sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

4 paredes da Atlântida


o grande é a multiplicação do pequeno
dos etéreos terrenos a torre celestial
camadas espirituais do redondo globo
acontecimentos e impulsos no plural
o progresso evolucionário, magnânimo
de um tratado de capítulo ulterior
de mundos sucessivos os espíritos
da obscuridade a metamorfose
de um único mundo enfim, possuído.
a maldade. O coração do homem doente.
o primeiro golpe dado na cadeia planetária
ondas dando pelo nome de voltas
átomos individuais, traços, texturas, raças.
um sistema que se limita a si mesmo
e ainda deixando de parte a sorte
a finitude de tudo avançando, finda.
daí a preocupação profética ser areia
que sete vidas terá o felino, mas sete
tons tem a escala do ouvido, tudo é
da mais fixa definição de uma teia
onde o tempo que se conta é passado
e o tempo que se perde com teorias
só serve para os próximos átomos.
e que saber tudo isto só nos turva
a visão microscópica mecatrónica
de impossível controlo remoto.
um ramal de tudo isso é o banal.
a eternidade de um momento feliz.
de total comunhão natural
entidade permanente, matéria astral
que num futuro afastado, ainda em nós
consegue harmonizar todos os factos
da vida terrestre sem doutrina.
Os momentos felizes são livres.
e na história universal, idênticos.
a resposta está na singular rotina
que segue paralela à sua origem.
o verdadeiro domicílio do homem
é a grande ilha que deixa, cíclica,
a que chamará sempre de casa.











quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

lembrete



em plena e fecunda sedimentação
o dharma sempre foi a devoção
asceta de impossível renúncia
o maior prazer o próprio mim
inintelectual, insocial, inideal,
os cânones da fé aos atropeços
de norte a sul do pensamento
e eu invento um propósito
não há fim entre o dentro e o fora
geena caótica o ator-atmosfera
de uma realidade absoluta incansável
peixe sem aquário de guelras pulsadas
a gratidão de sermos atados a estas palavras
o ébrio à aventura de nunca a sede cura
o poema do meu quintal sem poda
punhado de fábrica sem máquina
natural, fluido, brando ou irado
tal e qual como me sinto quando
na mesa me sento e o escrevo
e em mim nunca é estranho ou infiel
nunca o abandono por mais fel
a espinha dorsal do meu destino
que protesta e afaga o meu sonho
o sopro de tudo o que respira
e da minha boca grita, alta a poesia
e não é porque tenha tanto para dizer
é porque o sinto sem mesmo querer
dinâmica, forte, lira-alma íntima
feita de minúcias horas perdidas
múltiplas causas, paloma de um tronco
que vibra dos meus olhos a dentro
décadas volvidas de inerme sofrimento
porque tudo seria tão mais breve
uma galeria de momentos sem transe
vivendo sem estar presente, passando.
não, esse é o imenso poder dos mansos
sou animal bravo e ainda que curto
tempo vivo, na arena do poema
me infinito, realizo, imortalizo.








terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O escalpe da poesia


esbarrei-me com um mocho
mudo na ideia-mestre do seu posto
da terra do lavradio da insanidade
na dianteira búfalos e veados
dormindo a noite inteira sossegados
mãos à obra o esqueleto é a sobra
colonos no escuro antro da abóbora
ursos e gamos da cordilheira de fora
as grandes campinas ondulantes
savanas finitas, vales e montes desfoco
sem cavalos, mantimentos ou fogueiras
a mente alta e magra a solo
e encolho os ombros, que posso?
ser paciente de um talvez ruído
do chicote o assobio de viral bode
sacudindo a morte do capote
o arrepio que ainda a espinha comove
animal de carga de vazio alforge
levantando acampamento se mente.
mãos à obra portanto. pólvora e chumbo
na brasa do lume nunca aceso, o cume.
peles-vermelhas dançando inflamadas
bruxas, xamãs, feiticeiras, magas,
na cabeça o escalpe da doença.
o monólogo batendo continência
peixe negro fluviando no terreiro
de um absoluto estampido afogamento.
a mim me entortam de loucura
os estalidos dos braços dos domínios
de querer ser som nos vácuos do impossível.
a perseguição das aves de migração intransponível
que nos pousam na viseira, que nos servem
à mesa? o azedume do silêncio do costume.
tenhamos paciência,
o mocho do alto do seu posto
nos espia a natural odiosa incoerência.
Mas que seria da prosa sem a espera,
o momento em que a voz, finalmente, se escuta
e a cabeça do mocho cai redonda, aos pés
de uma linguagem única.











quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Poeta convidado deste Blog hoje Vasco Macedo




XVI

À luz de imensos focos de vermelho fúnebre eu sento-me uivo escrevo A imagem da criança esventrada pelo insaciável bico O delírio da mitologia cosmopolitana a assegurar as suas camas As torres com imensos olhos em chama por vida Tantas enormidades estrangeiras aos calos das nossas mãos
Passo na rua levantando a saia para mostrar a minha cona Para habitar o regozijo geral machista do tempo Infiltro-me no vácuo dos demais usantes de chapéus Canto os nós das forcas sobre as palavras Imensas boias de sangue pulverizando reflexos rio pantanoso onde concentro os meus dentes nos peixes mortos
Sou tão imensamente ávido e carnívoro Que renasco em pedestais dourados em cidade santa Em mosaicos a conhecerem o sol às chapadas na cara Imensa turbe branquílinea e sã da sua meditação Que a poesia seria despojada de sentido linguístico Para ser apenas os dentes gementes ao trago
Ah mas tanto bulício infame e seguidista Que tem os quatros charros aos quais à luz me sento e escrevo Uma febre totalmente composta para lambermos as beiças Porque é a amargura constrita por uma trela curta Onde largamos em versos para o gáudio salvífico Da corrida de galgos de quem fez todas as apostas
Derretemos em mais uma gota de cera Subitamente tudo ganha em cor de tudo Onde tudo é verosímel e policromático
Iluminamos a sombra



terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Homens Maus




Diz-se que sem a cabeça o nosso corpo seguiria em direção ao mar para se aventar ao fundo. E quem diz mar diz precipício, ponte altiva entre margens, terraço de arranha-céus. Mas por aqui, citadinos de aldeia, andamos com a cabeça ao peito, amanhando-a de carícias maternas e frutos nostálgicos. Dizem os antigos, que é o melhor antídoto para a morte.


I

Maria Antónia apressada arrastava o filho pelo braço ladeira abaixo. Na outra mão a cesta de peras amarelas como o tempo dos caracóis no prato. Remoendo todo o caminho com os seus botões Raios parta o miúdo! Já tinha idade para saber a hora errada da birra. Logo hoje que o Manel não aparece e terei de abrir a banca sozinha. Os tamancos escorregavam-lhe dos pés transpirados da corrida. As bancas nunca estavam definidas, quem chegasse primeiro tinha o melhor lugar para a venda, incentivos de alguém que nunca vendera uma nêspera na vida, ai se eu pudesse, se eu pudesse bem sei o que fazia da minha vida. E neste pensamento olhava para o rosto choroso do filho compadecendo-se Tu vinhas comigo meu príncipe, vinhas pois. Agarrando nele, pegou-o ao colo para mais depressa chegar. 
-Mas o que vem a ser isto tia Anita? Então agente agora tem que estar na fila? Estamos tramadas, não há melhoras nenhumas. 
-Rapariga, este não é tempo de vida para ninguém. Quando eu era garota havia miséria mas havia trabalho. Só morria de fome quem não vergasse o corpo. Agora, bem podem as pernas ganhar varizes de tanto esperar por um lugar. Isto está tudo do avesso é o que é. 
Aproximando-se da outra encostou-se para reservar o seu lugar mas começando a fazer contas às bancas e ao número de vendedoras...Oh tia deixe lá isso, isto hoje é peixe morto na costa. Sabe que mais, vou para casa, o miúdo já anda constipado ainda me adoece e depois é que são os trabalhos para a conta da farmácia. Tenha um melhor dia.
-Vai com Deus rapariga. 

De volta, o miúdo já pelo seu pé, Maria Antónia atrasando o passo de nada ter que fazer imaginou-se novamente longe dali. Senhora de terras, vestidos de seda, anéis de pedras e comida farta à mesa. Imaginou-se criando o filho numa boa escola, tomando chás e conversando sobre modas. Imaginou-se sobretudo sem marido...Aquele traste, de que me serve, só para fazer filhos e depois eu que trate deles. Aposto que ainda está na romaria a estas horas. E mudando a direção do ladrilho que por estes dias era mais esburaquilho, assumou-se de saber na porta do tasco do Quinzinho pelo Manel da Horta. Da escuridão do balcão de mármore, a voz do velho taberneiro respondeu-lhe Mariazinha, o té marido já se mandou daqui há horas, era madrugada, foi dos últimos pois foi, mas foi. Ela afastou o garoto e aproximou-se já do lado dentro com a mão na anca em tom de pega Pois então foi pás putas foi o que foi, porque a minha cama fria está. O outro encolheu-se e puxando do ombro o pano encardido começou a polir os canecos de barro. Ela virou costas É isso mesmo que é preciso, polir o barro! Bem o entendo...Porra pra isto tudo! Tapa os ouvidos miúdo! Vamos embora, é desta que vamos.  E o miúdo olhou para a mãe ainda sem compreender a força desta decisão mas orgulhoso pela convicção com que a mãe proferira aquelas palavras. A mãe era a sua heroína, a cavaleira de espada erguida que segurava a casa...o pai...enfim, nem bem ele sabia como via o pai, talvez nem o visse sequer incluído nas suas histórias fantásticas de contos de reinados e conquistas. A verdade é que tão pouco o via e do pouco que via preferia não ver. Orgulhoso cavaleiro, agora senhor, seguia a mãe, desta vez sem birra. Algo mais importante estaria para chegar. A partida. 


II

A porta de casa ficara escancarada. Tal como as gavetas umas vazias outras assaltadas sem mérito. 
Numa trouxa querendo ser ligeira, colocou apenas o essencial...Também de resto, isto são só trapos. Anda meu príncipe, traz aquilo que mais importante é para ti, anda depressa antes que o teu pai regresse. O miúdo correu ao quarto ainda com a cama desfeita e olhou para o seu único brinquedo. Um cavalo de pau tosco que recebera pelo seu aniversário. Correu de novo ao quarto da mãe com o intuito de saber se podia levar o cavalo mas vendo a singelidade de tudo, abandonou a ideia. Ergueu o peito, ajeitou a boina e disse Estou pronto mãe. Maria Antónia olhou para o filho...como estás crescido! Vai à gaveta da costura e traz da caixa dos alfinetes, por baixo, tu sabes, as notas que lá estão. Não há-de ficar com nada! Ai se não há-de teu rico pai. 
Na paragem das carreiras, aguardavam os dois impacientes como dois fugitivos sem papéis. Ás duas da tarde partiria a próxima para a grande cidade. O caminho era longo e como ainda tinha tempo, depois de comprar os bilhetes Maria Antónia dirigiu-se à padaria da frente para buscar o farnel. O filho ficara a olha-la guardando a trouxa. De cada vez que a mãe se afastava sentia no peito um medo muito profundo, como se um pedaço de si estivesse a ser arrancado e doesse nesse buraco. Não a largou de vista e só descansou quando a viu sair da padaria com o saco na mão das carcaças. Maria preparava-se para atravessar a estrada e olhando uma última vez para o filho pensou...como estás crescido e corajoso. E por distração sua, atravessou-se sem olhar. Foi quando um carro daqueles modernos citadinos, rompeu de uma curva a toda a velocidade e lhe passou por cima. As carcaças rolaram no tapete alcatroado da estrada nacional. Mãe! O miúdo correu ao corpo da mãe ainda quente mas já morto. Na mão os bilhetes. Logo de dentro da padaria o mulherio correu à estrada. Vendo-se numa situação de pânico, agarrou no bilhete ensanguentado e correu para dentro da garagem das carreiras. Iria afinal sozinho, com apenas oito anos. 

III

O caminho tal como a mãe havia dito, foi longo. Mas o trauma deixou-o num entorpecimento anestésico, dormindo. Perto da chegada, as luzes se inaugurando de deslumbre. Despertou como de um sonho mau. O motorista lá da frente fez-lhe sinal para que se chegasse a ele Rapaz, está alguém à tua espera certo? Sim...coçando a cabeça...Está a minha tia. O motorista acenou-lhe com a cabeça cedendo e pode então desfrutar do primeiro encontro com as portas da cidade pela janela bacenta. Tudo era gigantescamente vasto. Ruas, avenidas, semáforos, carros se atravessando, pessoas de um lado para o outro, lojas, botequins, fontes e letreiros piscando o caos. O que faz um rapaz de oito anos sozinho numa cidade como esta? Que farei eu quando desta carreira saltar? A dor da perda da mãe dava agora fugazmente lugar a um instinto de sobrevivência que muito rapidamente lhe chegou. Assim que saiu da carreira e vendo que o motorista estava de olho nele, pegou na trouxa e correu aos braços de uma senhora bem vestida de chapéu que fumava por uma boquilha. Ela, apanhada de surpresa sorriu e foi o que bastou para o motorista se concentrar na entrega das bagagens dos restantes passageiros. O rapaz vendo então caminho livre, pediu desculpa pelo engano e procurou pela saída. 

Caminhando sem rumo pela noite das ruelas desconhecidas, o aperto lhe tomou novamente o espírito. Mas pontapendo-o retorquiu para si mesmo Que raio! Agora sou um homem. Não tarda o pelo me está crescer no queixo e eu hei-de ser alguém. Na beira de um passeio havia um tufo de erva, escarafunchou e agarrando em terra, mascarou o rosto de sujeira na tentativa de parecer mais homem. Procurou pelo maço de notas na trouxa...Está na hora de procurar um canto para dormir, não sei se o que mãe juntou é muito, aqui talvez tudo seja mais caro. Como a noite estava quente decidiu dormir acolhido num canto discreto e no dia seguinte procurar trabalho. Como dormira toda a viagem o sono tardou a chegar-lhe e as memórias do dia caíam como vagões em cima dos frágeis ossos de porcelana. O rosto da mãe correndo apressada nessa mesma manhã, o rosto da mãe ralhando, o rosto da mãe em fúria, o rosto da mãe terno, o rosto da mãe decidido e protetor, o rosto da mãe agora frio e distante. As lágrimas caíram-lhe na mãos como ainda não haviam caído. A sensação do total desamparo. 

IV

A cidade era uma armadilha para anões de circo como ele. Criado numa redoma, tudo era novidade e em si, a ingenuidade deveria dar lugar rapidamente a esperteza saloia. Assim que despertou com os primeiros raios de sol a sua demanda por trabalho começou. Bateu na porta de retrosarias e drogarias, atrás do balcão aprenderia rapidamente e venda era o que tinha assistido desde sempre. Durante toda a manhã recebeu respostas negativas devido à sua jovialidade. Como não queria ser apanhado pelas autoridades pois já tinha ouvido em tempos de desespero a mãe dizer que os meninos que se portavam mal iam parar às instituições que os acolhiam e onde se dormia com os pés de fora e se levava reguadas de manhã à noite, inventara a história de que vivia com uma tia que tinha muitas dificuldades e estava doente. Outros rapazes vira nesse dia atrás do balcão mas de facto não tão novos como ele. Pela hora do almoço e sem comer desde o dia anterior, não aguentando mais, entrou num café e pediu pão e leite. 
Sentou-se na mesa mais distante e observou os cavalheiros que chegavam de cachimbo e botas afiadas. As pessoas tinham um ar diferente da sua aldeia. Eram grosseiras, apesar das vestes cuidadas e luxuosas, pareciam todas envelhecidas por um poluente de tempo acelerado. Os carros atravessavam a todo o vapor as avenidas e a imagem do atropelamento aparecia constantemente. Desviou o olhar da janela e focou-se numa senhora que bebia solitária por uma chávena florida. Devia ter a idade da mãe. Algo nela lhe tomou o rosto. Talvez o cabelo cor de mel encaracolado escapando do chapéu ou talvez a delicadeza do pulso onde tilintava uma pulseira de oiro entrelaçada. A pulseira. Os seus olhos salivaram. Se conseguisse vender aquela pulseira estaria rico por meses a fio. Era exatamente esse o tipo de pensamento que vira no pai toda a vida...Não, a mãe haveria de querer que eu fosse mais que um simples ladrão. Outra vida procurava ela naquele dia, outra vida. Mais confortado depois de acabar a refeição levantou-se com ideia de retomar a procura. E foi nesse momento que a senhora o chamou, aproximou-se tímido. Rapaz, és tão novo para estares aqui sozinho, o que fazes por estes lados? A pulseira voltou a seduzi-lo tal saia levantada no asilo. Ele soprou e com toda a sua ainda infantil virilidade respondeu Procuro trabalho minha senhora, qualquer coisa, desde que seja honesto. 
Ela percorreu todo o corpo dele examinando-o Não tens ninguém pois não? E novamente o rosto da mãe lhe apareceu no rosto dela. Talvez por isso tenha sido sincero e tivesse deixado cair a máscara De facto, não. Mê pai era um perdido e minha mãe, que Deus a tenha, faleceu de atropelo. E ela continuou Lamento muito. Senta-te aqui por um momento. Não és de cá pois não? Ele abanou a cabeça confirmando. Tenho um grande jardim que precisa de cuidados e um filho pequeno que agradece companhia, percebes alguma coisa de jardinagem? O rapaz não queria acreditar Nã percebo mas aprendo logo logo. Vou sim, vou agora. E levantando-se recolocando a máscara de senhor de si mesmo É para que lado minha senhora? Vamos? Antes de se levantar ela quis saber ainda Como te hei-de chamar? Ele coçando o queixo ainda por um momento. O seu nome de menino da sua mãe, mas porque não mudar de nome? Porque não? Se estava a começar uma outra vida tão distante da sua. E das histórias sobre cavaleiros de nomes herdeiros o nome lhe chegou Ivan. Tenho dez anos e nasci na capital. Encantado minha senhora. Terminando com uma vénia, que a fez rir e sorrir de encantamento. 


V

Ivan queria que a sua história tivesse sido assim. Queria dessa metade de si tão pura que a senhora o tivesse de facto convidado para cuidar do seu jardim. Mas a sua cabeça de menino era apenas uma ratoeira, as fantasias de embalo materno pesavam ainda na sua tenra e solitária idade. E não foi. Quando despertou desse devaneio já a senhora havia partido e no lugar dela dois cavalheiros discutiam sobre apostas de cavalos. Atento ao novo negócio, as suas orelhas ferviam já nas notas que via cair do céu como linhas de chuva fáceis. No bolso o molho de notas saltitava. Porque não apostar? Se eu posso duplicar o que tenho, porque não? A mãe nunca lhe falara de apostas e nesse sentido não havia o que contrabalançar. Aproximou-se da mesa dos cavalheiros e estendeu o maço de notas Meus senhores, gostaria de apostar convosco. Os dois tiveram a pior reação possível, o riso incontrolável que chamou a atenção do estabelecimento inteiro. Envergonhado recolheu as notas. Um deles falou então Meu rapaz, cuidado com isso, ainda está aí uma boa quantidade de dinheiro, cuidadinho para não seres enganado. O rapaz entregou-se à terceira cadeira disponível desalentado. E o homem olhando para o outro em busca de consentimento inquiriu Mas o que tu procuras é trabalho não é verdade, esse dinheiro é tudo o que tens? Talvez tenhamos um bom arranjinho para ti mas para isso temos de saber se serás de confiança. O rapaz endireitou-se voltando a esperançar-se. Sabes como funcionam as apostas não é verdade? Se não sabes aprendes depressa que tens ar espertino. Ora convinha-nos um moço de recados digamos assim. E para um primeiro teste, aqui tens a morada e os ingressos, deves retomar aqui com o valor exato que está aí apontado. Dentro de uma hora! 
Desnorteado agarrou no ingresso e saiu esbaforido para a rua que a essa hora adormecia numa sesta de moléstia. Anotado. Esta palavra implicava saber ler, coisa que a mãe não tivera grande tempo de adiantar. Olhando para o pedaço de papel desdobrado procurou orientar-se nas letras. Por outro lado para desajudar não fazia a mínima ideia de onde ficava a morada e decidiu por isso, alguns metros à frente, pedir orientação numa mercearia. O homem bolachudo explicou-lhe que era longe para ir a pé e que devia tomar o comboio urbano que atravessava a cidade a qualquer hora. Era a primeira vez que se encontrava dentro de uma coisa daquelas, um comboio que andava ao lado dos carros no mesmo piso de alcatrão. Não teve dificuldade em chegar dessa forma ao destino e na porta anotada bateu. 
Um outro homem de bigode repenicado e jaqueta apertada apareceu. 
Ele estendeu o ingresso sem proferir palavra. O homem voltou a dentro e de volta trazia um envelope que lhe entregou dizendo À confiança, a ver vamos. Guardou-o no bolso sem se lembrar de conferir dadas as próprias palavras do homem terem-no colado a ele como confiável. De regresso ao comboio, encostado à porta, numa das paragens que não a sua, um rapaz um pouco mais velho que ele meteu conversa Tu tens cara de quem gosta de se divertir. Ele atrapalhado procurou desviar a atenção do outro Não sei...estou com pressa. O outro, marialva, insistiu Nah, pressa pra quê? O comboio não anda mais depressa por isso. Anda comigo quero mostrar-te o que se passa na última carruagem. E não lhe dando alternativa puxou-o pelo braço atravessando duas outras carruagens. Ali estava a derradeira última passagem, uma porta de correr. Ivan deteve-se mas foi empurrado para o outro lado. Caros amigos, quero-vos apresentar o meu novo amigo...chama-se..ah..como é que te chamas mesmo? Não importa. Saca da nota que é hora de aposta. Ele estremeceu Aposta? Mas também aqui? No chão da carruagem duas tábuas feitas das placas diretrizes das estações e divididas ao meio por um cordel de fio daquele que a mãe usava para atar a galinha que se fazia passar por peru todos os natais. Dois rapazes na ponta oposta retiraram do bolso dois ratos brancos gordos. Um parecia ter os olhos mais vermelhos que o outro. Eu aposto no da direita e tu? A aposta é para dez contos. Apeitas-te? Sentiu que não tinha escolha possível, os rapazes tinham um aspecto hostil, escutou o comboio parar, provavelmente esta seria a sua saída. Da testa escorria agora uma gota de nervo. Puxou do maço e retirou duas notas de cinco. Na direita será. E o rato da direita perdeu. Tivemos azar, passa para cá a nota gaiato. Sentiu vontade de chorar mas engoliu as lágrimas pensando na mãe e no tanto que se esforçara para fazer dele um homem de valor. Entregou a nota e expirando confiança voltou-se procurando a porta de correr. Mas o outro insistiu Já de partida? Nah vamos lá ver se desta vez tens mais sorte, olha ali o rato do Joca. Aquele não falha, a aposta desta vez é para vinte contos, anda a ver que ainda recuperas o que perdeste. 
Ivan levou a mão à testa agoniado, o outro vira certamente a dimensão do maço, ocorreu-lhe como fora ingénuo em andar com tanto dinheiro e mais ainda o envelope que o outro nem desconfiava mas que se se atrevesse a buscar no bolso dele, encontraria facilmente. Era preciso desenvencilhar-se daquela situação, mas como? Foi quando se recordou do filho da tia Anita, o desgraçadinho da terra que tinha ataques do nada e se atirava para o chão parecendo que o estavam a matar. 
Ivan atirou-se para o chão como se as forças lhe tivessem falhado, começando a revirar os olhos para o branco e cuspindo espumando da boca enrolando a língua. Parecia possuído pelo demónio. Os outros pouco habituados a estes cenários porque é certo que ainda hoje a diferença é mantida escondida nas quatros paredes do lar, fugiram de susto pela carruagem fora deixando para trás os ratos e as notas. Ivan não queria acreditar. Rebolando de riso no chão desta escapei minha mãe, desta escapei. Pegou nas notas acrescentando-as ao maço e saiu para voltar para trás donde deveria ter saído. Dos outros nem sinal. 


VI

Ao entrar no café apenas um dos homens, o que estivera calado, estava lá sentado esperando-o. Mostra daí o envelope. E abriu-o contando as notas. Vai na contagem e para. Levantando um braço e uma chapada no rosto do rapaz Mas estás a gozar comigo? Então o resto? Queres ver que se armou em espertinho logo da primeira vez. Ivan nervoso negava com todas as partes do seu corpo Não, mas foi exatamente isso que recebi, não roubei nada. E as lágrimas correram mesmo pelo rosto. Então mas tu não confirmaste? Queres ver a ensinar a missa ao padre, olha agora o traste. Ivan implorou Juro pela alminha da minha mãe senhor, juro por tudo o que é mais sagrado que não roubei nada, foi isso que o homem me deu. O homem encostou-se na cadeira refletindo, agora um silêncio constrangedor os seguia com mil olhos. Já sei o que vais fazer...vais voltar lá e pedir o resto como combinado. E se não regressares juro eu que nem que vire esta espelunca de cidade do avesso que te encontro e te arranco essa cabeça de vento do pescoço, vai!
E foi, mas foi tão depressa quanto as pernas lhe permitiram para fugir daquela avenida, daquele bairro, daquela cidade. Foi no plano de fugir daquele enredo, que mal tinha começado e tantos perigos já se tinham instalado. Afinal ele era ainda um menino. Não haveria forma de o ser? 
Caminhando sem alento o que o tomava agora era uma pequenez mas não de idade ou maturidade e sim de ínfima partícula insignificante. Não creio que alguém queira saber de me ajudar mãe. Estou perdido, porque não te impedi de partirmos? Talvez tudo tivesse sido evitado...
Estava assim sentado no lancil do passeio quando um cão se chegou perto fuçando-lhe a cabeça. Não obtendo reação dele, encostou-se deitando-se. E vai daí lança um desabafante suspiro parecendo uma pessoa. Ivan levantou a cabeça e observou-o. Tinha o pelo mal cuidado, algumas rapadelas e seguramente pulgas porque se coçava agora de boca aberta como que excitado por ter obtido atenção. Como te chamas? Não falas não é? A mãe nunca me deixou ter um cão, dizia que para trabalhos já bastava ê. Não tens coleira, podes ser meu, vou chamar-te de Sarilhos. É bem, ao fim ao cabo nã agoiro nada de melhor por estes lados. Que me dizes a um passeio? Que tal conhecermos a ponta norte da cidade? O homem da mercearia falou de ser uma zona que nã tem nada a ver com esta, do lado oposto por onde andei hoje, vamos daí meu velho companheiro? 
O cão de pronto se levantou e o seguiu. Caminharam por um par de horas na direção que o merceeiro indicou como oposta e a cidade se foi mutando para bairros de moradias e parques de baloiços de aviões e escorregas de ferro metalizado. Ivan foi começando a sentir-se mais leve. Tudo por aqui parecia mais familiar e envolvente. 


VII

Não são os homens que são maus, são as crianças que são ingénuas. No banco do jardim de frente para o parque infantil, o homem falava como se estivesse a declamar no mais importante dos saraus. A garrafa se entornava pela goela e o entusiasmo do discurso para com Ivan crescia. O cão dormia já aos pés do seu novo dono. É preciso ser-se poeta para suportar as agruras da vida, ou poeta ou bêbado. Mas tu ainda és muito jovem para saber alguma coisa da dor. Desde que Ivan se sentara para descansar as pernas naquele banco que o homem, ao seu lado desde sempre, falava como se Ivan não fosse alguém, nada sobre si lhe perguntara, dava ideia de que o homem apenas precisava de ouvidos e silêncio. Mas Ivan estava cativo daquelas palavras, nunca tinha ouvido ninguém falar com tamanha mestria. Muitas vezes escutara o álcool da boca do seu pai, mas era um destilar diferente, era uma agressividade verbal pura com porrada à mistura. Meu caro amigo, chamo-me Zacarias, os amigos, quero dizer, os cavalinhos de ferro e os pássaros que tudo emporcalham por aqui chamam-me o poeta do jardim do éden. Moro aqui desde que me lembro, mas também não lembro mais que o dia de hoje, também para que queria eu recordar uma vida que a mim não cabe viver? Ando por aqui, deambulando nos atalhos da vida dos outros, renovando-me dos veios que sangram a dor de ninguém. 
Ivan sentia-se adormecido nas palavras de Zacarias. Quando este referiu o cavalinho de ferro uma única imagem lhe alcançou os olhos, o seu cavalinho de pau tosco. Nem tanto tempo passara mas tão distante tudo isso lhe parecia agora. Era como Zacarias dizia, viver a vida que a si não lhe cabia viver, que vida essa? Esta? Ele? Ivan? Ou antes Miguelinho? Quem era ele hoje? Não podia ser o mesmo de certo. Não cabia dentro de si o mesmo. Nem sobreviveria por aqui o mesmo. Acabou por adormecer encostado no ombro de Zacarias.
Quando despertou não o encontrou no banco mas logo apareceu cambaleando detrás de uma árvore Bom dia rapaz, não há nada como aliviar na natureza, o homem insiste em estruturas mas aqui é que está a beleza da coisa, aliviar o cú nas ervas, que maravilha! Ivan espreguiçou-se e falou então pela primeira vez a Zacarias Bom dia, não sabe se consigo arranjar por aqui trabalho com facilidade? A propósito chamo-me Joel e venho do Norte. O poeta riu-se Do norte? Mas tu lá tens pronúncia do norte! Trabalho? Tenho alergia, olha a minha pele já toda eriçada, sou altamente alérgico a tudo o que não seja poético e o trabalho meu caro foi inventado pelos capitalistas para nos cegarem e envolverem numa estrutura tão perversa como mortificante, género fermento para mais e mais crescer a riqueza do seu próprio bolo, para que queres tu ser escravo rapaz? Joel, como se intitulava agora, ficou confuso Mas então de que hei-de eu viver? 
O homem tirou do bolso das calças de retalhos um pedaço de pão seco e partilhou-o com ele continuando Puxa pela cabeça, se não queres ser escravo só tens duas soluções, uma é seres patrão, outra é seres artista e esperares que a sociedade te reconheça como tal. Joel inquiriu Então ser artista é ser calão? Zacarias riu-se numa gargalhada que espantou a passarada já interessada nas migalhas É exatamente assim que a sociedade o pensa, e se o pensa, ora ora, quem somos nós para ir contra a maré, junta-te a eles se não os podes vencer e torna-te um parasita por eles mesmos criado. Fiz-me entender? E agora a ver um trago dessa zurrapa que a garganta já engasga.
Joel olhou para o cão e levantou-se estendendo a mão Gostei de o conhecer, pode ser que o venha visitar um dia destes. Zacarias desdenhou Não faças promessas que ainda és muito novo.


VIII

Havia qualquer coisa de estrábico no mundo que Zacarias descrevera mas para Joel tudo era agora uma lição. E no bolso o maço de notas que lhe compraria tempo mas não tanto tempo assim. Era preciso encontrar um destino ou qualquer caminho que o retirasse da rua. Havia ainda um perigo maior que só ao deparar-se diante de uma montra com televisões, onde repetidamente nos ecrãs imagens de uma aldeia não muito diferente da sua, lhe ocorreu E se o pai estiver à minha procura? Eu não quero ser encontrado por ele! Desviou o pensamento da cabeça, acreditava ser uma agulha numa cidade grande demais para ser encontrado. Avistou então uma padaria no outro lado da rua Sim, pão fresco saberia mesmo bem agora. Mas quando estava a atravessar a estrada para se dirigir para lá, do outro lado viu o corpo da sua mãe, ali mesmo, direito, de pé, flutuando para ele. Deteve-se sem atravessar. Lá bem que a tia Anita de vez em quando falava de fantasmas, mas ê nunca vi nenhum. Nã na é possível. Mas...diante da possibilidade de poder ser abraçado pela mãe, olhou para um lado e para o outro e atravessou na direção dela. No entanto, ao aproximar-se a imagem se foi diluindo e chegando mais perto, nada a não ser respiração sentiu. A sua própria respiração, batendo forte o coração. Agarrou-se ao peito e encostado à parede ao lado da padaria voltou-se para a estrada e novamente do outro lado estava a mãe Nã pode ser! Que me queres minha mãe? Que atravesse novamente? Mas para quê? Daí vim eu! E essa frase se clarificou aos seus ouvidos como melodia descodificada por quem sabe ler pautas de música Voltar, então é isso, achas que devo voltar e cuidar do pai e de mim, é isso? E a mãe do outro lado da estrada, sorriu. Voltar para o meu lugar, a minha casa, a minha terra, a nossa terra. Mas estarias assim tão errada em partir? E como posso eu voltar se nem bem eu sei quem mais sou?

IX


Miguelito estava na pagarem das carreiras aguardando o caminho de volta. A seu lado Sarilhos com uma corda ao pescoço ladrava para uma senhora que comia um pão com chouriço Deixa-te disso, logo chegaremos a casa e arranjo-te um osso bem grande, se é que ainda temos casa! Sabe-se lá o que o pai inventou por lá. Dói-me tudo, parece que se passaram anos! Confesso que me vai custar tanto voltar como foi partir, ela nã tá mais lá, será ainda mais dura a vida do que por aqui e eu tinha tanto mais para viver, mas porque raio haveria ela de me querer de volta?
Dormiu como dorme uma criança sem preocupações de maior, dormiu como dormira na viagem de partida. E quando escutou o sino da igreja soube que estava a chegar. O motorista não era o mesmo mas pareceu não estranhar a sua viagem solitária, aqui tudo era tranquilo, não importava com que idade se chegava, era-se sempre bem vindo. 
A medo encaminhou-se para as proximidades da sua pequena, que agora ainda lhe parecia mais pequena, casa.  Era novamente noite, escutavam-se grilos e corujas do alto dos montes e a luz da janela ao lado da porta anunciava que alguém estaria em casa. Tremia como não antes, nem sabia bem o que temia, mas tudo em si se agoniava. O cão ladrou e a porta se abriu. Era a tia Anita. Ai meu rico menino graças a Deus, graças ao senhor e a todos os santinhos que estás vivo e aqui à minha frente. A tua santa mãezinha escutou as minhas preces. Entra filho, entra, pareces diferente, sabes lá a desgraça que se abateu sobre a tua família. Senta-te aqui ao lume. Apesar de ser Verão, por aqui as noites arrefeciam muito e Miguelito sentiu um conforto materno nas labaredas inchadas do lume de chão. A tia Anita continuou coçando a borda da bata O tê pai depois do acidente da tua mãe endoideceu, o home parece que andava a jogar afinal, apostas dizem, coisas da cidade que se assomaram por aqui por ordem do demo. E foi tamanha a carraspana e tamanha a culpa que se atirou do cimo da igreja. Morreu na hora, que Deus o perdoe. Só restas tu meu menino. Esta casa agora a ti te pertence. Mas diz-se por aí que o tê pai da jogatana emprenhou dívidas e que andam atrás de ti. Sabe-se lá para quê. Ai filho, tava em trabalhos de não saber de ti.
Miguelito ouvindo estas palavras empalideceu, se alguma cor ainda lhe restava no rosto. Seriam os mesmos que aos olhos desses ele traíra na cidade? 

X

Onze anos passaram sem que Miguelito desse conta de tão embrenhado na vida de cálculos e estratégias andara. Erguera o primeiro casino das redondezas com apenas dezassete anos com documentos provenientes de Espanha, era agora Don Miguel. Temido e respeitado por todos. Como o pequeno Miguelito dera a volta à trágica herança que recebera muitas histórias se conjecturavam, mas a verdade só ele a sabia e essa regressava em noites de insónia para o atormentar dos seus pecados mais sombrios, pecados que não caberiam nas mãos de uma criança de oito anos, se os tivesse vivido como criança até ao fim.

Mas como dizia o poeta Zacarias tomado como antídoto Se não podes vencê-los, junta-te a eles. 

Acrobacia vital



reduzir o adversário visível e invisível
qual deles o mais difícil?
do palpável chega uma brancura nefasta
e do sentido, um ponto isolado rematado
resistindo como presa encurralada
à impotência, à fadiga das incoerências
que a leveza do corpo é essencial
para no arame trapezar em equilíbrio
tudo ser primeira contemplação
e iluminação de agilidade infantil.
Julgo não ser possível para sempre.
o ponto de resistência, de falência
copos de cristal na frequência final
o último segundo do virar da noite
linha recta, o punho ser cinza
no encontro do muro, a meta
As raízes conceptuais dos fractais
falhando, filhos não iguais aos pais.
tudo caindo no absoluto finito
Mas eis que o voo de Lévy, peão
acrobacia, um passeio aleatório
o querer ir a bordo de si.
O clima mudando, o sol regressando
e o vento não mais empurrando.
A liberdade microscópica, o ruído
de só por capricho, ser pássaro
e de não mais precisar da rede
e não mais querer ser relatividade
e todo o céu ser liberdade
e todo o ponto isolado ser sede


segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O rato roeu


o esburacado no canto da folha
o mesmo destino das coisas frágeis
serão precisas lunetas mágicas
para num sarau de comoção aguda
e um banjo subterrâneo, à percepção
dizer como justicieiro sem rosto:
Chego-lhe a roupa ao pêlo e o pêlo à boca.
bicharouco aranhiço de tamanha manha
que vive escondido na lombada
e mastiga faminto página a página
o porta da quinta dimensão lírica
guarda da consciência régia
da poltrona do I para o último capítulo
salta esvoaçante de um assalto banquete.
A maçã coroada de uma mente pecada
pior que queima de obra na fogueira
o porta de caneta preta comendo a letra
subindo degraus na escadaria cinzenta
na primeira fileira da total ausência
a procissão chegando ao átrio do final
copos de oiro, baínhas e cinturão
o escrevente de coroa de um reino
branco. Romance Emmental. 




Curso D´água



Deitou a mão ao rio.
E com um baloiçar dos dedos,
orbitas e pequeníssimas ondas nasceram,
turvando o rosto que refletia,
ainda demasiado jovem para saber nadar.
O cálice do botão seco,
jardins de hibiscus, labiríntico recanto
do folho do vestido, entorpecido migrar.
E dançou. Em vez de gritar, cedeu
deixou-se embalar com Zeus
e uma pedra depositando no profundo
manto, apenas o corpo pedindo descanso.
E dos seus frágeis dedos, coxas, queixo
moluscos cristalinos e conchas.
-Sou parte de tudo e tudo parte de mim.

Do silêncio baleias se entoam
do mais grosseiro dos sonares
um submarino rasga o ventre
pulsos e ecos de gente-radar

porque sem estar é demasiado
porque mesmo sem estar, é pesado

e se propagam a metros de distância
pedidos de auxílio, ondas titânicas

Mas o rio termina sempre em oceano.
É qualquer corpo de água fluente
regato, ribeiro, fluxo...cursos.
E a foz não é mais que a chegada.
As águas seguem o seu declive,
temperadas, serenas, conscientes.
De montante para jusante,
encarrilhadas por duas margens.
E é no leito do rio
que o seu corpo se encosta e corre
tudo para no estuário enfim se abrir
delta fértil a florir.








domingo, 18 de janeiro de 2015

O poema do esquecimento




ao chamamento
a galope fugazes, oblíquos fronteiros
de lençóis asas abrindo abetos inteiros
obedientes inertes de dor já espectros
fantasmas chegando do fundo oceânico
Na hora em que são precisos, certeiros
de arco e flecha ao conforto
para nos lembrarmos de quem fomos
por quem nos velamos
e nos revelamos profetas das águas
porque nos mergulhamos no véu
encantamento livre xamãs
a arca de Éon onde nos vagueamos
pelos espaços inter espaços
nos traçamos e entrelaçamos
Morcegos, pendurados do avesso
badalando dos céus baloiço travesso
padrão caleidoscópico azul, nuvens
mata borrão para orbitais à margem
pirilampos candeias na escuridão selvagem
grandeza e miséria, tudo revoltado a dentro
implodindo de olhos abertos, feitiços
à mão de uma pureza de laboratório postiço
Quebra códigos, minerais de ócio
um cão uivando às pernas do dono
de um mundo imaginário sem sono





Poeta convidado deste Blog hoje Nilson Muniz



sin senhores ores

extremos ares lançares
sinceros remos aos mares
leremos palavralores
velozes logo veremos
saberes vozes sabores
fulores vasos faremos
trancemos nossos colares
olhares lares colemos
aqueles novos calores
tremores que nos calemos
amores que nus queremos
pra seres luzicolores
prazeres que não dolores
temores que não teremos
suprimos sempre supores
supremos nos assoprares
serenos que assim seremos
senhores de nós senhores




sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Ode ao Aquário



Rise the wine, no speed ninja time
keep calm, be smart and wait...

na casa dos caranguejos e beijos
plantas dos pés e sonhos
ao volante asa delta, puzzle quiz
a estação balneária na riviera Maya
nas dunas do canal ser dominatriz
a mocidade a gozo, o que trazes no bolso?
afinal tens um aquilino pescoço

rise and warm, dice gira, no advice, fica!

nesta bodega cabaret, Lisa mina citadina
Andam as fomes encarnadas
e as pernas escancaradas
rise your boots
click the button, the bottom line,
seed sede, silk, sempre mine

tudo almas penadas por aí destrunfadas
cavaleiros de lençóis de cartão, anzóis
na betoneira da lama inteira, pavões
ogres, snipers, homens de fato e gravata
piratas de gps de andas mancas
o circo dos horrores, a casa deste senhor

bienvenida a tijuana! oh life! slice and dice
é esse o sweet spot, hócus pócus, The Hit!
e ironicamente se pergunta: estás livre?
Verónica decide foder!

Use the tools, mouse and mouth!
One pair, legs, boobs and swag
Full house, flush, keep in touch!





quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sinal da cruz



I


Quitéria vivia junto à muralha, do lado de fora. Do lado da encosta dos pobres animais, onde não havia nem ruas, nem água canalizada nem electricidade. Vivia numa casa precária que escorregava encosta abaixo pelos campos excomungados do castelo, os mesmos campos por onde escorregaram as rosas do regaço da senhora. Lá do alto, na janela da torre, era possível avistar a casa, a única do lado de fora. 

A. chegou de carro com a mãe por um estreito carreiro enlameado, pararam junto à porta que se encontrava aberta. De dentro da casa o frio vinha recebe-las com gritos de choro de menino de cara mal lavada. Era o irmão mais novo de Quitéria. Logo se chegou à beira da porta, envergonhada sorrindo com o pequeno colado às pernas Trouxemos-te o que te prometi, ajudas-me com os sacos? Espero que sirva. A mãe deu-lhe dois beijos na cara e muito prática abriu a mala do carro. Carregadas de roupa do baú as três entraram. O cenário era pestilento. A mãe olhou pelo canto do olho com a precisão de não mostrar impressionismo. O piso térreo da casa era composto de uma cozinha de tábuas improvisadas, havia uma bacia de loiça onde se amontoavam pratos e copos por lavar e em baixo um garrafão com água. Uma mesa com três cadeiras e uma lareira de chão. Não havia frigorífico, apenas um armário meio torto ao canto donde se deduzia ser a despensa. O cheiro era uma mistura de ocre com terra fertilizada, ao nariz a urina da fralda do pequeno há muito saturada. 
Quitéria abrindo os sacos com um ar tão selecto como descontente Parecem as roupas da avó, não sei se servem. Ela olhou para a mãe com um ar triste Desculpa, era o que tínhamos em casa, espero que sejam quentes. Experimenta este, mãe este casaco era teu não era? É pele verdadeira! 



II

Era um bairro camarário. Havia um largo onde estacionavam os carros e um campo de futebol com redes erguidas para as bolas não fugirem. Todos os prédios eram iguais e nesse tempo, o bairro era ainda pequeno. A relva crescia verde subindo as paredes de fora. As varandas eram pintadas à mão de azul escuro. Por cima de si, havia o Xico Maluquinho, todo o dia pendurado na varanda, com os seus quinze anos de debilidade insultando quem passava, quem no prédio entrava e mais quem imaginava estar por ali atazanando-lhe uma paz esquizofrénica. Oh Tia o Xico não vai à escola? E a Tia respondia-lhe Os pais preferem cuidar dele em casa. Naquele tempo era assim. De funcionários, engenheiros e professores o bairro se foi vestindo de modos de tendeiros.
No rés-do-chão uma família com quatro filhas cujo cabelo chegava ao rabo, a mãe dia sim dia não saltava pela janela fugindo das sovas do marido. Os cavalos roçando a carroça nos carros estacionados comiam da varanda e pela escadaria do prédio um cheiro a querosene era certamente a causa das enxaquecas da tia. Oh vizinho tenha paciência, venha ver o que o seu cão deixou no meu tapete. Ai, senhor engenheiro isso não é do meu Bitolas, nah pode ser atão, o rafeiro já foi c'os anjinhos. 
Quando se fez constar que o senhor engenheiro ia mudar para um terreno que tinha adquirido para os lados do convento, logo lhe assomou à porta a mulher do tendeiro com uma terrina cheia de ouro Ai senhor engenheiro, são cinquenta continhos, ai por amor do senhor senhor engenheiro ajude-nos que a minha filha mais velha tá muito doente, a outra fugiu de casa e as mais novas só dão trabalhos, o mé marido vai a marrocos buscar uma encomenda de fatinhos, ai tem o seu número com certeza, vai-lhe ficar mesmo bem senhor engenheiro, prometo pela minha alminha e pela alminha das minhas filhas e do meu falecido menino que para a semana tem aqui os cinquenta continhos, esteja descansado. E o senhor engenheiro sempre com uma disposição comunista de fé, lá lhe emprestou o dinheiro. Certo que na semana seguinte depois de devolvidos os cinquenta contos, lá vinha a terrina cheia de ouro para penhorar mais setenta continhos e depois de devolvidos na semana seguinte, lá vinha outra vez com mais cem contitos pedidos emprestados. Foi até bater nos cento e vinte, o homem pirar-se de casa e a mulher ficar na rua da amargura porque lá ficou a dívida com o senhor engenheiro até aos dias de hoje.


III

Quando F. perdeu o avô e o filho no mesmo dia. O avô criara-o, mais tempo passara na casa dele que na dos seus pais. Definhava-se numa cama. Bebera sempre demais e as pagas tomavam-lhe a vida agora antes da partida da avó, deixando-a como perdida depois de setenta anos lado a lado. Nesse mesmo dia, corria para o hospital porque a mulher perdia o primeiro filho que vinha a caminho. Faleceram ambos sem que se pudesse despedir do que quer que fosse. Os meses passaram mas um véu de amargura desceu enrugando-lhe o rosto de menino louro de olhos castanhos e doces. Separara-se dela e constava na família que andava perdido da cabeça. Partira para outra cidade, na esperança de tudo para trás deixar e uma vida nova começar. Para trás ficavam assim trinta e sete anos de vida, vinte e dois de namoro de criança e noventa e dois anos de sabedoria boémia.

Nesse tempo já o bairro era de proprietários, alugueis e subalugueis. Uma mistura de gente de várias nacionalidades e ainda alguns tendeiros que por ali envelheciam no café, que a feira era para os novos.  Ainda por lá andava a cigana do cabelo enrolado na nuca e certamente a terrina cheia de ouro pedindo de porta em porta. Foram-se as sovas do marido para dar lugar às sovas dos maridos das filhas e de alguns netos que já levantavam o punho. O Xico Maluquinho agora acolhido num centro ainda por lá passeava na praça amargurando os mesmos fantasmas. Só as bolas já não levantavam cabelo porque o campo de futebol era assim um centro comercial.
F. alugou um quarto num desses apartamentos, precisamente no apartamento antigo da tia de A., onde viviam dois romenos que se desenrascavam com biscates de pequenas obras. 
Dizia-se que daquele bairro só se partia deitado, e embora muitos tenham partido pelo seu próprio pé porque naquele tempo a vida até o permitia, hoje essas palavras caíam certeiras nas vidas que à janela acordavam todos os dias iguais a si mesmas. Todas, excepto para F. e para Quitéria que tudo era melhor que antes, pelo menos assim acreditavam. F. deixara o conforto, a empresa que partilhava com o pai, um BMW descapotável e uma casa de três pisos, mas ali, era como se fosse rei do silêncio interior na sua cama de tábuas de chão no seu quarto bolorento e barulhento. Ainda por alí todos acordavam com a mesma carrinha de madrugada que para descolar o último cilindro despertava o bairro inteiro, as crianças não mais adormeciam donde se seguia uma choradeira infernal. O mesmo homem, hoje velhíssimo mas frio e rijo como o motor da carripana.
A empresa do pai de F. era de construção civil e conhecedor do ramo não demorou nada a juntar-se aos romenos para com eles ganhar a vida. Quitéria por sua vez que todo o sempre trabalhara num café, conseguindo libertar-se das garras dependentes de heroína do irmão, partira também ela. E aqui, nesta mesma cidade, hoje portadora de uma beleza rara pelo descuido imposto de uma vida de nadas, dir-se-ia uma beleza selvagem, conseguira ao fim de uma semana, trabalho numa loja de roupa no centro comercial. Estavam assim a dar os primeiros passos e uma pontada de felicidade lhes tomava o rosto febril de entusiasmo. Brilhavam. E talvez por esse brilho ser maior, um dia Quitéria ao entrar no prédio cruza-se com F. e dos olhos de ambos nascem promessas.



IV

Procurava atrapalhada pelo frasco de perfume, queria rapidamente sair de casa porque hoje era um dia importante. Iria entregar o original na editora e a expectativa de ser mal recebida enturvava-lhe os sentidos de inquietação. Neste país tão distante do seu e ao contrário do seu, os horários eram sagrados. Escrevera finalmente, após anos de tentativas, o seu primeiro romance.
Quando começou esta história, era ainda menina e a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi precisamente o quarto da rainha. De um azul cetim muito suave, o quarto conservava somente a colcha e a cortina. Era um quarto tão pequeno e tão no alto da torre que em tudo lhe inspirava um outro universo. Foi precisamente nesse dia, nessa visita de escola, que se apaixonou pela escrita. E foi também nesse dia que avistou lá do alto a casa.

Venho pedir-vos a vossa protecção. A vós que nunca deixastes de atender a todos que recorriam ao vosso bondoso coração...cheio de confiança no Vosso poder e merecimento perante o Altíssimo, eu Vos peço, dignai-Vos a proteger-me a mim e à minha família contra as incertezas da existência...que possamos sempre estar ao abrigo de privações e de embaraços, que jamais com a graça de Deus e com o vosso auxílio, não falte o pão e o alimento à nossa mesa. 


V

Não disse nada, deixou a porta para trás e começou a subir as escadas. Ele por momentos deteve-se antes de sair. E voltou atrás dela. Sem querer ser intrusivo, subiu lentamente degrau a degrau esperando perceber qual era o andar e a porta. Escutou-a meter a chave no quarto andar esquerdo. E depois de sentir a porta fechar, muito depois, respirou fundo e bateu na mesma. Desculpe incomodar, eu...chamo-me Francisco. Somos vizinhos. Quitéria ficou um pouco atrapalhada, não esperava este encontro, não pelo menos assim tão depressa. Não disse nada. E ele tentou remediar a situação porque as palavras não lhe saíam como desejava Eu...reparei em si agora quando entrava e...pensei em convida-la para qualquer coisa, um café talvez. No café do teatro, foi remodelado, conhece? Ela baixou os olhos. Há muito tempo que não saía com ninguém e temia o envolvimento com um estranho. A demora da resposta levantou em F. todo o passado que esquecera no momento em que a vira e recuou. Desculpe, a ideia foi parva, deve ter outras coisas mais interessantes para fazer na certa. E virando-lhe as costas envergonhado, Quitéria cedeu então Espere, sim, porque não um café? Todos bebemos café não é assim? E beberam, um café, outro café e todos os restantes dias da vida que se seguiu, o hábito de beberem o primeiro café da manhã juntos manteve-se, como que sagrado. Porque assim havia começado. 

VI

O editor odiara o final, tal como previra. Não havia tragédia nem qualquer beleza no mesmo. Era demasiado realista dizia ele. Que fosse para casa e o acabasse dignamente numa semana. Ficou desesperada. O tempo era demasiado limitado. Aquele final era uma fixação, como se agarrado àquele corpo de restante texto nada mais lhe pudesse servir. Mostrou o romance a colegas e muitas ideias escutou mas nenhuma lhe servia, como se uma teimosia lhe tivesse cegado o espírito crítico, consciente de apenas ter uma e uma só chance e de não ser capaz de contornar esse obstáculo por impotência de sabe-se lá o quê. Mas sabia o que era esse quê, se sabia. Como podia ser diferente? Como podia o editor saber que Francisco era o seu marido e que foi precisamente assim que aconteceu e que se fosse diferente, não estaria hoje neste país e muito menos esse romance teria sido escrito. Como podia o editor saber que fora naquele quarto de rainha que avistara pela primeira vez a sua casa de cima, a sua casa tão real quanto um grão de café.

Era importante para si a publicação, sim era. Mas Quitéria sabia que tinha consigo uma história tão maior que a própria história que temia pelo excessivo envolvimento, não ser capaz de a trazer para fora com a mesma intensidade com que a vivera. E foi nesse momento que lhe ocorreu procurar por A., que seria feito dela? Deixara-a perdida pelo romance, como se fosse um conduto artificial, porque na verdade existiu mas acabou por não ter tanta relevância como seria esperado para o leitor. Poderia ela envolve-la no final? Traria valor ao romance? Com que finalidade a introduziria exactamente no final? E a resposta ocorreu-lhe tão obviamente que a própria clareza a assustou. A. era a rainha santa, a mesma que no regaço levava o pão aos pobres, a mesma que a ajudara quando precisara em criança, a mesma que do seu quarto na torre lhe mostrara o que é ver de cima a trágica cova onde nascemos, a mesma que hoje lhe inspirava um final diferente. 

Sinal da cruz.


VII

Desculpe incomodar, eu ia sair para tomar um café no bar do teatro, seria despropósito convida-la? Chamo-me Francisco. Ela estava de avental e embrulhado na aba do mesmo trazia algo que na surpresa deixou cair ao chão. São rosas senhora? E ambos riram-se apanhando os cacos de uma vida que agora prometia um futuro perfumado.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Diário de um bêbado lúcido



Uma memória muito conveniente que escolhe,
sofro de amnésia em consequência de um ataque
aéreo. E em relação ao assassinato, estou certo
de que alguém me matou por dentro.
Oh Chamem-me um detective, chamem-me!
Na noite anterior sonhei com o rosto do Senhor
tinha qualquer coisa de sereno e ao mesmo tempo
inquisidor. Olhava-me como quem se mira
de vergonha ou sátira. Sorri-lhe onírico bêbado,
como podia não rir se o criador nem bem ele
consegue decidir? Venci, nesse jogo de risco
onde apostei que estaria vivo. Até aqui, confirmo.
É um género de estar que se regista ao acordar.
Uma lente grosseira que por instantes turva
onde se aprecia o fantástico, o milagre da vida.
Sim é a ironia que me fala pela boca, ventríloca.
É absolutamente real. Como lavar os dentes
fazer torradas, fumar cigarros, e procurar culpas.
Fiz esta declaração de livre vontade. Sou inocente.
Não fazia a mínima ideia que seria apenas mobília
mesa, cadeira, candeeiro, colcha, garfo, homem.
Tudo no mesmo registo de brincadeira logística.
Ah grandes senhores dos estrados da basílica!
Tenho a maior arma de todos os tempos dentro
da cabeça, ela, a conveniente amnésia aérea!
Por isso, saio para a rua, todos os dias, bebendo
um pouco de tudo o que já está morto por dentro.







Excerto de navegação



o mundo é na verdade, pequeno como bago
o que é grande na actualidade, é o pensamento
vago, desse black-out a taça erguer, frases
que escorregam da barba, impressão de coçar
e debruçar de meia-idade olhando para baixo
desse parapeito sabedor, onde vestígios de caqui
crescem aqui e ali, a nossa assistência não serve
porque o corpo cresce e o que ontem era certo
hoje aperta, e no balanço da janela, a cortina
inventando temas mas ele abandona a ideia e
entrega-se à cadeira. Não tem partido nem raça,
só o toque da companhia do cágado, carapaça
e em toda a ausência
dessa carreira sentimentalista, a cadeira é manca
e ele escorrega pelo oleado do conforto, e bate
com os dois cornos no bico da cómoda, caindo
em cima da cabeça ainda por cima, o relógio
 -Nem bem sei se é tarde se é cedo. Sinto-me
anónimo de tempo.
E no ombro pousou um pelicano
do bico desse outro adereço, assim de surpresa
um galo lhe cresce na testa. E dói. Ainda uma dor
fácil, mas dor.
- É compreensível, estou sempre a jeito. Estou vivo.
E a mulher que jogava hóquei grita do rés-do-chão:
-Está tudo a postos meu capitão. Vamos içar telhas.
Donde lhe vem o pensamento - Está tudo a postos,
mas onde deixei os meus ossos?

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Bubble Gun



rebenta o balão elástica na boca
bubble gum, shotgun, shortcut
concava potencial de extensa
um solitão averso à rotina
para uma supernova na retina
calabi-yau de vitral caruma
surgindo, um céu de baunilha
depois de caída, de um vómito
de oráculo de árvore abatida
-não tenho ninguém!
Um planeta deserto, num outro
universo. Decúbito dorsal
um homem de escaras abertas
se conserva de esperas, ordens
supremas.
-É preciso casas, pontes, igrejas.
Na transparência, a nado, no ato
jurídico cai sem grito, à terra.
E estrabucha, de sangue na guelra
a cabeça uma âncora prematura
de ácido desoxirribonucleico
incompleto. Formas nominais
de um verbo, nascendo. Avé!
O particípio presente. Tem fé!
Era até possível que fosse vivo
no incrível de se ter imaginado
às voltas, mastigado, sugado
considerado como vício.
É preciso retirar o açúcar da dieta!
E foi assim por Deus na garotice
cuspido, tal pastilha elástica uterina.

Shortcut, Shotgun. A vida uma curta,
tomando por vingança a luta e a bala.
Mas convenhamos,
que ser bubble gum tem muito mais
graça!










quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

13



É isso mesmo que falta
bater com a cabeça no muro
ser odalisca de uma garrafa de whisky
correr a maratona descalça
lambendo o chão do planetário
ser apartidário desse voto de glória
animal lagarto forrado de veludo
cantoneiro de cimento, acientífico
cruzamento de deus com foguete
um paquete afundando nas mãos
congestionamento de cadillacs
levantamento de tendas gypsy
falta afinal sermos maus.

É isso mesmo que falta
raspar as unhas da orca
esbanjar em diamantes de quartzo
jogar na lotaria do século passado
sermos vitória de meta nenhuma
caso de incesto sem sexo
envolvimento de múmia sem corpo
polvo de tentáculos de vento
porque ninguém saberá o teu nome
no outro lado, no final prometido
do contorno da esquina direita
da rajada da janela fechada
do cacho de casta bastarda.

É isso mesmo não falha
a espelunca pulguenta esgotada
cabeça embriagada de água de colónia
mastigar-se a côdea sem placa
um gafanhoto de gramofone leão
apontando um cigano ao palácio
hidrólogos no deserto do Atacama
e móveis para decorar a campa
ferramentas para pregar a cruz
bússolas, estetoscópios, lupas
para ver a alma de uma tábua
e o coração de uma alforreca
escamando a pele da cobra de rabo na boca.

É isso mesmo que falta?
Falta sorte, é o que falta.








De outros mundos



Na leitaria que já não as há, era um copo de leite
o peito ardendo de benzina, tudo ideias de merda
só porque esta vida merece sempre outro frame
e as estrelas se deitam em desejos de mijo verde
e vai daí ser consultado, será que estou doente?
sinto-me alienado, mais que isso, deportado
de um qualquer cenário que não me foi destinado
sinto blues, e no balcão me encosto de tantos tus
recusando um lugar cativo, acabo por ser um tipo
de qualquer género, que me importo? o caderno
é onde mil histórias me entornam as memórias
e podia internar-me nas montanhas, mágicas
e podia procurar-me nos palheiros, agulhas
e podia encontrar-me na solidão, em cem anos
e podia candidatar-me ao ministério, do medo
e podia dizer adeus às armas ou ser vinha da ira
e podia ser crime e castigo, laranja mecânica
desassossego, miserável, mensagem, pérola
e podia ser úrsula, madame, prostituta, virgínia
mas no pensamento o badalo de um único sino
frenético-franco: Nós vamos apodrecer cá dentro!
E por isso enfrento gritos, blasfémias, vénias
estremecendo a nudez de guerras de olhos abertos
da corneta a manhã captura a armadilha sedenta
leio em voz alta: à putrefação de uma mente benta!





Poeta convidado de hoje neste Blog: Afonso da Mata



Sim, digo-te hoje
mais que teme-lo, gosto de senti-lo.
Gosto de vivê-lo.
Gosto de dizê-lo.
Gosto de dizer que te amo.

Cada dia um novo amo-te.
Novas entoações, novas intenções, novas interpelações.
O sentimento igual.
Tal e qual, sem tirar nem pôr.
Aliás, pôr.
Muito mais amor.

Cada dia um novo ano.
Partilhas, sentimentos, vivências,
que davam para encher 365 dias.
Davam para encher 365 pilhas, de livros
com descrições de sensações,
fantasias e confidências.
E indecências sintáticas que na prática,
não são mais do que o expressar desse NÓS que é maior do que nós.

O expressar desse AMO-TE que é maior do que um simples Amo-te.
Gosta-se das coisas, adora-se os deuses, ama-se as pessoas.
Então este AMO-TE que é maior do que um simples Amo-te,
É maior do que um simples Amo-te, porque
NÓS
somos mais que pessoas, mais do que deuses, e gostamos muito das pequenas coisas que fazem de cada um de nós, NÓS.

Há dias em que temo dizer que te amo.
Com medo que com outra entoação, com uma outra intenção, ou numa outra interpelação, esse AMO-TE
não soe maior do que um simples Amo-te.

Mas sim, digo-te hoje.
Mais que teme-lo, gosto de senti-lo.
Gosto de vivê-lo.
Gosto de dizê-lo.

Gosto de dizer que te amo.

Cada dia um novo AMO-TE.
Cada dia um novo NÓS.



Afonso da Mata