terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Homens Maus




Diz-se que sem a cabeça o nosso corpo seguiria em direção ao mar para se aventar ao fundo. E quem diz mar diz precipício, ponte altiva entre margens, terraço de arranha-céus. Mas por aqui, citadinos de aldeia, andamos com a cabeça ao peito, amanhando-a de carícias maternas e frutos nostálgicos. Dizem os antigos, que é o melhor antídoto para a morte.


I

Maria Antónia apressada arrastava o filho pelo braço ladeira abaixo. Na outra mão a cesta de peras amarelas como o tempo dos caracóis no prato. Remoendo todo o caminho com os seus botões Raios parta o miúdo! Já tinha idade para saber a hora errada da birra. Logo hoje que o Manel não aparece e terei de abrir a banca sozinha. Os tamancos escorregavam-lhe dos pés transpirados da corrida. As bancas nunca estavam definidas, quem chegasse primeiro tinha o melhor lugar para a venda, incentivos de alguém que nunca vendera uma nêspera na vida, ai se eu pudesse, se eu pudesse bem sei o que fazia da minha vida. E neste pensamento olhava para o rosto choroso do filho compadecendo-se Tu vinhas comigo meu príncipe, vinhas pois. Agarrando nele, pegou-o ao colo para mais depressa chegar. 
-Mas o que vem a ser isto tia Anita? Então agente agora tem que estar na fila? Estamos tramadas, não há melhoras nenhumas. 
-Rapariga, este não é tempo de vida para ninguém. Quando eu era garota havia miséria mas havia trabalho. Só morria de fome quem não vergasse o corpo. Agora, bem podem as pernas ganhar varizes de tanto esperar por um lugar. Isto está tudo do avesso é o que é. 
Aproximando-se da outra encostou-se para reservar o seu lugar mas começando a fazer contas às bancas e ao número de vendedoras...Oh tia deixe lá isso, isto hoje é peixe morto na costa. Sabe que mais, vou para casa, o miúdo já anda constipado ainda me adoece e depois é que são os trabalhos para a conta da farmácia. Tenha um melhor dia.
-Vai com Deus rapariga. 

De volta, o miúdo já pelo seu pé, Maria Antónia atrasando o passo de nada ter que fazer imaginou-se novamente longe dali. Senhora de terras, vestidos de seda, anéis de pedras e comida farta à mesa. Imaginou-se criando o filho numa boa escola, tomando chás e conversando sobre modas. Imaginou-se sobretudo sem marido...Aquele traste, de que me serve, só para fazer filhos e depois eu que trate deles. Aposto que ainda está na romaria a estas horas. E mudando a direção do ladrilho que por estes dias era mais esburaquilho, assumou-se de saber na porta do tasco do Quinzinho pelo Manel da Horta. Da escuridão do balcão de mármore, a voz do velho taberneiro respondeu-lhe Mariazinha, o té marido já se mandou daqui há horas, era madrugada, foi dos últimos pois foi, mas foi. Ela afastou o garoto e aproximou-se já do lado dentro com a mão na anca em tom de pega Pois então foi pás putas foi o que foi, porque a minha cama fria está. O outro encolheu-se e puxando do ombro o pano encardido começou a polir os canecos de barro. Ela virou costas É isso mesmo que é preciso, polir o barro! Bem o entendo...Porra pra isto tudo! Tapa os ouvidos miúdo! Vamos embora, é desta que vamos.  E o miúdo olhou para a mãe ainda sem compreender a força desta decisão mas orgulhoso pela convicção com que a mãe proferira aquelas palavras. A mãe era a sua heroína, a cavaleira de espada erguida que segurava a casa...o pai...enfim, nem bem ele sabia como via o pai, talvez nem o visse sequer incluído nas suas histórias fantásticas de contos de reinados e conquistas. A verdade é que tão pouco o via e do pouco que via preferia não ver. Orgulhoso cavaleiro, agora senhor, seguia a mãe, desta vez sem birra. Algo mais importante estaria para chegar. A partida. 


II

A porta de casa ficara escancarada. Tal como as gavetas umas vazias outras assaltadas sem mérito. 
Numa trouxa querendo ser ligeira, colocou apenas o essencial...Também de resto, isto são só trapos. Anda meu príncipe, traz aquilo que mais importante é para ti, anda depressa antes que o teu pai regresse. O miúdo correu ao quarto ainda com a cama desfeita e olhou para o seu único brinquedo. Um cavalo de pau tosco que recebera pelo seu aniversário. Correu de novo ao quarto da mãe com o intuito de saber se podia levar o cavalo mas vendo a singelidade de tudo, abandonou a ideia. Ergueu o peito, ajeitou a boina e disse Estou pronto mãe. Maria Antónia olhou para o filho...como estás crescido! Vai à gaveta da costura e traz da caixa dos alfinetes, por baixo, tu sabes, as notas que lá estão. Não há-de ficar com nada! Ai se não há-de teu rico pai. 
Na paragem das carreiras, aguardavam os dois impacientes como dois fugitivos sem papéis. Ás duas da tarde partiria a próxima para a grande cidade. O caminho era longo e como ainda tinha tempo, depois de comprar os bilhetes Maria Antónia dirigiu-se à padaria da frente para buscar o farnel. O filho ficara a olha-la guardando a trouxa. De cada vez que a mãe se afastava sentia no peito um medo muito profundo, como se um pedaço de si estivesse a ser arrancado e doesse nesse buraco. Não a largou de vista e só descansou quando a viu sair da padaria com o saco na mão das carcaças. Maria preparava-se para atravessar a estrada e olhando uma última vez para o filho pensou...como estás crescido e corajoso. E por distração sua, atravessou-se sem olhar. Foi quando um carro daqueles modernos citadinos, rompeu de uma curva a toda a velocidade e lhe passou por cima. As carcaças rolaram no tapete alcatroado da estrada nacional. Mãe! O miúdo correu ao corpo da mãe ainda quente mas já morto. Na mão os bilhetes. Logo de dentro da padaria o mulherio correu à estrada. Vendo-se numa situação de pânico, agarrou no bilhete ensanguentado e correu para dentro da garagem das carreiras. Iria afinal sozinho, com apenas oito anos. 

III

O caminho tal como a mãe havia dito, foi longo. Mas o trauma deixou-o num entorpecimento anestésico, dormindo. Perto da chegada, as luzes se inaugurando de deslumbre. Despertou como de um sonho mau. O motorista lá da frente fez-lhe sinal para que se chegasse a ele Rapaz, está alguém à tua espera certo? Sim...coçando a cabeça...Está a minha tia. O motorista acenou-lhe com a cabeça cedendo e pode então desfrutar do primeiro encontro com as portas da cidade pela janela bacenta. Tudo era gigantescamente vasto. Ruas, avenidas, semáforos, carros se atravessando, pessoas de um lado para o outro, lojas, botequins, fontes e letreiros piscando o caos. O que faz um rapaz de oito anos sozinho numa cidade como esta? Que farei eu quando desta carreira saltar? A dor da perda da mãe dava agora fugazmente lugar a um instinto de sobrevivência que muito rapidamente lhe chegou. Assim que saiu da carreira e vendo que o motorista estava de olho nele, pegou na trouxa e correu aos braços de uma senhora bem vestida de chapéu que fumava por uma boquilha. Ela, apanhada de surpresa sorriu e foi o que bastou para o motorista se concentrar na entrega das bagagens dos restantes passageiros. O rapaz vendo então caminho livre, pediu desculpa pelo engano e procurou pela saída. 

Caminhando sem rumo pela noite das ruelas desconhecidas, o aperto lhe tomou novamente o espírito. Mas pontapendo-o retorquiu para si mesmo Que raio! Agora sou um homem. Não tarda o pelo me está crescer no queixo e eu hei-de ser alguém. Na beira de um passeio havia um tufo de erva, escarafunchou e agarrando em terra, mascarou o rosto de sujeira na tentativa de parecer mais homem. Procurou pelo maço de notas na trouxa...Está na hora de procurar um canto para dormir, não sei se o que mãe juntou é muito, aqui talvez tudo seja mais caro. Como a noite estava quente decidiu dormir acolhido num canto discreto e no dia seguinte procurar trabalho. Como dormira toda a viagem o sono tardou a chegar-lhe e as memórias do dia caíam como vagões em cima dos frágeis ossos de porcelana. O rosto da mãe correndo apressada nessa mesma manhã, o rosto da mãe ralhando, o rosto da mãe em fúria, o rosto da mãe terno, o rosto da mãe decidido e protetor, o rosto da mãe agora frio e distante. As lágrimas caíram-lhe na mãos como ainda não haviam caído. A sensação do total desamparo. 

IV

A cidade era uma armadilha para anões de circo como ele. Criado numa redoma, tudo era novidade e em si, a ingenuidade deveria dar lugar rapidamente a esperteza saloia. Assim que despertou com os primeiros raios de sol a sua demanda por trabalho começou. Bateu na porta de retrosarias e drogarias, atrás do balcão aprenderia rapidamente e venda era o que tinha assistido desde sempre. Durante toda a manhã recebeu respostas negativas devido à sua jovialidade. Como não queria ser apanhado pelas autoridades pois já tinha ouvido em tempos de desespero a mãe dizer que os meninos que se portavam mal iam parar às instituições que os acolhiam e onde se dormia com os pés de fora e se levava reguadas de manhã à noite, inventara a história de que vivia com uma tia que tinha muitas dificuldades e estava doente. Outros rapazes vira nesse dia atrás do balcão mas de facto não tão novos como ele. Pela hora do almoço e sem comer desde o dia anterior, não aguentando mais, entrou num café e pediu pão e leite. 
Sentou-se na mesa mais distante e observou os cavalheiros que chegavam de cachimbo e botas afiadas. As pessoas tinham um ar diferente da sua aldeia. Eram grosseiras, apesar das vestes cuidadas e luxuosas, pareciam todas envelhecidas por um poluente de tempo acelerado. Os carros atravessavam a todo o vapor as avenidas e a imagem do atropelamento aparecia constantemente. Desviou o olhar da janela e focou-se numa senhora que bebia solitária por uma chávena florida. Devia ter a idade da mãe. Algo nela lhe tomou o rosto. Talvez o cabelo cor de mel encaracolado escapando do chapéu ou talvez a delicadeza do pulso onde tilintava uma pulseira de oiro entrelaçada. A pulseira. Os seus olhos salivaram. Se conseguisse vender aquela pulseira estaria rico por meses a fio. Era exatamente esse o tipo de pensamento que vira no pai toda a vida...Não, a mãe haveria de querer que eu fosse mais que um simples ladrão. Outra vida procurava ela naquele dia, outra vida. Mais confortado depois de acabar a refeição levantou-se com ideia de retomar a procura. E foi nesse momento que a senhora o chamou, aproximou-se tímido. Rapaz, és tão novo para estares aqui sozinho, o que fazes por estes lados? A pulseira voltou a seduzi-lo tal saia levantada no asilo. Ele soprou e com toda a sua ainda infantil virilidade respondeu Procuro trabalho minha senhora, qualquer coisa, desde que seja honesto. 
Ela percorreu todo o corpo dele examinando-o Não tens ninguém pois não? E novamente o rosto da mãe lhe apareceu no rosto dela. Talvez por isso tenha sido sincero e tivesse deixado cair a máscara De facto, não. Mê pai era um perdido e minha mãe, que Deus a tenha, faleceu de atropelo. E ela continuou Lamento muito. Senta-te aqui por um momento. Não és de cá pois não? Ele abanou a cabeça confirmando. Tenho um grande jardim que precisa de cuidados e um filho pequeno que agradece companhia, percebes alguma coisa de jardinagem? O rapaz não queria acreditar Nã percebo mas aprendo logo logo. Vou sim, vou agora. E levantando-se recolocando a máscara de senhor de si mesmo É para que lado minha senhora? Vamos? Antes de se levantar ela quis saber ainda Como te hei-de chamar? Ele coçando o queixo ainda por um momento. O seu nome de menino da sua mãe, mas porque não mudar de nome? Porque não? Se estava a começar uma outra vida tão distante da sua. E das histórias sobre cavaleiros de nomes herdeiros o nome lhe chegou Ivan. Tenho dez anos e nasci na capital. Encantado minha senhora. Terminando com uma vénia, que a fez rir e sorrir de encantamento. 


V

Ivan queria que a sua história tivesse sido assim. Queria dessa metade de si tão pura que a senhora o tivesse de facto convidado para cuidar do seu jardim. Mas a sua cabeça de menino era apenas uma ratoeira, as fantasias de embalo materno pesavam ainda na sua tenra e solitária idade. E não foi. Quando despertou desse devaneio já a senhora havia partido e no lugar dela dois cavalheiros discutiam sobre apostas de cavalos. Atento ao novo negócio, as suas orelhas ferviam já nas notas que via cair do céu como linhas de chuva fáceis. No bolso o molho de notas saltitava. Porque não apostar? Se eu posso duplicar o que tenho, porque não? A mãe nunca lhe falara de apostas e nesse sentido não havia o que contrabalançar. Aproximou-se da mesa dos cavalheiros e estendeu o maço de notas Meus senhores, gostaria de apostar convosco. Os dois tiveram a pior reação possível, o riso incontrolável que chamou a atenção do estabelecimento inteiro. Envergonhado recolheu as notas. Um deles falou então Meu rapaz, cuidado com isso, ainda está aí uma boa quantidade de dinheiro, cuidadinho para não seres enganado. O rapaz entregou-se à terceira cadeira disponível desalentado. E o homem olhando para o outro em busca de consentimento inquiriu Mas o que tu procuras é trabalho não é verdade, esse dinheiro é tudo o que tens? Talvez tenhamos um bom arranjinho para ti mas para isso temos de saber se serás de confiança. O rapaz endireitou-se voltando a esperançar-se. Sabes como funcionam as apostas não é verdade? Se não sabes aprendes depressa que tens ar espertino. Ora convinha-nos um moço de recados digamos assim. E para um primeiro teste, aqui tens a morada e os ingressos, deves retomar aqui com o valor exato que está aí apontado. Dentro de uma hora! 
Desnorteado agarrou no ingresso e saiu esbaforido para a rua que a essa hora adormecia numa sesta de moléstia. Anotado. Esta palavra implicava saber ler, coisa que a mãe não tivera grande tempo de adiantar. Olhando para o pedaço de papel desdobrado procurou orientar-se nas letras. Por outro lado para desajudar não fazia a mínima ideia de onde ficava a morada e decidiu por isso, alguns metros à frente, pedir orientação numa mercearia. O homem bolachudo explicou-lhe que era longe para ir a pé e que devia tomar o comboio urbano que atravessava a cidade a qualquer hora. Era a primeira vez que se encontrava dentro de uma coisa daquelas, um comboio que andava ao lado dos carros no mesmo piso de alcatrão. Não teve dificuldade em chegar dessa forma ao destino e na porta anotada bateu. 
Um outro homem de bigode repenicado e jaqueta apertada apareceu. 
Ele estendeu o ingresso sem proferir palavra. O homem voltou a dentro e de volta trazia um envelope que lhe entregou dizendo À confiança, a ver vamos. Guardou-o no bolso sem se lembrar de conferir dadas as próprias palavras do homem terem-no colado a ele como confiável. De regresso ao comboio, encostado à porta, numa das paragens que não a sua, um rapaz um pouco mais velho que ele meteu conversa Tu tens cara de quem gosta de se divertir. Ele atrapalhado procurou desviar a atenção do outro Não sei...estou com pressa. O outro, marialva, insistiu Nah, pressa pra quê? O comboio não anda mais depressa por isso. Anda comigo quero mostrar-te o que se passa na última carruagem. E não lhe dando alternativa puxou-o pelo braço atravessando duas outras carruagens. Ali estava a derradeira última passagem, uma porta de correr. Ivan deteve-se mas foi empurrado para o outro lado. Caros amigos, quero-vos apresentar o meu novo amigo...chama-se..ah..como é que te chamas mesmo? Não importa. Saca da nota que é hora de aposta. Ele estremeceu Aposta? Mas também aqui? No chão da carruagem duas tábuas feitas das placas diretrizes das estações e divididas ao meio por um cordel de fio daquele que a mãe usava para atar a galinha que se fazia passar por peru todos os natais. Dois rapazes na ponta oposta retiraram do bolso dois ratos brancos gordos. Um parecia ter os olhos mais vermelhos que o outro. Eu aposto no da direita e tu? A aposta é para dez contos. Apeitas-te? Sentiu que não tinha escolha possível, os rapazes tinham um aspecto hostil, escutou o comboio parar, provavelmente esta seria a sua saída. Da testa escorria agora uma gota de nervo. Puxou do maço e retirou duas notas de cinco. Na direita será. E o rato da direita perdeu. Tivemos azar, passa para cá a nota gaiato. Sentiu vontade de chorar mas engoliu as lágrimas pensando na mãe e no tanto que se esforçara para fazer dele um homem de valor. Entregou a nota e expirando confiança voltou-se procurando a porta de correr. Mas o outro insistiu Já de partida? Nah vamos lá ver se desta vez tens mais sorte, olha ali o rato do Joca. Aquele não falha, a aposta desta vez é para vinte contos, anda a ver que ainda recuperas o que perdeste. 
Ivan levou a mão à testa agoniado, o outro vira certamente a dimensão do maço, ocorreu-lhe como fora ingénuo em andar com tanto dinheiro e mais ainda o envelope que o outro nem desconfiava mas que se se atrevesse a buscar no bolso dele, encontraria facilmente. Era preciso desenvencilhar-se daquela situação, mas como? Foi quando se recordou do filho da tia Anita, o desgraçadinho da terra que tinha ataques do nada e se atirava para o chão parecendo que o estavam a matar. 
Ivan atirou-se para o chão como se as forças lhe tivessem falhado, começando a revirar os olhos para o branco e cuspindo espumando da boca enrolando a língua. Parecia possuído pelo demónio. Os outros pouco habituados a estes cenários porque é certo que ainda hoje a diferença é mantida escondida nas quatros paredes do lar, fugiram de susto pela carruagem fora deixando para trás os ratos e as notas. Ivan não queria acreditar. Rebolando de riso no chão desta escapei minha mãe, desta escapei. Pegou nas notas acrescentando-as ao maço e saiu para voltar para trás donde deveria ter saído. Dos outros nem sinal. 


VI

Ao entrar no café apenas um dos homens, o que estivera calado, estava lá sentado esperando-o. Mostra daí o envelope. E abriu-o contando as notas. Vai na contagem e para. Levantando um braço e uma chapada no rosto do rapaz Mas estás a gozar comigo? Então o resto? Queres ver que se armou em espertinho logo da primeira vez. Ivan nervoso negava com todas as partes do seu corpo Não, mas foi exatamente isso que recebi, não roubei nada. E as lágrimas correram mesmo pelo rosto. Então mas tu não confirmaste? Queres ver a ensinar a missa ao padre, olha agora o traste. Ivan implorou Juro pela alminha da minha mãe senhor, juro por tudo o que é mais sagrado que não roubei nada, foi isso que o homem me deu. O homem encostou-se na cadeira refletindo, agora um silêncio constrangedor os seguia com mil olhos. Já sei o que vais fazer...vais voltar lá e pedir o resto como combinado. E se não regressares juro eu que nem que vire esta espelunca de cidade do avesso que te encontro e te arranco essa cabeça de vento do pescoço, vai!
E foi, mas foi tão depressa quanto as pernas lhe permitiram para fugir daquela avenida, daquele bairro, daquela cidade. Foi no plano de fugir daquele enredo, que mal tinha começado e tantos perigos já se tinham instalado. Afinal ele era ainda um menino. Não haveria forma de o ser? 
Caminhando sem alento o que o tomava agora era uma pequenez mas não de idade ou maturidade e sim de ínfima partícula insignificante. Não creio que alguém queira saber de me ajudar mãe. Estou perdido, porque não te impedi de partirmos? Talvez tudo tivesse sido evitado...
Estava assim sentado no lancil do passeio quando um cão se chegou perto fuçando-lhe a cabeça. Não obtendo reação dele, encostou-se deitando-se. E vai daí lança um desabafante suspiro parecendo uma pessoa. Ivan levantou a cabeça e observou-o. Tinha o pelo mal cuidado, algumas rapadelas e seguramente pulgas porque se coçava agora de boca aberta como que excitado por ter obtido atenção. Como te chamas? Não falas não é? A mãe nunca me deixou ter um cão, dizia que para trabalhos já bastava ê. Não tens coleira, podes ser meu, vou chamar-te de Sarilhos. É bem, ao fim ao cabo nã agoiro nada de melhor por estes lados. Que me dizes a um passeio? Que tal conhecermos a ponta norte da cidade? O homem da mercearia falou de ser uma zona que nã tem nada a ver com esta, do lado oposto por onde andei hoje, vamos daí meu velho companheiro? 
O cão de pronto se levantou e o seguiu. Caminharam por um par de horas na direção que o merceeiro indicou como oposta e a cidade se foi mutando para bairros de moradias e parques de baloiços de aviões e escorregas de ferro metalizado. Ivan foi começando a sentir-se mais leve. Tudo por aqui parecia mais familiar e envolvente. 


VII

Não são os homens que são maus, são as crianças que são ingénuas. No banco do jardim de frente para o parque infantil, o homem falava como se estivesse a declamar no mais importante dos saraus. A garrafa se entornava pela goela e o entusiasmo do discurso para com Ivan crescia. O cão dormia já aos pés do seu novo dono. É preciso ser-se poeta para suportar as agruras da vida, ou poeta ou bêbado. Mas tu ainda és muito jovem para saber alguma coisa da dor. Desde que Ivan se sentara para descansar as pernas naquele banco que o homem, ao seu lado desde sempre, falava como se Ivan não fosse alguém, nada sobre si lhe perguntara, dava ideia de que o homem apenas precisava de ouvidos e silêncio. Mas Ivan estava cativo daquelas palavras, nunca tinha ouvido ninguém falar com tamanha mestria. Muitas vezes escutara o álcool da boca do seu pai, mas era um destilar diferente, era uma agressividade verbal pura com porrada à mistura. Meu caro amigo, chamo-me Zacarias, os amigos, quero dizer, os cavalinhos de ferro e os pássaros que tudo emporcalham por aqui chamam-me o poeta do jardim do éden. Moro aqui desde que me lembro, mas também não lembro mais que o dia de hoje, também para que queria eu recordar uma vida que a mim não cabe viver? Ando por aqui, deambulando nos atalhos da vida dos outros, renovando-me dos veios que sangram a dor de ninguém. 
Ivan sentia-se adormecido nas palavras de Zacarias. Quando este referiu o cavalinho de ferro uma única imagem lhe alcançou os olhos, o seu cavalinho de pau tosco. Nem tanto tempo passara mas tão distante tudo isso lhe parecia agora. Era como Zacarias dizia, viver a vida que a si não lhe cabia viver, que vida essa? Esta? Ele? Ivan? Ou antes Miguelinho? Quem era ele hoje? Não podia ser o mesmo de certo. Não cabia dentro de si o mesmo. Nem sobreviveria por aqui o mesmo. Acabou por adormecer encostado no ombro de Zacarias.
Quando despertou não o encontrou no banco mas logo apareceu cambaleando detrás de uma árvore Bom dia rapaz, não há nada como aliviar na natureza, o homem insiste em estruturas mas aqui é que está a beleza da coisa, aliviar o cú nas ervas, que maravilha! Ivan espreguiçou-se e falou então pela primeira vez a Zacarias Bom dia, não sabe se consigo arranjar por aqui trabalho com facilidade? A propósito chamo-me Joel e venho do Norte. O poeta riu-se Do norte? Mas tu lá tens pronúncia do norte! Trabalho? Tenho alergia, olha a minha pele já toda eriçada, sou altamente alérgico a tudo o que não seja poético e o trabalho meu caro foi inventado pelos capitalistas para nos cegarem e envolverem numa estrutura tão perversa como mortificante, género fermento para mais e mais crescer a riqueza do seu próprio bolo, para que queres tu ser escravo rapaz? Joel, como se intitulava agora, ficou confuso Mas então de que hei-de eu viver? 
O homem tirou do bolso das calças de retalhos um pedaço de pão seco e partilhou-o com ele continuando Puxa pela cabeça, se não queres ser escravo só tens duas soluções, uma é seres patrão, outra é seres artista e esperares que a sociedade te reconheça como tal. Joel inquiriu Então ser artista é ser calão? Zacarias riu-se numa gargalhada que espantou a passarada já interessada nas migalhas É exatamente assim que a sociedade o pensa, e se o pensa, ora ora, quem somos nós para ir contra a maré, junta-te a eles se não os podes vencer e torna-te um parasita por eles mesmos criado. Fiz-me entender? E agora a ver um trago dessa zurrapa que a garganta já engasga.
Joel olhou para o cão e levantou-se estendendo a mão Gostei de o conhecer, pode ser que o venha visitar um dia destes. Zacarias desdenhou Não faças promessas que ainda és muito novo.


VIII

Havia qualquer coisa de estrábico no mundo que Zacarias descrevera mas para Joel tudo era agora uma lição. E no bolso o maço de notas que lhe compraria tempo mas não tanto tempo assim. Era preciso encontrar um destino ou qualquer caminho que o retirasse da rua. Havia ainda um perigo maior que só ao deparar-se diante de uma montra com televisões, onde repetidamente nos ecrãs imagens de uma aldeia não muito diferente da sua, lhe ocorreu E se o pai estiver à minha procura? Eu não quero ser encontrado por ele! Desviou o pensamento da cabeça, acreditava ser uma agulha numa cidade grande demais para ser encontrado. Avistou então uma padaria no outro lado da rua Sim, pão fresco saberia mesmo bem agora. Mas quando estava a atravessar a estrada para se dirigir para lá, do outro lado viu o corpo da sua mãe, ali mesmo, direito, de pé, flutuando para ele. Deteve-se sem atravessar. Lá bem que a tia Anita de vez em quando falava de fantasmas, mas ê nunca vi nenhum. Nã na é possível. Mas...diante da possibilidade de poder ser abraçado pela mãe, olhou para um lado e para o outro e atravessou na direção dela. No entanto, ao aproximar-se a imagem se foi diluindo e chegando mais perto, nada a não ser respiração sentiu. A sua própria respiração, batendo forte o coração. Agarrou-se ao peito e encostado à parede ao lado da padaria voltou-se para a estrada e novamente do outro lado estava a mãe Nã pode ser! Que me queres minha mãe? Que atravesse novamente? Mas para quê? Daí vim eu! E essa frase se clarificou aos seus ouvidos como melodia descodificada por quem sabe ler pautas de música Voltar, então é isso, achas que devo voltar e cuidar do pai e de mim, é isso? E a mãe do outro lado da estrada, sorriu. Voltar para o meu lugar, a minha casa, a minha terra, a nossa terra. Mas estarias assim tão errada em partir? E como posso eu voltar se nem bem eu sei quem mais sou?

IX


Miguelito estava na pagarem das carreiras aguardando o caminho de volta. A seu lado Sarilhos com uma corda ao pescoço ladrava para uma senhora que comia um pão com chouriço Deixa-te disso, logo chegaremos a casa e arranjo-te um osso bem grande, se é que ainda temos casa! Sabe-se lá o que o pai inventou por lá. Dói-me tudo, parece que se passaram anos! Confesso que me vai custar tanto voltar como foi partir, ela nã tá mais lá, será ainda mais dura a vida do que por aqui e eu tinha tanto mais para viver, mas porque raio haveria ela de me querer de volta?
Dormiu como dorme uma criança sem preocupações de maior, dormiu como dormira na viagem de partida. E quando escutou o sino da igreja soube que estava a chegar. O motorista não era o mesmo mas pareceu não estranhar a sua viagem solitária, aqui tudo era tranquilo, não importava com que idade se chegava, era-se sempre bem vindo. 
A medo encaminhou-se para as proximidades da sua pequena, que agora ainda lhe parecia mais pequena, casa.  Era novamente noite, escutavam-se grilos e corujas do alto dos montes e a luz da janela ao lado da porta anunciava que alguém estaria em casa. Tremia como não antes, nem sabia bem o que temia, mas tudo em si se agoniava. O cão ladrou e a porta se abriu. Era a tia Anita. Ai meu rico menino graças a Deus, graças ao senhor e a todos os santinhos que estás vivo e aqui à minha frente. A tua santa mãezinha escutou as minhas preces. Entra filho, entra, pareces diferente, sabes lá a desgraça que se abateu sobre a tua família. Senta-te aqui ao lume. Apesar de ser Verão, por aqui as noites arrefeciam muito e Miguelito sentiu um conforto materno nas labaredas inchadas do lume de chão. A tia Anita continuou coçando a borda da bata O tê pai depois do acidente da tua mãe endoideceu, o home parece que andava a jogar afinal, apostas dizem, coisas da cidade que se assomaram por aqui por ordem do demo. E foi tamanha a carraspana e tamanha a culpa que se atirou do cimo da igreja. Morreu na hora, que Deus o perdoe. Só restas tu meu menino. Esta casa agora a ti te pertence. Mas diz-se por aí que o tê pai da jogatana emprenhou dívidas e que andam atrás de ti. Sabe-se lá para quê. Ai filho, tava em trabalhos de não saber de ti.
Miguelito ouvindo estas palavras empalideceu, se alguma cor ainda lhe restava no rosto. Seriam os mesmos que aos olhos desses ele traíra na cidade? 

X

Onze anos passaram sem que Miguelito desse conta de tão embrenhado na vida de cálculos e estratégias andara. Erguera o primeiro casino das redondezas com apenas dezassete anos com documentos provenientes de Espanha, era agora Don Miguel. Temido e respeitado por todos. Como o pequeno Miguelito dera a volta à trágica herança que recebera muitas histórias se conjecturavam, mas a verdade só ele a sabia e essa regressava em noites de insónia para o atormentar dos seus pecados mais sombrios, pecados que não caberiam nas mãos de uma criança de oito anos, se os tivesse vivido como criança até ao fim.

Mas como dizia o poeta Zacarias tomado como antídoto Se não podes vencê-los, junta-te a eles. 

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