara até à data. Que futilidade de momento bom a ser vivido.

Com o passar dos dias o estado de saúde do pai foi na verdade agravado e pouco saíam de casa. Ela leva-lhe livros que por casa andavam que a mãe insistia serem dele. Dentro de cada livro havia sempre uma carta, uma fotografia ou um bilhete de qualquer evento vivido pelos dois, ela e ele. Ela sabia que a mãe o fazia mas não comentava, era um momento apenas deles. Perguntava sempre se queria acompanha-la à visita mas a mãe respondia amargamente que não, ele que fosse visitado pela outra. De noite ouvia-a chorar no seu quarto, queria abraça-la, encoraja-la a ir mas não sabia como. Quando se aproximava do quarto dela, recuava, não era capaz, sentia que se cedesse nesse apoio também em si cairiam todos os pilares de força que lhe seguravam o personagem. Voltava para o seu quarto e por horas perdia-se em pensamentos focados no seu amigo. Ele não sabia. Não falava com ele sobre isso, com ninguém. Esse era o principal fosso entre si e os outros. 

E o Inverno chegou. Havia esperança de chegar ao Natal e em si desenhou-se a fantasia de um último Natal em família, reunidos. E todos os dias foi plantando a ideia na cabeça da mãe, apenas o seu orgulho a detinha, mas acabou por aceitar na condição de não abordarem o assunto da doença. Onde está a outra agora? Ah, pois é, descobriu-lhe a morte e pirou-se, interesseira, homens, tão fracos, umas pernas bem feitas e pronto, é o fim de vinte anos de casamento, ele que venha mas não esperes que seja amorosa minha filha. E este discurso foi amolecendo, de dia para dia, ao ponto de lhe comprar presentes, de ter enfeitado toda a casa, coisa que já não fazia há muito tempo, de ter encomendado um pinheiro verdadeiro, sim, para depois plantar no quintal, e por aí fora. Assistiu com felicidade ao renascer do espírito de comunidade numa casa que antes transpirava solidão e vazio.
E a noite da consoada chegou.

Estavam as duas à mesa. Na mesa havia um centro de azevinho sobre uma toalha vermelha. Velas e aperitivos. Toda a casa era um conto de Natal. Havia uma certa inquietude dentro de si, consultara o relógio vezes sem conta e na mãe de forma pouco disfarçada, transpirava na voltas que dava da cozinha para a sala sempre lembrando de qualquer coisa por fazer para estar tudo impecável. Mas ele não sabe que horas são? Não era melhor ires buscá-lo? Não mãe. O pai não disse que quem o trazia era o rapaz? o enfermeiro que ia passar lá em casa para ajudá-lo? É com ele que o pai vem, o rapaz até é nosso vizinho, mora algures na rua de cima. Ele se calhar nem vem..era homem para isso, era..depois de tudo..ai deixa-ma estar calada ao menos hoje... E voltava à cozinha para torrar mais pão. E a campainha tocou.

Correram as duas à porta. Era ele. Abraçou-o e a mãe atrás sorriu corando. António! Luísa, estás linda! Entra..está a ficar tudo frio..vamos para a mesa, vão lavar as mãos...o rapaz não quis entrar? Muito prática mas visivelmente feliz, a mãe trouxe para a mesa as entradas quentes. A mesa era redonda, antes na outra casa era rectangular e o pai sentava-se sempre numa das pontas e a mãe na outra. Escolhe um lugar pai, eu costumo sentar-me aqui junto da janela. O pai trazia um embrulho  que ela colocou na árvore. É pesado! O que é? Sorriu no seu melhor sorriso de garota à espera da hora de abrir os presentes. Mais logo filha..mais logo..Estava completamente decadente, as mãos tremiam nos talheres mas muito bem disposto, agradecia a tudo agradando a mãe pela cordialidade. Mesmo antes quando eram casados, ela lembrava-se de ser sempre assim. Nunca compreendeu a atitude do pai porque aos seus olhos aquele casal era feliz, pelo menos terno um com o outro. A conversa foi se desenrolando timidamente. Pairava no ar uma felicidade com termo mas sendo desfrutada com tranquilidade. Isso trazia tristeza e ao mesmo tempo, alegria. A mãe serviu o bacalhau. E depois um desfilar infindável de sobremesas. Esteve durante dias a preparar tudo, pai, e piscou-lhe o olho. Enquanto ela trazia o vinho do porto da cozinha, uma lágrima escapou-lhe no rosto. Ela deu-lhe a mão. Não chores, senão vou chorar também e a mãe vem aí e choramos todos e isto é uma desgraça colectiva..E secando a lágrima com o guardanapo esperou que a mãe regressasse e falou para as duas..obrigado por tudo isto. A mãe correu à cozinha, o açúcar esqueci-me do açúcar! Vai lá pai.. e foi. Deixou que os dois se entendessem na cozinha, sabia que tinham vontade de se abraçar pelos olhares meigos que lançaram todo o tempo durante a ceia. Levantou-se e olhou pela janela. 

Limpou o vidro com a camisola. Lá fora o céu estava negro. Olhou em redor. A praceta estava iluminada por um candeeiro que piscava. Oh, nunca mais arranjam isto. Focou melhor o olhar e pareceu-lhe ver um vulto. Sim, olhando melhor, era um homem, encasacado, de pé, olhando bem na sua direcção. Recuou. Daria para ver o interior da casa? Estaria ele a vê-la? Olhou novamente, o vulto acenou-lhe. Quem será? E não escutando nada de desagradável da cozinha, foi ao quarto, vestiu o casaco e desceu as escadas. Parou diante da porta..uma história? Nova? Mas esta estava a ser tão..sim, vou lá fora. Decidida pisou o chão molhado de humidade. Contornando o prédio encontrou a praceta. Lá estava ele. De costas agora para si. Aproximou-se devagar sem movimentos bruscos. Parou a uns centímetros dele. Entendeu a mão e ele voltou-se. Pai? Estava mais novo. Sorria. Tudo em si caiu ao chão. Mas..como é possível? O que se passa? Olhou para a janela da sala e ao lado, a janela da cozinha estava às escuras. Lá em cima. Não pai..tu estavas mesmo agora ali connosco..Não..e abraçou-o com tanta força que sentiu o casacão dele encolher e cair-lhe sobre os braços..vazio...

Correu com o casaco na mão para casa. Subiu as escadas, entrou em casa. Na cozinha, ninguém. No quarto a mãe deitada sobre a cama ao lado do pai, imóvel, de olhos fechados..vai até à sala..o teu pai deixou-te alguma coisa, está junto ao pinheiro..E deitou a sua cabeça sobre o peito dele..

O pinheiro, reluzindo e piscando tons de brancas estrelas. No topo de vários embrulhos estava o dele. Pegou e sentou-se no sofá. No seu colo foi rasgando o papel de embrulho castanho. Era um caderno pesado. Um livro, ele deixou-me um livro? O seu último livro? Até eu teria originalidade para pensar noutra coisa..em fúria atirou com ele à parede. Caiu no tapete machucado. Ele escreveu tantos livros durante a vida dele..e agora no fim..mais um livro..um só livro..um estúpido livro..é isso? 

E o caderno no tapete permaneceu por dias sem que lhe fosse dada qualquer importância. O enterro foi na capela da Sé, a mãe estava destroçada. E ela, como um bloco de gelo, impenetrável. Por dentro, doía-lhe tanto que falar parecia ser uma tarefa impossível, por isso não o fez durante alguns dias. Vieram umas tias, irmãs do pai, a que a mãe envolvida em dores, resolveu dar guarida. E elas apoiaram-na e ajudaram em tudo o que foi necessário. E arrumaram e limparam a casa. E o caderno, foi posto na prateleira do quarto da mãe. E por muitos e longos tempos, esquecido. Não tinha curiosidade em lê-lo? Não queria saber do que se tratava? Sabia que era a letra do pai porque aberto escancarado no chão naquela noite a reconhecera..mas de resto..


Quando a mãe faleceu, bem mais tarde, a idade em si era outra. Não menos doloroso mas focada nos seus próprios filhos, sentiu uma vez mais que era preciso ser forte e tratar de tudo com muita prática. Foi ela mesma que desfez a casa da mãe. E nos dias em que andou a empacotar coisas, deparou-se diante da prateleira do quarto. Lá estava o caderno. Terá a mãe lido? Não seria publicável? Sentou-se na cama com o caderno, uma vez mais, ao colo. E abriu e começou a ler. Durante um par de horas ou duas, não deu pelo tempo passar e a noite chegou. Levantou-se e foi à sala para fechar as portadas da janela. E distraidamente, espreitando para a praceta, lá estava o vulto. Era ele? Voou pelas escadas e de encontro a ele, abraçou-o. Abraçou-o e pediu-lhe perdão. Sentaram-se no único banco à luz do mesmo candeeiro.  Embalando-se no ombro dele, voltou a pedir-lhe perdão. Era o teu último desejo...e eu não..E olhando ao fundo meio turvo, outro vulto apareceu. Aproximando-se deles, caminhando pairando. Mãe! O pai levantou-se e deram as mãos, desaparecendo pela escuridão...Estava só..sentindo uma paz de encaixe eterno suave..tudo estava por fim no seu lugar. 

No quarto sobre a cama, não havia mais caderno nenhum. Procurou, vasculhou, olhou debaixo da cama e nada. Havia desaparecido. Mas dentro de si, cada palavra veio como história encadeada do princípio ao fim..todas elas, de rompante, tal e qual como ele as havia escrito..todas na sua cabeça, agora ..então...foi isso!..esta é a história. E pela primeira vez saboreou o futuro na certeza de o conhecer até ao fim.



Regresso à Vida

Aparentemente rústico, o navio atracou e as cordas alguém lançou
Numa pancada forte, ao largo encalhou, para ter tempo de escolher
de braços caídos, badalando, vinham içados desesperados outros dois
imediatos socorros, só um se pode salvar, não havia mais acordo
olha, se morrer não faz falta a ninguém, aparecem como formigas
alma danada, ponha-lhe as calças a enxugar, e uma gargalhada
depois de tanto chorar, o estoiro foi grande, embrulhando na manta
quando ia no ar, sem sentidos, pareceu-lhe escutar: ti'Joana
a caminho do S. Pedro, sempre são homens, agora ela é uma cabra
Então, o que disse o doutor?
Só se pode espreitar, precisa de repousar, não se sabe.
Cara entrapada, braços em talas, pernas esticadas, ligaduras muitas
Uma porta chiando ao abrir, desta vez tenho de admitir, se finara
toda uma vida borda fora, tirou as moedas do bolso, estendeu a mão
quero-a de volta!

Nosta Algia

Deixa que te descubra por baixo da pele
Que me sopre por um orifício 
que te chegue ao ventre
E andando por dentro
o peito encontre
Que nele me deite
Envolvendo-me na tua carne
respirando pelo teu batimento
E deixou
Cozendo a saída
Para mais tarde talvez
Talvez um dia
E perdida ficou
Por onde quer que fosse
ela estava dentro dele
Um dia em agonia, outro feliz
Sem saber bem como
Ás vezes sem sono
Fechando os olhos
viajando os dois
De momentos vividos lá longe
Onde foi tempo de se encontrarem 
Olhando o horizonte, sonhando
Foi. 
Não volta mais


terça-feira, 17 de setembro de 2013

PropagandaPorno

Vivemos na era das trevas..
Que pessimismo vai na tua cabeça!
Acho que estás a precisar de uma lavagem
propaganda política ou então ir à missa
e-learning! Isso sim é moderno
Sinceramente prefiro pornografia
Sempre dou um jeito à..
Cuidado com a língua!
Está certo, há que cuidar da imagem
Horas de serviço fora de Horas
e depois vêm com histórias
Ai temos que vestir a camisola
Armadura para cavalaria pesada!
A lâmina na mão do que comanda
Ataca na mente do que precisa
Esta luta é bizantina?
Uni-vos porra! Ai não, e as contas?
Prefiro não dar nas vistas..fora de listas
assim sempre posso escolher
a cor da dita que vencer

Vivemos na era dos porcos
com mandioca ou agri-doce
engordamos a barriga dos outros
e mordemos a língua de revolta
mas à mesa..medalha de honra!

preferes Hentai ou Hardcore?















é peixe...


Homem ao mar! E depois há que remar..
O maldito entretinha-se a contar os que não voltavam
A rapariga merecia-o, o rapaz nem por isso
A seu tempo viria a saber
Costurando o silêncio ao peito
Da cortesia de sermos aventureiros
E se retalhassemos o tempo?
Agora vou eu dar os primeiros passos
vou despir me de Deus e atirar me dos céus
quero sentir o que é ser homem, por um dia!
Olha a luz que se vai outra vez, não pagaste?
A alguém há de calhar a grande sorte
Foi à escala de outro jogo que te perdeste
o do poço!
E a canseira não se lhe dá?
Um par de meias brancas para amanhã
Deixa te lá de apalpar, o mar é todo água
descarga! o que é preciso é peixe...

o que é preciso é peixe...
o resto..Deus que explique..
quando me sentar a seu lado
como bom aparentado





quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Emprego?

E o currículo estava na pausa
por muito tempo esteve em branco
é por isso que sei, estás tramada
como um copo de vidro, transparente
de líquido cefalóide poluente, não!
que profunda invasão de escumalha
vinda de todas as bandas humanas
recusar-me a partir o muro de betão
andam os canalhas a pé coxinho
dando saltinhos fora da lei
ainda há disso? confesso, não sei
a pressão apetece-me ser ladrão
encher os pulmões de ócio
ou será que escutei ópio?
vá, vamos lá a fazer sentido
portanto, do que preciso mesmo
é de um vestido acima do joelho
assim sim: o emprego está no papo
no meu ou falamos de salário?
vejo que preciso de lata
ou talvez fazer me à estrada
foda-se
protege, minha filha, a honra
não enche barriga mas justifica
grandes mulheres ficam na linha
na linha? ou na pausa sem escolha?
repito:
que se foda esta merda toda!





quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Em teus olhos

-Quando olhas para trás e só vez destruição...
E remexia desesperadamente nas fotografias, como já havia feito durante todo o dia anterior, em busca de uma específica...
-Não devias pensar assim..ainda no outro dia li um texto lindo não me lembro de quem que dizia que importante é olhar para a frente e procurar o que ainda não foi feito.
E estavam as duas sobre a cama debruçadas numa caixa cheia de papéis antigos e onde casualmente se distinguiam fotografias. Era uma tarde calma de Novembro, as chuvas ainda não tinham chegado e as pessoas pareciam ter sossegado da histeria deprimente do regresso pós férias pelo pouco transito que se escutava da rua. O gato deitava-se sobre a confusão derramada e logo era empurrado para fora da cama. Indignado procurava uma distracção para regressar astuto à participação daquele evento tão ao seu gosto, caótico. Lambia-se e deliciava-se com o barulho das folhas que se amarrotavam ao seu peso. Pela casa pairava um odor de bafio. O pó incomodava no nariz e a impaciência de Ana começava a despertar nela uma vontade de sair daquela busca que se revelava em vão...
-Há dois dias que procuras não percebo o quê, não me queres explicar? Começo a perder a paciência. Já tenho o nariz num frenesim..se me explicasses podia ser que eu compreendesse e me sentisse mais motivada a ajudar te..
-Não posso explicar porque na verdade não sei o que procuro, há três noites atrás sonhei com a casa da minha avó..sobre a cómoda onde se costumava pentear estava um porta retratos..vazio, e eu preciso de encontrar esse retrato que não sei de quem é...
-Pareces uma louca a falar assim, se me tivesses explicado não tinha vindo contigo...Maria...é preciso avançares com a tua vida, o passado não te vai trazer nada mais do que já trouxe até aqui, tens de olhar em frente, fazer um esforço, por ti...
-Não tenho nada à minha espera no futuro, eu preciso deste retrato...
A outra olhava-a compadecendo-se, dentro de si uma gigante impotência crescia e de dia para dia assistia ao crescer da loucura da outra. Que mais podia fazer, todos os dias lhe dedicava grande parte do seu tempo livre, levava-a a passear, procurava distraí-la, dar-lhe força e ideias para se projectar no futuro, mas tal como esta busca, começava ela a estar desesperada...Pensava ser talvez o tempo de Maria ter ajuda profissional. E isso seria uma verdadeira tragédia para ela. Nunca acreditou que pudesse ser ajudada por médicos, sempre lhe ouviu dizer que os profissionais da alma e do corpo só servem para drogá-lo, anestesiando assim a vida única que cada um é suposto viver e se a sua neste momento é esta, tem de vivê-la sem o auxílio de químicos. Sabia perfeitamente todos os argumentos da amiga. A própria conversa sobre tal assunto deixava-a perturbada. 
-Talvez estejam mais caixas no sótão..vamos anda comigo...
E subiram as escadas em caracol que davam a uma porta pequena trancada. Metendo a mão ao bolso, Maria sentiu um peso que antes não estava lá, não tinha dado por ele. 
-Uma chave? Onde foste buscar isso?
-Não faço ideia, não me lembro nada de ter guardado uma chave no bolso..nem sabia que esta porta se trancava, quando a minha avó era viva, nunca vi esta porta fechada...vamos experimentar se abre..
-Começo a ficar assustada...já estamos no campo do sinistro..e esta casa começa a parecer um cenário de terror, vamos embora Maria está a ficar de noite...estou a ficar com medo..
-Não sejas tola, medo de quê? dos ratos e das aranhas..só pode..
E a chave abriu a porta. Rangendo, a luz do interior da casa desvendou uma grande sala de tecto descendente e uma janela tapada no topo direito. Retiraram o cobertor e da janela o dia mostrou então o que antes eram contornos de coisas pouco claras. Uma arca, caixas de papelão, um armário de gavetas muitas, um cesto com bonecas de porcelana zarolhas, livros cobertos de pó e algumas roupas empilhadas sobre uma secretária encostada à parede. Nessa secretária Ana viu um molho de fotografias,  aproximando-se uma particular chamou-lhe a atenção, pegou nela e trouxe-a para mais luz...
-Oh...será defeito do tempo..parece muito antiga..Vê no verso se tem alguma coisa escrita...
Lia-se numa letra corrida muito miudinha "Maria Antónia, 1932". 
-Que estranho..mas já havia fotografias nesse tempo?
-Não sejas parva..cem anos antes foi inventada a máquina fotográfica..não reconheço este nome..e o retrato desta jovem..não se parece com ninguém que eu me lembre da família..quem será? é tão estranho..já viste, não tem mesmo nada no lugar dos olhos! 
-Maria por favor, vamos descer, estou toda a tremer...não me sinto nada bem aqui..anda por favor, traz essa porcaria se quiseres mas anda.
E desceram em passo acelerado, deixando a porta lá de cima aberta. Mais depressa seguiram para a porta da saída e só do lado de fora da grande casa é que Ana conseguiu respirar menos sofregamente.
-Nunca mais me convides para estas palhaçadas, vou ter pesadelos com isto toda a noite..não me mostres mais esse retrato sinistro..Já ontem estiveste para aí sozinha..que maluquice! Ainda por cima a casa deve estar cheia de pulgas...já estou a senti-las pelas pernas a cima..
Mas Maria não escutava nada..olhava para o retrato procurando uma explicação. 
-E se fossemos ao Manuel da fotografia, deve estar ainda na loja, talvez ele nos possa explicar se isto é um fenómeno de degradação do tempo..e sobre quem é..bem talvez a minha tia Bela possa ajudar, ela tem um álbum muito antigo em casa de parentes lá para trás do sol posto..vens comigo ou tens que fazer?
A outra resignada seguiu-a. Aliviada por se ver afastada daquela casa. Antes, habitada era um lugar confortável. Muito brincaram as duas quando eram pequenas no quintal das traseiras. A avó fazia queques de amora e bebiam leite, enquanto escutavam as histórias da costureira que tinha vindo de África. Muitas tardes passaram naquele lugar e as memórias eram felizes. Mas agora abandonada, deserta, coberta de pó e teias de aranha era tudo menos agradável e só Maria a visitava de tempos a tempos. Dizia que ainda conseguia sentir a presença da avó pelos corredores e que isso lhe transmitia calma. Mais um dos devaneios que já eram característicos dos seus últimos tempos. 
O tilintar de presenças anunciou as duas visitas ao Manuel da fotografia. O único na cidade nesse ramo. E à porta aproximou-se um senhor de larga idade, de cabelo esbranquiçado e uma voz rouca. Trazia os óculos pendurados na ponta do nariz e vinha a comer uma maçã.
- Arre! Uma pessoa já nem consegue trincar uma maçã..a idade é uma grande cruz..
As duas seguiram-no depois de um cumprimento breve, o Manuel da fotografia era conhecido pela sua frieza, dizia-se que para ele as pessoas só existiam na película e a bem dizer, viveu uma vida muito solitária dedicando-se ao estudo da fotografia, um cientista curioso perdido nos confins de uma cidade do interior. Muito antes de aparecerem as fotografias a cores já ele conseguia colorir retratos com pormenores que os enchiam de vida. Teimoso e amargo, recusou-se sempre a partilhar os seus segredos e nem sequer gostava de ouvir falar em grandes progressos digitais dos dias de hoje, ainda tirava retratos com a sua velha "caixa de caça espíritos" como ele lhe chamava, umas das muitas da sua colecção de tesouros dignos de um museu. Não existiu outro fotógrafo retratista antes dele por estas bandas e por isso Maria tinha esperança deste retrato ter sido obra sua..
-Sim- olhando meio perturbado piscando muito os olhos- lembro-me deste retrato, a jovem Maria Antónia..- e atirou o retrato para as mãos de Maria como se lhe estivesse a queimar a palma - eu se fosse às meninas deixava esse assunto de lado, não têm namorados para se entreterem ou maridos já para cuidarem? Essa história deve ficar onde está..esquecida..e não sou eu que vou quebrar esse voto de silêncio..tenho muito que fazer no laboratório, vá ide à vossa vida...
- Mas Senhor Manuel, eu sonhei com isto, é muito importante eu saber, diga-me por favor, ao menos quem foi esta jovem, só lhe peço isso..
-Pergunte à sua família..a mim não - e virou as costas seguindo pela loja a dentro.
Maria ficou irritada, a sua última esperança era a tia Bela. Embora essa fosse outra velha resmungona que raramente a recebia com boa disposição. Ana sentou-se na beira do passeio em frente à porta da loja consultando o relógio. 
-São horas de jantar, queres vir jantar a minha casa Maria? Lá pensamos juntas numa forma de descobrires isso tudo, até podes lá dormir e conversamos até adormecer, como sempre fazíamos lembras-te? Vai-me saber bem a tua companhia, o João está fora há tantos dias, também me sinto só..
-Pois tu estás é com medinho do fantasma da Maria sem olhos..Ai para falar a verdade até eu estou um bocado incomodada com ele..talvez seja boa ideia..sim vamos, passamos no supermercado a buscar qualquer coisa rápida sim? quero pensar nisto..

Ao jantar comeram pizza feita no microondas e limonada de pacote, pouco conversaram porque estavam ambas pensativas.  Atiraram tudo para o lava loiças e foram para o quarto. Novamente sobre a cama, Ana olhando o tecto pensava no seu namorado embarcado há quase um mês. Custava-lhe esta vida mas era a que tinham de momento. Falava para Maria sobre isso, mas a outra não comentava. Pouco faltava para as dez quando o telefone tocou. Foi para o sofá da sala, a esta hora era sempre ele que ligava para matarem saudades e partilharem qualquer novidade do dia. Maria ficou no quarto. E à luz do candeeiro voltou a contemplar o retrato que tinha guardado na mala. Uma jovem com um chapéu de palha e uma flor na fita, vestido longo branco e cabelo aos caracóis solto pelos ombros. Meias brancas e sapatos brancos. As suas mãos estavam juntas no colo e na ausência de olhos, a sua boca transmitia uma seriedade, como se não estivesse feliz no momento da fotografia. O cenário era uma parede atrás de si, um vaso de flores à sua direita e nada mais específico do que umas sombras meio esbatidas. Era um retrato a preto e branco e nos cantos o tempo já tinha comido um ou outro pedaço acastanhando o contorno. Maria imaginou se estivessem no lugar os olhos que estariam a olhar ligeiramente para a direita devido à inclinação subtil da cabeça. O peito saliente e as ancas redondas sugeriam não se tratar de uma criança, e as meias e os sapatos de fivela redondos diziam poder ser uma jovem rapariga, as senhoras já usariam certamente saltos e o cabelo não estaria solto e sim armado dentro do chapéu. Algumas vezes Maria tinha folheado o álbum da tia Bela e tinha verificado estes pormenores nos trajes e modos desses tempos. Retratos de família, da sua família. E nenhum com estas características. Esta jovem teria idade para ser sua avó. Mas a sua avó sabia que não era por comparação a outros retratos e por pouco ou nada se parecer de fisionomia. E tanto quanto sabia, a sua avó só teve irmãos, todos homens, seis. E nestes pensamentos, os seus olhos foram ficando pesados até cair no sono. 

A escada. Estava no princípio da escada que conduzia ao sótão. A casa estava iluminada com a luz do dia e as cortinas do andar de baixo dançavam. As janelas estavam abertas e a casa arejada e perfumada. Olhou os seus pés. Tinha uns sapatos de fivela e nas pernas calçadas meias até ao joelho. As mãos tocaram o algodão suave do seu vestido. Branco e Longo. Estava a subir lentamente a escada em caracol. Brilhava de envernizada e tinha ainda a passadeira de cores vivas. Havia no seu olhar uma desfocagem meio sonâmbula, onde as imagens em seu redor pareciam mover-se desmaiando umas nas outras. Chegou ao andar de cima, junto à pequena porta, aberta. E ao olhar lá para dentro avistou um espelho redondo de pés de madeira. Aproximou-se e olhou-se. E nesse momento em sobressalto, acordou chorando. 
-Não tinha olhos, não tinha olhos! Ana! 

Ana correu da sala acudindo e tentando segura-la. Esbracejava e gritava histérica. Chamando por ela, conseguiu que se acalmasse e percebesse onde estava. Levantou-se e correu ao espelho, olhando-se em pânico. Sim, tinha olhos, podia respirar fundo. Chorou abraçada à outra. 
-Calma, já passou, foi só um pesadelo. Estas parvoíces, metemo-nos com estas parvoíces e é no que dá..não devias ter lá ido a casa..nem devias ter encontrado esse retrato macabro... 
-Ele é que chamou por mim, primeiro era um porta retratos vazio e agora isto..não entendo..a tia Bela, ela tem de me ajudar! Vamos lá agora...
-Maria, são onze da noite, a tua tia está a dormir, amanhã vamos lá de manhã sim? 
-Sim, talvez seja melhor, a tia de manhã parece estar sempre menos azeda, mas porquê? porquê a mim? 

Deitaram-se as duas de luz acesa e conversando adormeceram por fim. De manhã Maria já estava a pé antes das oito. Fazia café e cantarolava.
-Que horas são? Estás muito bem disposta...
-Sim, acordei cheia de energia. Aquilo ontem foi um disparate. Isto tudo deve ter uma explicação muito mais científica do que macabra...vais ver que a tia Bela nos vai esclarecer este assunto e fica arrumado..anda apressa-te para lá irmos..

Não passava das oito e meia e já estavam as duas na rua. De manhã tão cedo ainda nem as lojas estavam abertas. Passaram pelo mercado onde carrinhas descarregavam fruta e outras coisas frescas. Era Sábado. 

-Podemos entrar tia?
A porta estava aberta e da tia nem sinal. Se calhar havia saído para ir ao mercado. Não era estranho deixar-se a porta aberta, aqui toda a gente se conhecia e não havia ladroagem. Maria seguiu até ao armário da sala onde sabia estar o álbum dos retratos de família. Sentou-se no cadeirão e abriu-o. 
-A tua tia tem a casa tão bem cuidada, toda cheia de almofadas e naperons de renda. Parece uma casa de bonecas..
-É, a velha gosta de estar entretida com estas coisas, olha aqui nesta página..vê a data das outras fotografias..é a mesma. Falta aqui uma, deixa ver se pelo espaço aqui cabia a nossa...
E cabia, exactamente na medida certa. Não tinha legenda como as outras. As outras eram retratos de grupo, Maria identificou a sua avó e os seus tios avôs, todos muito jovens ainda, alguns crianças. Havia outra com um bebé ao colo de uma jovem...
-Olha deve ser a tia Bela bebé ainda...
-Mas a tua avó não teve irmãs..e aqui nesta foto não é ela a segurar na bebé..olha aqui está ela, ainda menina pequena...
-Ah pois é nunca te contei esta história..a tia Bela não é mesmo minha tia, toda a gente a trata por tia mas ela é filha de uma interna lá da casa dos meus bisavós, da casa onde estivemos ontem pois, aqui esta rapariga que a tem ao colo era essa criada, naquele tempo elas iam para casa dos senhores ainda muito jovens e por lá ficavam até serem velhas, casavam-se e tinham os filhos por lá, como se fossem parte da família, era assim..e a tia Bela ficou como se fosse da família..Tanto que é ela que tem este álbum..
-Não sabia..era uma grande casa cheia de gente..lembras te da quantidade de criadas que tinham quando éramos crianças? E já nesse tempo os teus bisavós estavam em decadência..
-Pois rebentaram com tudo os meus tios avôs. Que maçada ela não está em casa e agora sabe-se lá quando volta..ao ritmo que caminha deve estar em casa lá para o meio dia...
-E não haverá mais criadas ou filhos delas desse tempo que te possam ajudar? Lembras te de alguma?
-Assim de cabeça...perdeu-se o rasto à maioria, quando a minha avó morreu já só a tia Bela estava em casa com ela há muitos anos, eram só as duas juntas no final...naquela casa a cair aos bocados...Nem sei como é que a tia Bela conseguiu esta casita..deve ter sido herança da minha avó..coitadita, ainda lhe deixou um poiso decente para o final da vida, aquela casa está à venda há anos, o casarão, e ninguém lhe pega...Mas espera, a filha da costureira...talvez a mãe lhe tenha contado qualquer coisa..é aquela rapariga que está na peixaria do supermercado..sabes qual é?
-Humm..aquela empertigada que andava atrás do João na escola..nem penses, não me presto a esse papelinho..vai lá tu..mas com o mau feitio que ela tem duvido que te ajude..
-És tão pessimista às vezes, até pareces eu..está bem, não queres ir vou lá eu, ficas cá fora a fumar os teus cigarros que tanto gostas...

E seguiram para o supermercado. Estava precisamente a abrir e restava saber se a rapariga filha da costureira estava de turno. E estava. Maria fez-lhe sinal de que precisava de lhe falar e a outra saiu de trás do balcão e veio. Em vão. Prontificou-se a dizer que não falava com a mãe nos últimos anos da vida dela porque esta não concordou com o seu casamento e chamou-a de vadia porque teve muitos namorados antes do marido...Maria ficou desanimada. Quando saiu Ana ainda fumava..
-Bem, nem tive tempo de ir ao segundo cigarro..nem de acabar o primeiro..já vi pela tua cara que não deu em nada...e se desistisses dessa ideia maluca? Devias andar a planear a tua vida! Estás numa situação difícil e precisas de procurar por saídas para ti..emprego Maria, precisas de um emprego neste momento...
-Ana! És tão chata! Vamos voltar a casa da tia Bela, pode ser que já tenha regressado...não desisto não, isto agora é mais importante..

E desta vez a tia Bela estava em casa. Baixinha anafada de movimentos escassos, preparou-lhes um chá enquanto reclamava dos preços do mercado estarem pela hora da morte. Bolinhos não tinha, faziam lhe mal à diabetes, dizia ela. E que elas eram novas e deviam cuidar da linha que os homens hoje em dia já não eram como antigamente.
-Hoje chegam aos quarenta anos e trocam-nas por miuditas de vinte..mais viçosas...
-Pois é tia, tem razão, mas olhe nós viemos cá por causa de outra coisa, a tia não se aborreça mas é muito importante a sua ajuda neste assunto..só a tia nos pode ajudar..
A velha senhora endireitou-se na poltrona. Abriu bem os olhos e curiosa de lambida pelas palavras bem escolhidas de Maria perguntou pelo assunto...
-Tia, eu encontrei um retrato no sótão da avó...preciso mesmo de saber a quem pertence, tenho sonhado com isto, sei que a tia não é muito crente mas talvez seja um sinal lá de cima para eu endireitar a minha vida..
-Deus..puff..essa ideia que os homens criaram para controlarem outros homens..que tolice rapariga...tu é que tens de endireitar a tua vida e ao que parece não está fácil, andas sempre a trocar tudo..por este andar vais ficar é sozinha como eu..olha que não é nada fácil estar sozinha, agora que a tua avó faleceu, agora..até me perco no tempo..já lá vão uns anos..ai a minha vida..que triste...parvas, estas raparigas são todas umas parvas..não têm nada na cabeça hoje em dia..se fosse no meu tempo..onde é que tu já ias..
-Tia tem toda a razão..quem me dera ser tão sábia quanto a tia..
-Deixa te disso..diz lá ao que vens..já te conheço desde criança..sabes muito...deve ser dinheiro..queres dinheiro não é..mas olha que eu não tenho nada..
-Não tia...como lhe estava a dizer...
E retirou da mala o retrato. 
Uma expressão de horror tomou-lhe o rosto. E as lágrimas correram. Incomodada procurou pelo lenço para se limpar. 
-Oh tia desculpe não queria nada perturba-la..
-Esse retrato não devia ter sido encontrado, foi o único..que grande lapso..fui eu que o levei para o sótão e depois esqueci-me de o guardar melhor..devia ter sido queimado enquanto era tempo..
-Mas porquê tia?
-Não..não posso, jurei levar esse assunto para a cova..jurei e serei sempre fiel à tua avó e a todos os teus familiares..não..
-Mas tia, é a minha família, eu tenho o direito de saber, isto tem-me incomodado, tenho sonhado com isso...
-Maria Antónia...essa criatura nunca devia ter nascido..esse Deus que tu falas..esse Deus..há certas criaturas que saíram das profundezas dos infernos..-e benze-se - só de falar nisso..não, queima isso e nunca mais penses no assunto...isso até traz mau agoiro..ainda foi pouco o que o teu bisavô lhe fez..ainda foi pouco...
-Tia conte..uma única vez..juro que queimo o retrato à sua frente e que nunca mais falo do assunto..
-Quando ela nasceu..assim da maneira que vês nesse retrato, uma mal formação, uma aberração da natureza..não havia nesse tempo nenhum recém nascido assim, até o padre veio benzer a casa, eu era criança e a tua avó também..era a quinta filha do casal, a segunda rapariga a nascer..a tua bisavó teve um desgosto muito grande..mas era crente em Deus e ficou com a menina..só que a menina desde bebé que parecia..sei lá..que trazia o demónio no corpo..berrava, chorava a toda a hora..nunca aprendeu a falar...recusava-se..e..
-E tia?
-E quando nasceu o sexto filho, Maria Antónia tinha uns seis anos..a tua bisa ficou aliviada de ser saudável, era um menino..uma grande alegria voltou àquela casa..e numa noite..essa maldita..abafou o menino com uma almofada..foi um horror..foi apanhada por uma das criadas mas já não se foi a tempo..o bebé era muito pequenino ainda..e uma vez mais..como assim era naquele tempo..tudo ficou nas mãos de Deus e no segredo do seio familiar..o bebé foi dado como acidentalmente morto ao dormir, sufocou-se, acontecia até com frequência..mas o teu bisavô não aguentou, contrariando a tua bisavó que tinha amor de mãe àquela maldita..pegou nela e encerrou-a no sótão..foi lá que foi criada..isolada de todos os outros..a tua bisavó nunca mais foi a mesma, era a única que ia lá..fazia-lhe companhia, lia-lhe histórias..tentou durante muito tempo que o amor pudesse tornar aquela menina boa..ainda teve mais três rapazes..e aos dezanove anos, Maria Antónia, olha foi pouco tempo depois desse retrato ter sido tirado, foi a tua bisavó que insistiu, queria porque queria um retrato da filha, mesmo assim, foi a única que a amou..como estava a dizer..aos dezanove anos..a criatura subiu ao telhado pela janela do sótão, aquela lá de cima e atirou-se..morreu logo..foi um alívio para o teu bisavô e para todos menos para a tua bisa..foi enterrada no quintal..o padre não permitiu o enterro no cemitério..dizia que não era criatura de Deus..foi o último grande desgosto que a tua bisa teve com essa filha..um enterro não cristão...

E calou-se...rejeitando do olhar o retrato...

-Agora entendo...só não compreendo o porquê destes sonhos..será que ela quer alguma coisa de mim lá do além?
-Ai Maria que horror..tira isso da cabeça de vez..dessa criatura nada de bom pode vir..nem do além..
-Sim filha, ouve a tua tia..queima o retrato..o Manuel das fotografias sempre disse que a maneira de libertar uma alma que já foi e não quer partir é queimar o retrato dela..sabes que aquele homem tem aquelas teorias mas ele lá deve estar certo..eu devia ter queimado isso..era o que eu devia ter feito...
-Mas ela deve querer então alguma coisa, deve querer dizer alguma coisa..é isso que vemos sempre nos filmes acontecer..os fantasmas aparecem porque querem dizer alguma coisa aos vivos..no sótão..é lá que está a resposta..sim é lá..vamos lá..
-Estás louca? Depois então de saber esta história..nem penses..morro de medo dessa criatura..
-Se não vais comigo vou sozinha..eu tenho de saber!
-Ai filhas, por favor, queimem isso, tu prometeste Maria!
-Sim tia, no final do dia de hoje eu juro-lhe que este retrato estará queimado, não se preocupe, eu já estive antes naquela casa sozinha e nada de mal me aconteceu..a Ana fica cá fora, se acontecer alguma coisa eu grito..
-Gritas? E pensas que eu vou salvar te? Não me meto nessa loucura..
-Cala-te! -sussurrou lhe a outra - vamos descansar a tia e já resolvemos isso..

As duas seguiram caminho na direcção da grande casa. A velha senhora acabou por ficar mais descansada porque lhe mentiram dizendo que iam queimar o retrato no quintal da casa. E que a visitariam no final do dia para a descansarem. Da porta da entrada, Ana viu Maria a desaparecer pela escuridão. Subindo as escadas em caracol, Maria agarrava-se ao corrimão com um misto de medo e certeza de estar a fazer a coisa certa. Não temia pela sua vida, essa era a fase em que se encontrava, medo de nada porque nada havia para temer, mas no entanto, sentia medo. A porta do sótão estava aberta. Entrou e atrás de si, de rompante ruidosamente, fechou-se. Cá em baixo Ana ouvindo o barulho da porta tremeu. Gritou para a outra mas de lá nem resposta..correu a chamar alguém do outro lado da rua achando finalmente que a loucura de Maria tinha ido demasiado longe...
Maria estava no escuro, nada se ouvia para além da sua respiração ofegante. E chamou...
-Maria Antónia! Estou aqui..aqui me tens...
Então da janela do sótão um raio de luz iluminou um canto no chão ao lado da secretária. Maria correu atrás dele com os seus olhos e encontrou uma saliência nos tacos do chão de madeira. Com algum esforço retirou o taco e lá dentro embrulhado num pano bordado com as iniciais MA estava um livro. Sentou-se mais calma na cama com o objecto. Até aqui estava tudo bem, estava viva. Lá para baixo gritou para Ana..
-Está tudo bem!
A outra andava histérica de porta em porta a pedir ajuda. Não escutou. Maria abriu o livro. Era grosso encadernado a couro. Na primeira página estava escrito com uma letra ornamentada "Maria Antónia"..então ela sabia escrever pensou..e páginas e páginas de escrita estavam preenchidas...folheou até à última página onde se podia ler..

Mãe:

Não creio que outra criatura de Deus tenha sido mais amada do que eu por ti. Não consegui de forma alguma exprimir esse amor que também eu te tenho, em vida, de volta. Sinto ainda e desde criança que o sinto, uma imensurável dor e revolta por ter nascido desta forma. Não posso mais viver, não quero mais viver. Não tenho olhos para ver a beleza que o mundo tem. E se os tivesse, não tenho coração nem alma que o veja como belo. Não tenho o que te perdoar mas ao pai sim, ao pai perdoo pela clausura a que me submeteu todos estes anos. Não tinha como explicar, porque não sabia ainda falar, que aquele acontecimento foi um trágico infortúnio para todos. Que de modo algum alguma vez tive intenção de abafar o meu irmão. Ele estava morto. Quando me aproximei dele para lhe tocar no rosto, não escutei a sua respiração, soube então que estava morto. Tudo o que fiz foi aconchega-lo para que partisse confortável. 
Obrigado pelo carinho com que me trataste ao longo de todos estes anos,
parto triste mas em alívio

da tua sempre 
M.A.

E Maria chorou. Chorou muito. Chorou até que a porta se abriu à martelada. Ana correu a abraça-la. 
-Que alívio, estás bem!
-Sim, anda..vamos, temos uma promessa a cumprir no quintal.