quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sinal da cruz



I


Quitéria vivia junto à muralha, do lado de fora. Do lado da encosta dos pobres animais, onde não havia nem ruas, nem água canalizada nem electricidade. Vivia numa casa precária que escorregava encosta abaixo pelos campos excomungados do castelo, os mesmos campos por onde escorregaram as rosas do regaço da senhora. Lá do alto, na janela da torre, era possível avistar a casa, a única do lado de fora. 

A. chegou de carro com a mãe por um estreito carreiro enlameado, pararam junto à porta que se encontrava aberta. De dentro da casa o frio vinha recebe-las com gritos de choro de menino de cara mal lavada. Era o irmão mais novo de Quitéria. Logo se chegou à beira da porta, envergonhada sorrindo com o pequeno colado às pernas Trouxemos-te o que te prometi, ajudas-me com os sacos? Espero que sirva. A mãe deu-lhe dois beijos na cara e muito prática abriu a mala do carro. Carregadas de roupa do baú as três entraram. O cenário era pestilento. A mãe olhou pelo canto do olho com a precisão de não mostrar impressionismo. O piso térreo da casa era composto de uma cozinha de tábuas improvisadas, havia uma bacia de loiça onde se amontoavam pratos e copos por lavar e em baixo um garrafão com água. Uma mesa com três cadeiras e uma lareira de chão. Não havia frigorífico, apenas um armário meio torto ao canto donde se deduzia ser a despensa. O cheiro era uma mistura de ocre com terra fertilizada, ao nariz a urina da fralda do pequeno há muito saturada. 
Quitéria abrindo os sacos com um ar tão selecto como descontente Parecem as roupas da avó, não sei se servem. Ela olhou para a mãe com um ar triste Desculpa, era o que tínhamos em casa, espero que sejam quentes. Experimenta este, mãe este casaco era teu não era? É pele verdadeira! 



II

Era um bairro camarário. Havia um largo onde estacionavam os carros e um campo de futebol com redes erguidas para as bolas não fugirem. Todos os prédios eram iguais e nesse tempo, o bairro era ainda pequeno. A relva crescia verde subindo as paredes de fora. As varandas eram pintadas à mão de azul escuro. Por cima de si, havia o Xico Maluquinho, todo o dia pendurado na varanda, com os seus quinze anos de debilidade insultando quem passava, quem no prédio entrava e mais quem imaginava estar por ali atazanando-lhe uma paz esquizofrénica. Oh Tia o Xico não vai à escola? E a Tia respondia-lhe Os pais preferem cuidar dele em casa. Naquele tempo era assim. De funcionários, engenheiros e professores o bairro se foi vestindo de modos de tendeiros.
No rés-do-chão uma família com quatro filhas cujo cabelo chegava ao rabo, a mãe dia sim dia não saltava pela janela fugindo das sovas do marido. Os cavalos roçando a carroça nos carros estacionados comiam da varanda e pela escadaria do prédio um cheiro a querosene era certamente a causa das enxaquecas da tia. Oh vizinho tenha paciência, venha ver o que o seu cão deixou no meu tapete. Ai, senhor engenheiro isso não é do meu Bitolas, nah pode ser atão, o rafeiro já foi c'os anjinhos. 
Quando se fez constar que o senhor engenheiro ia mudar para um terreno que tinha adquirido para os lados do convento, logo lhe assomou à porta a mulher do tendeiro com uma terrina cheia de ouro Ai senhor engenheiro, são cinquenta continhos, ai por amor do senhor senhor engenheiro ajude-nos que a minha filha mais velha tá muito doente, a outra fugiu de casa e as mais novas só dão trabalhos, o mé marido vai a marrocos buscar uma encomenda de fatinhos, ai tem o seu número com certeza, vai-lhe ficar mesmo bem senhor engenheiro, prometo pela minha alminha e pela alminha das minhas filhas e do meu falecido menino que para a semana tem aqui os cinquenta continhos, esteja descansado. E o senhor engenheiro sempre com uma disposição comunista de fé, lá lhe emprestou o dinheiro. Certo que na semana seguinte depois de devolvidos os cinquenta contos, lá vinha a terrina cheia de ouro para penhorar mais setenta continhos e depois de devolvidos na semana seguinte, lá vinha outra vez com mais cem contitos pedidos emprestados. Foi até bater nos cento e vinte, o homem pirar-se de casa e a mulher ficar na rua da amargura porque lá ficou a dívida com o senhor engenheiro até aos dias de hoje.


III

Quando F. perdeu o avô e o filho no mesmo dia. O avô criara-o, mais tempo passara na casa dele que na dos seus pais. Definhava-se numa cama. Bebera sempre demais e as pagas tomavam-lhe a vida agora antes da partida da avó, deixando-a como perdida depois de setenta anos lado a lado. Nesse mesmo dia, corria para o hospital porque a mulher perdia o primeiro filho que vinha a caminho. Faleceram ambos sem que se pudesse despedir do que quer que fosse. Os meses passaram mas um véu de amargura desceu enrugando-lhe o rosto de menino louro de olhos castanhos e doces. Separara-se dela e constava na família que andava perdido da cabeça. Partira para outra cidade, na esperança de tudo para trás deixar e uma vida nova começar. Para trás ficavam assim trinta e sete anos de vida, vinte e dois de namoro de criança e noventa e dois anos de sabedoria boémia.

Nesse tempo já o bairro era de proprietários, alugueis e subalugueis. Uma mistura de gente de várias nacionalidades e ainda alguns tendeiros que por ali envelheciam no café, que a feira era para os novos.  Ainda por lá andava a cigana do cabelo enrolado na nuca e certamente a terrina cheia de ouro pedindo de porta em porta. Foram-se as sovas do marido para dar lugar às sovas dos maridos das filhas e de alguns netos que já levantavam o punho. O Xico Maluquinho agora acolhido num centro ainda por lá passeava na praça amargurando os mesmos fantasmas. Só as bolas já não levantavam cabelo porque o campo de futebol era assim um centro comercial.
F. alugou um quarto num desses apartamentos, precisamente no apartamento antigo da tia de A., onde viviam dois romenos que se desenrascavam com biscates de pequenas obras. 
Dizia-se que daquele bairro só se partia deitado, e embora muitos tenham partido pelo seu próprio pé porque naquele tempo a vida até o permitia, hoje essas palavras caíam certeiras nas vidas que à janela acordavam todos os dias iguais a si mesmas. Todas, excepto para F. e para Quitéria que tudo era melhor que antes, pelo menos assim acreditavam. F. deixara o conforto, a empresa que partilhava com o pai, um BMW descapotável e uma casa de três pisos, mas ali, era como se fosse rei do silêncio interior na sua cama de tábuas de chão no seu quarto bolorento e barulhento. Ainda por alí todos acordavam com a mesma carrinha de madrugada que para descolar o último cilindro despertava o bairro inteiro, as crianças não mais adormeciam donde se seguia uma choradeira infernal. O mesmo homem, hoje velhíssimo mas frio e rijo como o motor da carripana.
A empresa do pai de F. era de construção civil e conhecedor do ramo não demorou nada a juntar-se aos romenos para com eles ganhar a vida. Quitéria por sua vez que todo o sempre trabalhara num café, conseguindo libertar-se das garras dependentes de heroína do irmão, partira também ela. E aqui, nesta mesma cidade, hoje portadora de uma beleza rara pelo descuido imposto de uma vida de nadas, dir-se-ia uma beleza selvagem, conseguira ao fim de uma semana, trabalho numa loja de roupa no centro comercial. Estavam assim a dar os primeiros passos e uma pontada de felicidade lhes tomava o rosto febril de entusiasmo. Brilhavam. E talvez por esse brilho ser maior, um dia Quitéria ao entrar no prédio cruza-se com F. e dos olhos de ambos nascem promessas.



IV

Procurava atrapalhada pelo frasco de perfume, queria rapidamente sair de casa porque hoje era um dia importante. Iria entregar o original na editora e a expectativa de ser mal recebida enturvava-lhe os sentidos de inquietação. Neste país tão distante do seu e ao contrário do seu, os horários eram sagrados. Escrevera finalmente, após anos de tentativas, o seu primeiro romance.
Quando começou esta história, era ainda menina e a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi precisamente o quarto da rainha. De um azul cetim muito suave, o quarto conservava somente a colcha e a cortina. Era um quarto tão pequeno e tão no alto da torre que em tudo lhe inspirava um outro universo. Foi precisamente nesse dia, nessa visita de escola, que se apaixonou pela escrita. E foi também nesse dia que avistou lá do alto a casa.

Venho pedir-vos a vossa protecção. A vós que nunca deixastes de atender a todos que recorriam ao vosso bondoso coração...cheio de confiança no Vosso poder e merecimento perante o Altíssimo, eu Vos peço, dignai-Vos a proteger-me a mim e à minha família contra as incertezas da existência...que possamos sempre estar ao abrigo de privações e de embaraços, que jamais com a graça de Deus e com o vosso auxílio, não falte o pão e o alimento à nossa mesa. 


V

Não disse nada, deixou a porta para trás e começou a subir as escadas. Ele por momentos deteve-se antes de sair. E voltou atrás dela. Sem querer ser intrusivo, subiu lentamente degrau a degrau esperando perceber qual era o andar e a porta. Escutou-a meter a chave no quarto andar esquerdo. E depois de sentir a porta fechar, muito depois, respirou fundo e bateu na mesma. Desculpe incomodar, eu...chamo-me Francisco. Somos vizinhos. Quitéria ficou um pouco atrapalhada, não esperava este encontro, não pelo menos assim tão depressa. Não disse nada. E ele tentou remediar a situação porque as palavras não lhe saíam como desejava Eu...reparei em si agora quando entrava e...pensei em convida-la para qualquer coisa, um café talvez. No café do teatro, foi remodelado, conhece? Ela baixou os olhos. Há muito tempo que não saía com ninguém e temia o envolvimento com um estranho. A demora da resposta levantou em F. todo o passado que esquecera no momento em que a vira e recuou. Desculpe, a ideia foi parva, deve ter outras coisas mais interessantes para fazer na certa. E virando-lhe as costas envergonhado, Quitéria cedeu então Espere, sim, porque não um café? Todos bebemos café não é assim? E beberam, um café, outro café e todos os restantes dias da vida que se seguiu, o hábito de beberem o primeiro café da manhã juntos manteve-se, como que sagrado. Porque assim havia começado. 

VI

O editor odiara o final, tal como previra. Não havia tragédia nem qualquer beleza no mesmo. Era demasiado realista dizia ele. Que fosse para casa e o acabasse dignamente numa semana. Ficou desesperada. O tempo era demasiado limitado. Aquele final era uma fixação, como se agarrado àquele corpo de restante texto nada mais lhe pudesse servir. Mostrou o romance a colegas e muitas ideias escutou mas nenhuma lhe servia, como se uma teimosia lhe tivesse cegado o espírito crítico, consciente de apenas ter uma e uma só chance e de não ser capaz de contornar esse obstáculo por impotência de sabe-se lá o quê. Mas sabia o que era esse quê, se sabia. Como podia ser diferente? Como podia o editor saber que Francisco era o seu marido e que foi precisamente assim que aconteceu e que se fosse diferente, não estaria hoje neste país e muito menos esse romance teria sido escrito. Como podia o editor saber que fora naquele quarto de rainha que avistara pela primeira vez a sua casa de cima, a sua casa tão real quanto um grão de café.

Era importante para si a publicação, sim era. Mas Quitéria sabia que tinha consigo uma história tão maior que a própria história que temia pelo excessivo envolvimento, não ser capaz de a trazer para fora com a mesma intensidade com que a vivera. E foi nesse momento que lhe ocorreu procurar por A., que seria feito dela? Deixara-a perdida pelo romance, como se fosse um conduto artificial, porque na verdade existiu mas acabou por não ter tanta relevância como seria esperado para o leitor. Poderia ela envolve-la no final? Traria valor ao romance? Com que finalidade a introduziria exactamente no final? E a resposta ocorreu-lhe tão obviamente que a própria clareza a assustou. A. era a rainha santa, a mesma que no regaço levava o pão aos pobres, a mesma que a ajudara quando precisara em criança, a mesma que do seu quarto na torre lhe mostrara o que é ver de cima a trágica cova onde nascemos, a mesma que hoje lhe inspirava um final diferente. 

Sinal da cruz.


VII

Desculpe incomodar, eu ia sair para tomar um café no bar do teatro, seria despropósito convida-la? Chamo-me Francisco. Ela estava de avental e embrulhado na aba do mesmo trazia algo que na surpresa deixou cair ao chão. São rosas senhora? E ambos riram-se apanhando os cacos de uma vida que agora prometia um futuro perfumado.


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