quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Entre horizontes



encontro esta manhã sem planos de partida

no intervalo fundo da vida
navegante de túmulos e abismos
uma cortina de vidro chuva
uma espécie de aura tapeçaria
lanternas de papel e vestidos brancos
suave o conforto do espírito de passagem
imóvel eu dentro de ti
na polidez refinada da pele acabada de nascer
a beira de um atalho não mapeado
a nota martelada de um piano
visões nebulosas sem serenidade
mas tu dizes que a viagem é longa
de que tens medo de mãos atadas
no despertar de uma hipnose carregada
os sentidos adiantados de um relógio
o ar frio e cristalino dos portais do ócio
fecho os olhos resta a sensação
no dialecto do vale inteiro sem ninguém
um lugar esquisito um presídio a céu aberto
a boca sinto-a é um porto terrestre
onde ardem ao sol as carcaças dos pássaros
na resposta murmurada do agora
naufragos que se devoram de pé
na hora mágica de um idioma de cristal
batem como tambores em desafino
as ondas no eco da própria destruição
a noite vaga sem descanso refratada no meu peito

mordi o astrolábio para mergulhar em ti
e as palavras e os gestos parariam no eterno

extrairmo-nos como um minério tão fundo
ou um mistério que o mundo criou em pétalas caídas

tenho a impressão de ser um mosaico negro e húmido
lótus dragão unicórnio incêndio

parecia ter-me encaixado na submissão da moldura
acima dos telhados da loucura

mas tu dizes que a viagem é longa
que há tempo para parar de sonhar
uma mulher criança no eco do cravo
no ventre de tudo quanto é belo e vago
mordia-lhe esse corpo serpente fóbico
perdido nos claustros ou deixado à deriva
a realidade à gradação pagã da matéria universal 

e há qualquer coisa de frenético que não me deixa partir






segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

descensus ad inferus


dos óleos santos tocar no ponto inflamatório
o laço impuro para a renúncia voluntária
onde um lugar relicário de instrumentos operativos
o sopro no plexo nervoso à recepção dos dias
e a língua seca que passa por entre as mãos
íman o sinal da cruz das seitas de perdição
o resgate da alma na demanda e a resistência
como um carvalho erecto à erosão do tempo
a mulher cisne negro na barca que atravessa
esse pântano de macieiras e enlouquecimento
extático
a amnésia de outro mundo dos crepúsculos
para a reclusão da floresta
e o reduto temporário da solidão

caminho tão lento que caio na eternidade
à beira dos passos os penhascos da contemplação
catalepticamente na doença das fadas
no metabolismo sepulcral das serras
e todo o corpo fenótipo de autodestruição
letargia teriomórfica
e o reflexo do espaço límbico abate-se nas têmporas
caixa ou gaiola para uma espécie desplumada
ou o retorno migratório a casa
a árvore cósmica habita-se no peito
para o flutuar dos ventos
ou ave voando no limbo
tenho habitado nos anéis de saturno
e a epifania da rena tomada pelo transe
transgredir o natural híbrido ou ébrio
a fantasia o santo graal ou uma macieira de carne
depois a epifania do sonho num grito
devorar uma mandrágora no jardim dos opiáceos
o corpo dança fornalha mítica
tenho fogo na cabeça e o sono perpétuo
de uma deusa desencarnada
e a demanda inacabada do resgate da alma



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

exilados da terra


um dia serei cinza e vento barítono
e do meu lar crescerão feras
e as árvores cairão sobre grandes pedras
das janelas pontas para o céu alongando-se
para que se me partam os ossos
uma ave despregada e o sol em vermelha dilatação
o animal arqueja
no último degrau depois de subido
a cratera mortal do último sopro
as vozes agudas dos pássaros gente em volta
nessa corrida contra poente
o rugido constante turbo sombrio
nenhum ser vivendo mais nas entranhas
a flauta serpente que anuncia o final do tempo
o lugar da cabeça à mesa ou um prato vazio
e o animal eriçado do azul mais duro
o palatino das estações orbitais oculares
abate-se-me como uma floresta despida
a ferida injectada de dor profunda
no zumbido das bobinas de tortura ondulada
são árvores negras
fios de seda electrificados
fitas de plumas em tubos metálicos
partem do funcionamento pantanoso dos órgãos
ao travão do impacto sectorial horizonte
capaz de gelar o sangue
um suspiro fertilizado de cólera
no equilíbrio do caos bioquímico
bonecos fleumáticos na poeira cósmica irradiar
absorvermo-nos muito depressa
o passageiro na cabine da mente
animal gentil pendente nas lajes onde cai a chuva fria
confessar-se o terror no colo prateado da lua
de tudo o que fica para além da vida
um disco rígido uma arma fina de agulhas
a chuva cristalizada vagarosamente
no limite somos sobreaquecimento
e a noite apenas o começo
acabada de cair do ventre
dos ramos dos mantos das cortiças
o ar carregado de radiações oníricas
e o estalar dos tímpanos
nas paredes montanhosas do peito
redes de aço em trapézios de beijos
uma garrafa atirada ao pavimento da alma
para o ruído revirado do silêncio
apunhalamos as sombras
os rostos magros da morte
para se rasgar o tecto e os tecidos do real
as mãos abrirem o corpo em passeio
a coagular o fosso das horas
gárgulas guardiãs das paredes do sonho
e da metamorfose do nosso amor
a cadeira baloiça desengonçada nos braços maternos
para embalar a saudade
e o chão range de chocalhos
para uivar as fronteiras
a pulvorização sulfúrica que erguemos
depois de tudo



segunda-feira, 19 de novembro de 2018

a lágrima antes de partir



espero as folhas que aguardam a queda
a mão estendida aberta que acolhe
a alma pendurada
e uma pedra no charco ao sol
sinto as gotas pendentes no final do ramo
as árvores trepitam a neblina do sonho
a noite caindo de violetas
e xailes que nos cobrem de morte
na atmosférica muralha da dor
o instinto é um gato malhado à chuva
do tempo desumano
o túmulo fecundo para o choque amortecido
das gotas que ternamente se entregam à terra
a vulva vulcânica dos infernos aberta
os ramos lá em cima sinapses de luz
bárbaro o vento suspenso sôfrego de encontro
as pedras turvas do caminho bestial
forjadas de espelhos e asas ressequidas
iradas, iradas, crepita a alma quase extinta
esse homem muralha que habita na sombra
em guilhotinas de fósforo e incandescência
ao arrepio da chama triangular
a vénia mental da roda vida
dos arcanos torres esqueléticas gradativas
naipes de nós reais explodem das folhas antes de caídas
para a sementeira da saudade polarizar
tenho já saudade antes da partida
o chão que tantas vezes atravessamos mais
na intranquila febre do fastio
do caminho feito sem ser sentido
depois lá em cima móvel azul ou cinza perfeito
as coisas azedadas da vida mecânica
os bagos que encerram esse inverno de casulo
ou a partida precoce da luz
agora uma janela para o tecto em céu aberto
a respiração fotossintética da ruína
as relações carnais do grande golpe ou sol escaldante
que se recolhe para a geada saliva
e o revólver é a boca que se me abre de louca
balas no tambor para os serventes dos ciclos
feitos de veios e seiva e nutrientes que servem à morte
ou à renovação dos punhos cerrados
que se abrem a cada novo golpe
tenho os punhos cerrados sufocando a folha antes de caída
porque tudo é parte e em parte a queda...
não caio dessa árvore ou o sonho não se desfaz
e a minha mão não agarra
a tal partícula que em tudo é onírica


sexta-feira, 9 de novembro de 2018

ideias Laikas


do tecto uma placa de mármore solta-se

lá em cima a cobertura abre-se para uma outra casa
muito mais extenso esse espaço de compartimentos
de luz e materiais novos e um corredor gruta de pedra
uma catacumba iluminada por tochas de vermelhos
água que escorre das paredes e animais rastejando
ergo-me pelo buraco para conhecer esse desconhecido
se o paraíso estivesse acima de nós aqui seria outro inferno
e nós nunca estaríamos na terra ou eu na minha cabeça
não há angústia ou terror
esse lugar mistério que uma placa de mármore descobre
como o tampo frio de uma campa ou um escalpe

depois as horas afastam-me derivando pelo esquecimento
dos pormenores dos odores das texturas dos corpos
outras vezes visitamos o passado, em vez de espaço, tempo
uma casa de espelhos num circo de talentos e o poço da morte
todos os caminhos vão dar a essa espiral de vácuo
para me dizer que sou um buraco e a toda a velocidade
o veículo não se espalha para fora do circuito
ontem tive a noção de me chamar de cobarde
não chamei

o que me quebra as algemas mas atira-me ao espaço

aberto um coval para não sepultar nada
há um coveiro que fuma cigarros de palha e aguarda
jazida e fria a vida que nos encerra um dia

parasita, velocípede, a fome e a febre, a peste e a carne
a vida e a morte em colisão

rumo às estrelas, Laika corre atrás da vida no espaço
a nave descola, animais irracionais inteligentes partem
afinal basta fechar os olhos
e o Cosmos conhecido de antes
a tripulação electrónica dos percursos oníricos
interestelares corações ultra sofisticados
a génese de corpos operários
sobre a linha do equador
a precisão dos próprios astros
inflamados

rumo às estrelas Laika
fecha-se o tampo, o frio regressa à escuridão
e o corpo explode de milhares de partículas
estrelares







segunda-feira, 5 de novembro de 2018

na orla interior



as estrelas semeadas dentro da cabeça
alguém retrata da lua do aconchego de uma cratera
alguém sentado na lua inundado de toda a solidão
depois do abandono da nave o pulso quase morto
esse coração piloto testemunha a distância
uma caixa-forte para proteger o universo
vigilante dormitando deus sentado
aquela mancha um mar profundo
a longitude de águas congeladas
camadas de poeiras de rochas dos hemisférios cerebrais

brilhando na escuridão como pequena estrela
plataforma de homens vivos
uma grande queda
ecos de radar sombras que trepam o buraco
plantadas à beira de um penhasco ao nada
nossos momentos lá em baixo
saídos da escotilha da memória
catapultados por vigas mestras nas costas
contra as correias da dor vaga e impessoal
das noites que continuam a abalar o mundo
e o grande acidente do amor

inspiro o odor salino da luz na sua forma química
uma praia de inverno e seres agoniados esvoaçantes
as cavernas seladas pelas ondas de rebentamento
e os fantasmas no topo do farol giratório
a súbita discussão interior da mutação dos peixes
um mundo sem paredes na cúpula da lua
onde a minha voz quer subir a ravina
nesse laboratório de silêncios

uma célula num frasco morreu do desmoronamento
a alma desprendida do corpo regressa ao universo
para vaguear atipicamente no meio de nós

as mãos brancas os olhos escuros
instrumentos de vidro
o sangue pulsante aos ouvidos
transpirar o fogo cerebral
subir a ravina correndo astral
cambiante dos restos da humanidade opressiva
animal esventrado atirado ao espaço
correr para cair de cansaço
o corpo em estoira a mente cessa
e finalmente sentir a face da cristalização
do recongelamento do gelo
o estalar dos estratos rochosos os estratos do gesso
o odor específico da batalha mortal
mesmo para um homem morto
mesmo tarde demais para um homem morto

e o sentir do cérebro chicoteado
imagino que depois do enterro as ideias continuam
vejo-me sentado na areia diante do mar imenso
acho que nunca me sentei sozinho diante do mar imenso
nunca me encarei diante desse mistério
sempre a reclamei mas nunca de facto senti a solidão
e o azul cristalino da mortalha
ou o buraco imenso a falha de alelomorfos e isomorfos
e recessivos letais e todos os criptogramas
de um homem inadaptado
ou encerrado no labirinto da alma




terça-feira, 30 de outubro de 2018

III vozes



a manhã fresca do orvalho parte dos nossos olhos
olhos que o tempo deixa distantes e opacos
auroras boreais em paredes brancas de hospital
as gotas circunspectas da observação das plantas
os relógios em passos miniaturas e ligaduras de sangue
obsessa a terra que nos engole nesse cerco de assédio
uma gaiola de pássaros lugar sitiado de horas
túnicas arteriais e mágoas presentes nos objectos
o peso do corpo cada vez mais leve para o aconchego
dos mistérios que nos despedem e despem
os anjos estáticos no topo das colinas esperam
a voracidade de tudo o que nos transcende
o fogo que nos arde para sermos memória de pó
e todos esses anos como um livro folheado ás recuas
perguntar-se pelos derivados e bifurcados veios
sabe deus e os deuses maiores ao que veio cada um
da nascente à foz do grito de fome ao grito demente
porque todos os dias nasce e morre gente
e a terra continua no seu processo melancólico giratório
um carrossel de aluguer para as voltas psicotrópicas
da sagacidade da efemeridade da ilusão profunda
de cá andarmos com posse de controlo e de aceleramentos
encurtar o tempo abreviar antecipar apressar
e nos entretantos das pausas dos momentos de quebra
no voo estático da alma a cura breve a luta cessa

ás vezes sento-me num banco de jardim
senta-se comigo uma alma velha e gasta
pergunto-lhe quando se processou essa mudança
ela diz que não sabe mas que veio para ficar
a menos que eu possa inverter a marcha inverter a ira
e converte-la de novo em esperança
ela diz que enquanto cá andar a ira estou de saúde viva
que me agarre a essa energia e a converta na obra
ela diz que apesar de nunca o ter dito, que gosta
que muitas vezes não entende mas que é assim mesmo
que para concreta já basta a hora que nos leva
agora hoje agora depois a ida é certa
eu escuto e observo-lhe os jeitos dos cabelos brancos
escuto-lhe o coçar das orelhas o piscar dos silêncios
e pele negra das nódoas das dores das cicatrizes
de tudo o que fica sempre por cumprir
e depois diz que o que importa é seguir
é encontrar a paz de estar a caminhar
é abrir os olhos para a beleza que já lá está
a cada nascer de cada nova gota de orvalho
que inaugura uma nova manhã de quem cá está
ela diz coisas tão simples que nem parece poesia
e eu vejo em gotas tão simples a complexidade
e ela ri-se

a manhã fresca do orvalho parte dos nossos olhos
traduz na pele das folhas o brilho do nascimento
embala com espinhos esclarecida de segundos
as constantes do atraso dos momentos impossíveis
comover-se da sensibilidade eterna da terra
a morte espalhada em tudo espelhada no mundo
mistura-se com essa dor de perda e esquecimento
com essa ausência da decomposição do céu
sem colheitas e dormente a pele da urgência
de tudo ser tradução e rigidez e alucinação
a estrada recta atravessada pelos gritos da demência
rasga-me de dor de impotência de triste
um baixo céu austero no ronco da morte
e a toda a velocidade despenhar-me
a qualquer momento
sinto a vida como morte iminente
as paredes do quarto prensa desencanto
como se me varressem do chão
a qualquer momento


sexta-feira, 19 de outubro de 2018

de passeio em distorção



ao limbo âmbar de raios oblíquos quentes
o salto do unicórnio o sangue fresco do cisne
à equação do fim do tempo a alma portuária
o cenário fluído prismático que trago comigo
sobre um parapeito debruçar-me
baloiço de ataques da melancolia
 o vento mutante dos pântanos de alcatrão
répteis desaparecidos dos pontões
o tráfego das raízes  relâmpagos bifurcando
de quartos de contenção em fuga planador
grandes rochas deslocando-se no efeito fluído da dor
cobrir-me de distância erguer-me de uma colina
e esse coração península controlando a respiração
um corpo serpente de escamas e juba
a água corrente apertando o gatilho
linhas reptilíneas escapam-me da língua
a cabeça na trajectória do horizonte instável
deito-me ao chão desaparecido de beira de plataforma
as pessoas passam como notas de rodapé
partem do hangar de sopros cintilantes na água cobalto
a foz da vida a deslizar-me sobre o rosto
emergido de um buraco ventral colidindo emergindo
no alumínio de uma bacia de espectros
do aparelho monolítico esfoleado selvagem
pedras maiores de uma simples molécula
respiro para me brotar das fendas
e cruzar-me com a planície das sombras
e suportar o peso da besta nas costas
e soberbo sentar-me num banco de nuvens
no hábito arbitrário
de me sentir vivo



quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Dínamo


no quebranto da manhã submersa
a chuva fina ou saliva arrefecida
o vinco de uma cama vazia sem fôlego
o carimbo, o selo, a gaveta mecânica
os degraus desse postal em espiral
ou só corpo que caminha despido pela rua
o enxofre que transpira do subterrâneo
numa redoma de espirais cósmicas
veias que rebentam de estrelas púrpura
imprimir a própria alma nas paredes
de encontro de bocas mosaicos
labirintos de encaixes perfeitos e
consciências subnutridas
homens que rosnam aos cães
na caligrafia de uma língua qualquer
para a acção retardadora da morte
a pele arrancada em golpes de rendição
a cidade fria e cinza depois de ardida
a febre luciferina que nos perdura
a lucidez invertida nas luas de Júpiter
nos anéis de soturnos dias que nascem
para serem separados da noite
como a água que me corre pelo corpo
para ser escoada de dentro
ás vezes lágrima ou apenas chuva ácida
bebedeiras do choro dos deuses
cálice de sangue que me bebes
para me cuspir ao espaço com a secura da vida
por pequenos gestos de adeus
depois com os olhos acesos
procura me a luz nos lábios apertados
turbo oceânicos do mal
e tudo é manhã e subversão
porque partes sem me deixar alívio




domingo, 14 de outubro de 2018

Pardesha


o hóspede do tempo do sonho
revolto de tonturas labirínticas edémicas
caminha pelos mosteiros da memória
o homem verde, o xamã, o selvagem
bebe das fontes da tentação
no arrasto do granulado das paredes
o corpo procurando pelos fins do muro
do rasgar dos céus
e a aurora do tempo
musa consorte abençoando os mortos
tudo é abolição do caos e da terra interior
transe extático semeador de purgas
penitências do sangue e da carne
de esqueletos mirrados de olhos vazados
onde a alma presta vigilâncias de aramaico
na tortura da solidão de anjos alados
de não se encontrar nos cantos do mundo
ou pela linguagem do voo
e estes são os senhores da loucura
da nebulosa memória do éden
onde sopram os ventos do norte
uma barca de espelhos, gansos selvagens
o monte acima do poiso terreno
ponteado de formas híbridas e totémicas
do decalque, da desfiguração do homem
onde a fraternidade angelical e a constelação do dragão
adormecem no jardim cerrado
o homem fóssil que hoje carregamos nas arcadas do peito
das fronteiras do invisível
e do cosmos livre
para o voo extático
rasante essa dança de asas sobre brasas
ardentes




terça-feira, 9 de outubro de 2018

o copo vazio


o vento a uivar pelas falhas
pelos compartimentos vazios da casa
o arrepio no braço e alguém
matutinos os pés descalços
acompanham o odor dos cabelos
violetas à beira do abismo
a linha rupestre a lâmina o candeeiro
o fundo pantanoso do rio
nos limites e da extremidade da sala
na tormenta de um céu cinzento
um pássaro encurralado na janela
do lado de dentro das garras dos objectos
bate-se irado contra as paredes
a realidade ruminando-se
no rosto de um deus morto
as linhas descritas em orgias
de corpos escapados de tumbas abertas
os silêncios estáticos combinados de íntimo
e o pássaro de demónios e horror
o músculo peitoral extasiado
fixo de verdades incondicionais
e simbioses de telha e cal e teias
mudo numa carícia pacífica
procura pelo corpo deitado no chão
para lhe adormecer na completa falta do coração

nos profundos vales dos pés da montanha
essa casa segue de arrasto
pelos flancos do sonho acima das brumas
sem vestígio de vigília
para os infernos e o sol que aniquila
são os olhos negros das gentes
e toda a vida física
que no primeiro impulso
abandona o leme

a casa segue de arrasto e o pássaro a dentro
das velas envidraçadas a vida segue lá fora
véus de vagas e o homem dorme sobre as tábuas
a chama tamborilando nos telhados
juncos de outrora que caem de cansaço
pelas linhas sedutoras da alma

e aterra para distinguir o sabor da terra
a lama granulada a escorrer-lhe pela boca
o rasgar das raízes pelos caninos
a máquina gástrica que o engole
as sementes sendo sepultadas nos intervalos dos dentes
nas bacias de chumbo para sarar a podridão
as palavras soltando-se da língua dos mortos
e todas as penas cuspidas por indigestão

está um pássaro caligrafado agora nas paredes
e um homem que dorme de intestino entrançado
a casa desaparece no alívio de queda alguma
e a chama cessa nas descargas do silêncio

e a chama cessa nas descargas do silêncio

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

sarabanda


pegaste-me na mão e mergulhamos pela febre
como grãos de areia perdidos na escuridão
dos céus que revelam galáxias e criaturas
que dormem na distância das paredes do aquário
tacteando-nos como pontos de fuga e gritos
eu disse que te sentia aflito de trevas milenares
ou apenas o sopro de uma morte próxima
colmeias de genes derradeiros corpos entregues
as leis de sedução do mundo transitório
que nos destina à duração de um sono
a manta do desgaste é um tempo monstruoso
borboletas de voo olvidado numa mina de espelhos
depois subimos pelas escadas de caracol
de teias e zumbidos e cores inomináveis
fragmentos deixados debaixo dos pés
estilhaços de vidro das paredes de um palácio
ainda nos podemos agarrar pelas mãos disseste
e rebentar de voos mísseis de destruição
cada quarto um jazigo de seculares passados
e cadeias montanhosas intransponíveis
combateremos a sombra da cobardia da vida
os esqueletos depois das bombas caídas
dançam despidos de fantasia e só inquietação
painéis de controlo das salas abobodas
para das profundezas de húmidos musgos
assim de mansinho penetrarmos no mundo
sonharias automatizado se os campos mentais
fossem inválidos sonharias com a face oculta
e a empatia dos números da própria consciência
naves tripuladas de seres vívidos acopolados
que se despenham tridimensionalmente
para morrer na praia um lagarto erecto
homens escoltados por animais mecânicos
de túnicas frívolas a flutuar  sem matéria
um edifício incrível que vagueia atirado à luz
e a grande noite da vida encaracolava cerrada
das nossas bocas peixes aves árvores e frutos
uma planta exótica um cão de água pulguento
e a terra a ser colonizada de miragens
cintilando efervescências acústicas
nossos corpos arquitectados de raíz
e o fundo do mar virado do avesso
estacas em forma de estrelas e flocos de neve
para nos misturarmos numa tempestade
e metamorfose de um céu tigrado de dor
insustentável

terça-feira, 18 de setembro de 2018

campos magnéticos


do espelho corpos de néon
fixos na linha de um peão de ponta de aço
para a distinção severa da entrega da luz
rodopiar na febril entrega das torturas das paredes
lacraus sem morada espiritual
um quarto para dormir outro para contemplar
confidências de um aparelho estereofónico
que repousa uma ponta de cigarro lambido
a extensão do espigão das metrópoles
e das acústicas do pavilhão da morte
escorre nesse decote que desce até ao sexo
declinado na censura de uma fome cavalar
sexo roído de traças e falsos santuários
do interior vandalizado por falsos profetas
a devoção melancólica  na hóstia ácida
a cruz invertida para trepar pela coluna
de matronas desvirtuadas de bússola
tiranizado de sedução
abandono me nesse vagão corpo
da perda do mundo restos de coração na balança
e pornografia para dar luta ao punho
olho me de silhuetas de papel de seda
os bicos dos seios traços negros
e vendas nos olhos para o precipício
inflamado de contra corrente
de tempo latente
e formidáveis estradas de alcatrão
alcatrão em chamas derretendo-me
procurando em todas elas, a deusa mãe
do sentido latente da erecção sincrética
do curso livre da decadência

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

materna loba


na linha mais ténue
a manjedoura mão de um vulto
que por aqui serve sem doma
caminhando de andas em terras de silêncio
levantando dos tempos de um parto
onde havia prescrito um inferno ardido
sinto na cabeça os ramos oxidados
das vigas das fábricas que deixei para trás
os afundares do oculto que aqui dormem
torturado por não pertencer
bodes velhos ressuscitados
das povoações em ruínas dos vales
a cor escura da armadura dos templos
musgos viscosos tentaculares
no timbre que se esveia por entre o folhear
abro a palma
para acolher o outono do pensamento
e o arauto de novos tempos
que carecem dos sinais da passagem
eu sou um monumento de silêncio
as raízes apodrecendo para me libertar
a geada a chegar
as últimas folhas de seiva lírica
e comovo me com a beleza do coro
esse berrado desafinado dos outros
envolto num halo histérico
que só eu posso fundir em reflexos mágicos
vomito essa pneumonia aberrante babilónica
os pulmões escancarados ao fervor do desabafo
para acolher a noite fria de rachar
o frio cortante de me desintegrar
vivemos nesta hora de fogo sem calor
sôfregos de labaredas de ramos sem faia
a linha mais ténue e o fumo espesso
em que nos convertemos
salvo as crianças de dentro
gritam em coro urros de prazer
para estrumar a terra em pleno inverno
de fantasia e ludos de inocência
compreendo agora as ânsias de querer envelhecer
lido me como animal máquina
e cavalos em marcha para o preparar das coisas
que se entregam aos ciclos
de pés de veludo e impulso
devora me se me encontrares doente
rasga me a carne ao teu alimento
deita me os olhos de cão esfaimado
procura me o osso mais afiado
estou como febre para o imaginário
e o ar completamente esgotado

e desses olhos sentinela
a terra revestindo-se da pele materna loba


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A linha mais ténue




Estava sentado de frente para a janela. Agora a sua cabeça estava leve. Depois de chorar todas as mágoas conseguia ver o fundo do poço que mergulhava a dentro. As paredes viscosas, o odor de águas paradas e sombras. O quarto estava inundado de um tom acastanhado. A luz feita de partículas que pairavam com a suavidade do seu pestanejar. Como o silêncio era agora confortável. 

Foi acordado pelo passar de um vulto, duas pernas andas que atravessavam a sua janela. Levantou-se para lhe acompanhar os passos. Passos lentos e pesados que pisavam as couves abandonadas ao sol. António. Lembrou-se do seu nome. António abriu a boca para espantar esta figura mas dela saíram dois pássaros que num ápice aterraram nos ombros do outro. Maldito, demónio de cata ventos, presos aos pés os vermes que os olhos hão-de comer. E voltou para a cadeira de costas curvadas sentindo de novo os olhos inchar-se-lhe de desgosto. Maria Antónia não havia meio de regressar e o estômago começava a roncar. Se ao menos tivesse deixado café feito. Raios da mulher que não serve para nada. Vadia, bem levado que fui. Minha mãe bem dizia que aquela só para roupa velha. Os restos que a terra há-de comer.
O vulto parou no meio do couval e abriu os seus braços paus de madeira. A camisa de farrapos esticou-se ao vento. Agora outros pássaros partidos de outras bocas vinham aportar nos seus ombros. António observou-lhe o olhar. Inquisidor, baço e fixo no seu. Arrepiou-se e voltou-lhe as costas. E logo sentiu esta presença mais de próximo. Como se a sua respiração falasse ao seu ouvido. Aprontou-se a tentar perceber o balbucio. Amanhã por esta hora ela estará dura e seca deitada sobre a cama. Pegarás nela ao colo como menina que foi e subirás o monte para entregá-la ao precipício de onde todos nascemos. Essa é a tua tarefa de amanhã. E a respiração susteve-se deixando frio no seu lugar. António levou a mão ao ombro, doía-lhe. Uma dor mais fina que muscular. Uma dor de alma que se expandia do epicentro da omoplata. Olhou para a cama ainda enrugada da noite passada. Suspirou. Chegara então a hora de Maria Antónia e a sua? Que ficaria por ali a fazer arrastando-se de chinelos e roupão pela casa? Olhou em volta. O quadro da menina vestida de azul nunca abandonara a expressão de alguém que tristemente espera por alguma coisa. No seu ventre um garrafão de vidro vazio. Aquele olhar era a casa, as paredes, o tecto, as prateleiras de poeira, a porta sempre escancarada de ninguém. Como manda a tradição, António carregou Maria Antónia no dia do casamento desde a ombreira da porta até à cama. Três tristes metros de tábuas já nessa altura gastas e levantadas. Sentou-a na cama e a primeira reclamação apareceu Quase que me deixavas cair homem, que falta de jeito. Bastou uma benção do padre e um sim amiúde que tudo mudara para sempre. A menina que corria os pastos descalça e seminua desaparecera, a menina dos cabelos desgrenhados e piolhosos de jeitos selvagens desaparecera. Nasceu nesse dia Maria Antónia, carrancuda, sempre cheia de dores e arrastos de maldizeres. E os olhos de António encheram-se de lágrimas, poças que se transformaram em poço, poço que se transformou em lençol de água. António sofrendo subterrâneo e perguntando a deus todos os dias pelo sentido das coisas simples da vida, que das complicadas já se sabia serem mistério. Os anos haviam sido emprestados ao nada. Couves, porcos, galinhas, coelhos. E nada. Mas a juventude sim, essa sim, eras uma rica peça também tu meu velho, eras eras. Preocupava-lhe agora a tarefa. A mulher havia engordado quilos e quilos de farinha, as suas pernas fraquejavam e as costas dobradas ao chão mal suportavam o seu próprio peso. Leva-la ao colo a ela mais ao peso da morte, que sempre nos acrescenta algumas gramas, parecia-lhe uma tarefa impossível. Coçou a cabeça procurando ideias. Não podia falhar. Os pedidos dos vultos eram absolutos e a eles falhando o castigo seria aterrador. Para além do seu imaginário de velho das terras do abandono. Leva-la ao colo, mas ele não disse que eu teria se caminhar a pé. A égua. Sim, a égua poderá levar-nos aos dois. Ela ao meu colo, sim ao colo, como disse o vulto, ao colo. 
Ao lado da casa a égua mordia fiapos de palha. António passou-lhe a mão pelo pêlo. Estava velha também ela mas seria capaz de cumprir a subida. Tinha esperança. Assentou-lhe a manta e o arreio e deixou-a pronta com a cabeçada e o freio nos dentes. Esta malandra gostava de correr. Se gostava. Era como eu. E riu-se. Uma gargalhada que espantou a égua e a levantou no ar. Calma bicha, calma contigo que amanhã temos uma longa subida. Agora descansa, isso descansa. Uma última palmada no dorso e saiu para a eira. Olhou em volta. Do outro lado o vulto ainda lá estava espiando-o com uma serenidade que o incomodava. Os demónios são santos na espera. Santos que me ajudem na tarefa. Na tarefa. 
Home onde tás? Ajuda aqui, que inferno, não serve para nada este velho. Maria Antónia chegara trazendo uma cesta cheia de couves. Couves? Mais couves? Mas com tanta couve seca no quintal para que queremos mais couves? Maldita mulher, serás sempre maldita. Maria Antónia pousou a cesta e procurou pela bacia da água para se refrescar do calor que trazia. Pois por isso mesmo, aquelas estão secas, deixaste-as secar porque nem para isso serves, para as apanhar, olha alguma vez, tu levantares-te dessa cadeira. Estas deu-mas a minha irmã. Olha pra isto como são frescas, até brilham. 
Brilham brilham, os venenos do Quim Zé, pois brilham, tu mulher..Depois lembrou-se da tarefa e calou-se. Maria Antónia sempre na retaguarda da resposta para continuar a zaragata estranhou Não dizes nada? Ui tás muito macambúzio hoje, mas que bicho te mordeu? Não digas, deixa lá. Também nunca dizes nada de jeito. Olha ajuda aqui nos talos. 
António não respondeu. Voltou lá para fora a contemplar o dia que se recolhia atrás do monte. A tarefa, se a égua me falha tou tramado. 
Olha lá, não viste se o carteiro veio? António olhou para o vulto e pensou Veio, mas as notícias não te vão agradar. 
Nessa noite jantaram pela primeira vez em silêncio. Maria Antónia que sempre nada lhe escapava pressentia alguma coisa ruim mas não era capaz de perguntar porque isso seria dar parte fraca. Ela havia de descobrir, oh se havia. Foi para a cama com as agulhas e o novelo mas não tricotou senão suposições. Cansada da caminhada acabou por adormecer. António trouxe a cadeira e ficou a velar-lhe o respirar toda a noite. Perguntava-se se o acontecimento se daria durante a madrugada ou se pela tarde. Ninguém morre ao meio dia. Quando o sol acordou Maria Antónia estava morta. Era preciso chamar gente, era preciso preparar-lhe a despedida. Era preciso que todos viessem e todos partissem para que António pudesse cumprir a tarefa longe do olhar dos outros. E foi, vieram as choradeiras e o padre, as vizinhas e a irmã e o Quim Zé. Vieram até as galinhas e o sol começou a dar sinais de despedida. António agradeceu no seu fato de luto encardido e quando finalmente o último virou a esquina do monte aprontou-se a ir buscar a égua. Azar dos azares a égua estava tombada. António ajoelhou-se em desespero. O tempo urgia por uma solução. Ainda se fosse monte abaixo...Correu lá fora como podia e de frente para o vulto tentou gritar-lhe. Da sua boca saíram três pássaros que aos ombros do vulto foram aportar. Voltou para dentro de casa e uma vez mais olhou para Maria Antónia Maldita, até na hora de morreres trazes arrelias. E agora? Que é que eu faço? Tentou levanta-la mas os seus braços fraquejaram. Não podia. Olhou em volta com as mãos na cabeça limpando o suor da testa de nervos. Não há outra solução, nem que eu morra também, esta é a minha tarefa. Só eu posso cumpri-la. E numa nova tentativa conseguiu ergue-la nos seus braços e dar um passo. O peso era tão grande que quando moveu a perna para o segundo passo caíram os dois no chão de tábuas omissas. Foi então que Maria Antónia abriu os olhos e disse muito baixinho Meu amor, cuidado que ainda me deixas cair. António olhou-a nos olhos e começou a ver uma menina, depois uma criança e por fim um bebé. Era como se estivesse a ver toda a vida em retrospectiva desta criatura ainda tombada nos seus braços. Um sentimento de ternura inundou-lhe o corpo. Deitado embalava agora um bebé e sussurrava-lhe uma melodia de embalar. O vulto aproximou-se da janela espreitando. Abanava a sua enorme cabeça, uma bola de panos e palha com dois grandes olhos que sorriam. Aproximou-se do ouvido de António e respirou-lhe Luís. Chamas-te Luís e acabaste de casar com a Maria Luísa. 









segunda-feira, 27 de agosto de 2018

O verão mais quente do ano



Agente aqui no campo convive-se.

O Padre? Sim o padre. Faz exorcismos. Mas diz que monta-se nelas. O padre? Sim, o padre. Ai valha-nos deus, como isto está. 
As duas velhas iam no banco de trás. Uma tinha problemas na fala, enrolava a língua, a outra era meio surda. Por este motivo a conversa era facilmente audível na carruagem. 
Éramos uma comunidade de 70 pessoas, hoje são sete. Agora é tudo substituído por máquinas. Oh comadre é fresco. Arrastando os pés a D. Mena entra no estabelecimento voltando com um copo de pé minúsculo de vinho tinto. Senta-se ao nosso lado. Levas as mãos ao cabelo grisalho penteando-o para trás das orelhas, suspira aguardando conversa ou outros afazeres. O ar irrespirável bate nos 47 graus. Há anos que não se apanhava um verão assim. No ano passado isto ardeu tudo, eu por causa do meu marido acamado não quis sair daqui, não foi preciso, mas aqui à volta ardeu tudo. Isso foi aí o fim do mundo. O passadiço está desde Março para ser arranjado, desde Março. Uma vergonha estes políticos. 
Os três galos atravessam a esplanada à beira do comboio sintonizados com o sino da terra. 
As casas no meio do mato, deus me livre. São pessoas que gostam dos ares do meio do mato. Depois queixam-se dos fogos. Na província é tudo assim, a senhora sabe muito bem, olhe além, além pela janela, aquela lá mesmo no meio, credo, eu não queria. 
Ema não quis virar-se para trás até que as sentisse a deixarem o comboio. Preferia imaginar-lhes as fisionomias pela voz, pelos tiques das falas. Para confrontar mais tarde com a imagem real das duas velhas no banco de trás. Talvez nem fossem assim tão velhas. 
O comboio seguia para a frente. 
Para a frente de um qualquer espaço físico e cronológico. Estava atrasado dez minutos. Ema fizera esta viagem no verão dos seus sete anos. Com a mãe. A mãe lia, Ema procurava amigos que semana sim semana não chegavam à barragem. As pessoas são curiosas. Ema ainda hoje era muito curiosa. Andava por ali como se não fosse vista. Sentava-se ao lado das pessoas e escutava as suas conversas, observava as piruetas dos rapazes do mato que mergulhavam como se tivessem guelras. Atirava pedras ao charco que invejava a qualquer outro. Entrava e saía do café como se fosse a sua casa e suspirava. Aquele longo verão de solidão.
Comprei oito iogurtes na feira nova, pelo menos aqueles não me azedam no estômago. Ai eu não sou capaz de comer de manhã. Cada um come as vezes que quiser. Pois é. Estamos a chegar ao Entroncamento. É. O marido da minha irmã é um fura-vidas. Aqui está uma máquina antiga da CP em exposição cá fora. São as máquinas que trabalhavam antigamente em carvão. Aqui está o museu da CP, bem isto antigamente era tudo postos de trabalho. Está tudo aos ratos. 
D. Mena aproximo-se de Ema e do seu namorado. O sol era de um branco doentio num céu abafado. Só se escutavam as cigarras. Vocês querem almoçar amanhã? É que eu só funciono com reservas. Aqui nunca houve menu, há dois pratos à escolha. Eu trabalhei sete anos na Alemanha num restaurante de categoria, sei bem como funcionam. Aqui não funciona assim, tou aqui à quarenta ianos. Sou o terceiro melhor restaurante do país de lampreia. Ema arrepiou-se. Lampreia aquele bicho cobra que tanto lhe fazia impressão. Um dia o pai levara-a a almoçar fora na terra dos primos. Para a menina provar a iguaria. Ema vomitou no prato e os almoços ficaram por aí. O pai partiu para França e dele foi tendo notícias de se estar a dar bem na carpintaria. Casou duas outras vezes e dos irmãos Ema só sabe do seu nome. Eu cá não gosto de cinema, a vida já é um grande filme. Se eu contasse todas as peripécias que eu e o meu marido passamos lá na Alemanha. As pessoas perguntam ah como é que conseguem viver aqui isolados do mundo. Sem as comodidades da cidade. Eu bem vi lá na Alemanha como é que era. As pessoas sempre para trás e para a frente para apanharem os autocarros. Um horror, isso não é viver. A nossa vida dava um filme ah pois dava. Aqui tenho tudo, o meu marido lá em cima acamado, meto-lhe o ar condicionado a 25 graus, mas aqui ontem não se podia estar, 47 graus dava a temperatura ali da televisão. 
O cheiro a pés não lavados continuava no comboio. Não sabia se eram das suas próprias sandálias ou se das velhas do banco de trás. Talvez não fosse dos pés, se calhar elas traziam um cesto com queijos. O tempo começava a ficar mais cinzento à medida que o comboio avançava. 
Olha o túnel, já passei isto tudo a pé com uma rapariga que hoje já lá está coitadita. Esta estrada vai para, agora não me lembra o nome, Santa Margarida é isso. Não sei ele vai parar. Aqui é a ponte. Olha a casa da minha sogra além, daqui consegue-se ver. Ema deixou de ouvir a outra velha, talvez estivesse a dormir. A paisagem complicava-se de um verde emanharado de pântanos e montes que se cobriam de solidão. Poucas eram as casas que se avistavam da janela do comboio e quase todas elas partes de ruínas. Curioso. Esta tinha tantas caixas de correio, já viste? Sim, se calhar passava aqui e as pessoas depois vinham cá buscar. Ele não podia ir a todos os montes. 
Vai dormir? Vá vá. Feche os olhos e descanse. Não faz diferença. Tá a ver olhe aquela casa, depois queixam-se dos fogos. 
O comboio pára. As pessoas saem outras entram. Das janelas os que estão a bordo observam os outros na estação. As pessoas olham-se muito pensava Ema. Procuram nos outros sabe-se lá o quê. Distracção para o tédio de dentro talvez. 
Doce o meu fato de banho? Ah sim estava em cima da cadeira, eu guardei, devo ter guardado. Agora também é tarde e regressa ao livro. Estava lento, denso e aborrecido, como a viagem quando as velhas se calavam. Parecia que o dia estava a cair para a noite mas não era ainda nem meio dia. Se calhar vamos apanhar mau tempo. Não, então não viste nas notícias que estavam lá 47 graus ontem. Ah sim pois foi mas olha o céu, está escuro. Se calhar é trovoada. 
Olhe lá já viu este tempo como anda. Então ontem aquele calor tórrido e hoje parece que vai de trovada. Sta Bárbara bendita que no céu estais descrita. Ai cale-se lá com essa ladaínha mulher, com esta idade e ainda com medo dos trovões. Pois pois, eu é que sei como é que é lá no meio dos montes, depois queixam-se. Olhe lá, pensava que estava a dormir. Também eu. Tudo casas velhas já. É como a gente. Agente havia de ter ido era ao jardim zoológico. Ai as cobras credo. Pois está com medo que elas metam a língua de fora não é? Havia lá uma no quintal, lá onde tínhamos as garrafas de gás. É que elas apanham tudo. Viva. Atão ela metia-se dentro da minha barraca, mas eu meti lá um bocado de remédio e ela desapareceu. Ao fundo do quintal aquilo tá lá tudo, havia de ser limpo. Em frente lá do barracão do Mendes aquilo andaram lá tudo a limpar até é de admirar. Até ao passeio. Aquilo é tudo meu. 
Porque razão as coisas grandes não eram próprias de uma dama dizia o livro. Explicava que as mulheres serviam para inspirar os outros a realizarem coisas grandes, não para as fazerem. O livro retratava 1900. Tinham escrito poemas para retratar esse ponto. A culpa era atribuída a demasiado Beethoven. Para esta mulher, voar fora das normas da sociedade era um acto de respiração. Ema pensou que não ia ser capaz de terminar o livro. Era para além de mais que aborrecido. E arrependia-se agora de o ter trazido para estas férias. Os outros dois, algum haveria de ser mais interessante. Guardou o livro na mala. Estavam quase a chegar, dez minutos atrasado. Arrumou as suas coisas e levantou-se para apanhar as malas em cima dos bancos. Contemplou finalmente as duas velhas. Anda, que estás a fazer, olha que ainda ficamos aqui. Sim, vou, espera estou a ir. Finalmente podia agora dar forma e cor e textura aos seus ouvidos. Tinham as duas óculos. Eram velhas. Pele queimada do sol. Enrugadas. As mãos viajando sobre o peito perto da cruz. 

Imaginei que regressava ao verão da minha infância. Falei-te nisso e agora estás aqui. A minha infância não foi igual a qualquer outra. Tantas foram as vezes que pensei em enviar um postal com as paisagens da minha infância. Não havia a quem o enviar. Só tinha a minha mãe. E a caravana e mais tarde um cão chamado Farrusco que a minha mãe me obrigou a abandonar porque eu não cuidava dele. Nunca soube cuidar de ninguém porque ninguém cuidou de mim. A minha mãe lia. Parava para dormir ou ir à casa de banho. Recordo-me certa vez que nem para isso parou e foi mesmo pelo caminho que fez pernas abaixo. Ela lia porque dizia que a vida não tinha interesse nenhum. Creio e sei-o hoje que a culpa foi do meu pai. A culpa é sempre dos homens. Quando ele partiu ela enlouqueceu. Se calhar já era louca antes, não sei, antes parece que ficou tudo em branco. Nada me lembro para trás da partida do meu pai para França. A bem dizer daí para a frente só mudava a paisagem. Do lado de dentro daquela caravana era tudo igual a si mesmo ou igual a nada. Numa das nossas intermináveis viagens ou durante essa longa viagem que foi a minha infância a minha mãe parou neste mesmo local e eu tomei banho pela primeira vez num rio. Antes era sempre o mar. A fixação pelo azul, essa paisagem cansativa e excessivamente luminosa. Por isso o rio foi amor à primeira vista. Eu tinha sete anos. Acabámos por ficar aqui um mês. Foi o mês mais estável de sempre. Numa dessas tardes de banhos e cigarras a minha mãe olhou para mim e também pela primeira vez olhou-me. Os olhos dela transmitiam pena de mim. Li-lhe por dentro que sentia a minha solidão. 
A nossa vida dava um filme, oh se dava. É por isso que não gosto de cinema.





quarta-feira, 25 de julho de 2018

cartas lançadas em garrafas de plástico


e ali estávamos sentados
paralizados de uma qualquer acção titânica
os olhos postos no horizonte oceânico
espiando nas nossas mãos estrelas
vigas torcidas espirais de vagas inacessíveis
depois o tempo uma fornalha para mastigar
a anomalia gravítica com que que estamos
atravessar dos destroços uma parede penhasco
que escorre lava de feridas incessantes
ondas de consternação batem aos pés
escutam-se guizos no mergulhar em pilotagem automática
carreiros aéreos de um vigilante que abraça só recordação
e das paredes cavernas iluminadas de laranjas
a terra negra sombria e fria
nas asas dísticos aros de aço para voos a pique
cerrar os punhos atrás das costas e ocultar a desordem perpétua
há nas artérias uma tirania para o trânsito marginal da mente
as ligações vitais caldeiras e ferramentas para a corrente
que nos afasta como navio da costa
o pano de fundo do mundo caído
os pés fora de água, dessa muralha obsessa
para residir nos objectos que nos persistem
um calor tropical de chuvas ácidas
ficam no corpo vestígios que não recordamos
resolvido no espírito o cumprimento solene de um homem cego
que implora por vida nessa caixa de pandora
essas brancas falésias que nos espreitam da ranhura
dou-te a mão confesso que continuo a sonhar com vagas de ondas
e nós a correr numa praia qualquer
numa fuga torturante em vão
que as pernas na areia se atrasam se cansam
a minha obra tornou-me inquieta de instante
mas antes dela não me lembro de ser alguém
tu dizes que o sol desapareceu e que a noite aconteceu
que posso adormecer nesse peito
pelo preço da humanidade inteira
no olhar tranquilo do reflexo da lua sobre as águas
que depois da devastação estão paradas
junto à costa moram próximos os ruídos dos passos
dos nossos corpos

segunda-feira, 23 de julho de 2018

para os mortos


quando das paredes descolarem pássaros

beberás da medula do fantástico
para o cadafalso de um outro céu
nossos braços levitarão juntos
como organismos de transparência
pétalas deixadas ao sopro seguro
e o tempo desvanecido circular
o caminho à beira do abismo
e nossos eternos sorrisos
e o sangue sedento anacrónico
do alto do cume do batimento
o pensamento escalado para sonho
o corpo contemplando a flecha
veloz selvagem magnífica
nosso porto de impressões e rochedos
de irregularidade e elementos ruínas
sermos fumo e passagem vento
para o cuidado do embalo da terra

depois as nascentes jorrarão de lágrimas
das encostas aos túmulos dos vales
os ciclos torturados de sombrios precipícios
e imagens de sacrifício em fogueiras
a melancolia toldará por fim
à contemplação da natureza em fúria
para nos escravizar no vício da dor
o amor vagabundo deambulante dos dias
ondulações de um oceano inquieto
abrirem-se fendas acima das nuvens
e dos braços se arrancarem as veias
e com elas erguerem-se altares de forca

as raízes ainda libertando terra de arrasto
como pássaro que está a aprender a voar
colonizar na sinistra hora do pôr do sol
a substância fria dos olhos de pedra
um cântaro em equilíbrio uma casa páteo
o mar em fogo para árias de insanidade
e cabelos prateados enrolados em castiçais
três luas reflectindo na neve negra
flores que murcham deixadas numa mala
e o ritmo profundo dos pés que pisam
uma cidade alada por onde vagueamos

agora repousam nos objectos as memórias
e o corpo dança na vertigem das horas
e com razão incerta a voz cala-se na minha boca

mas quando das paredes descolarem pássaros
tudo voltará ao seu lugar
e eu posso por fim descansar


quarta-feira, 18 de julho de 2018

vernáculos corpus



o pássaro que não sabia planar
acompanha o barco sem se cansar
se parar mergulha a pique
na água gelatinosa de cristais
um mapa de afluentes convertem-no
para o talhar dos telhados
expatriado da articulação lírica
o pássaro de braços de ferro
carimbando o voo de todas as horas
com a doçura angustiada da gradação
assenta patas no pontal da solidão
onde se contemplam os azuis e se pede a paz
organismo aprisionado na paisagem
essa imagem que nos esgota
- a primeira morada do silêncio é a boca
nessa erótica equação do ouvido
liames de ampolas de emergência
a barca do desamparo atraca ao lado
para a malha que nos cobre a pele
os densos estados da alma
demossilábicos no labirinto das imprecisões
deito-me na pedra do cais estendido à luz
decadente, fétido, o poeta de costas fragmentado
uma cidade emergida da neblina
na agulha da pressão do contador das horas
batalhas no espaço sem fôlego de andróides
holocaustos em cada compartimento da nave
um planeta morto ainda intermitente
gente que pede paz para a gente
tudo é tão estranho e absoluto
um monocarril de um gatilho qualquer
que alguém premiu antes de nascermos
uma mão cheia de tecidos
morre no controle da palpitação que se esfuma
uma atmosfera irrespirável do grande suspiro marginal
jaziam macieiras de fúria negra
quando fecho os olhos à infância
uma náusea interior revolta-me as entranhas
a porção de cabo e parede de fim de mundo
antagonizo-me na compulsão
um lago de hidrogénio ou um ateu romântico
cidades subterrâneas desoladas ou um aquário fantástico
aporto-me no núcleo rígido das sensações
e o desejo insano de ser toupeira
as amarras do tanque a morte da íris
e se acabe o eterno inverno deste mundo suspenso

segunda-feira, 16 de julho de 2018

"ela dança num anel de fogo"


assim foram transformados em feixes de luz
e na telepatia da noite choram-se

apanho os ecos vindos da alma que atirei ao espaço
dos venenos contidos dentro das garrafas

o meu desespero emergente do grito mais grave
atracado nas mandíbulas do nevoeiro mental

retiro-me dos meus braços para te deixar só
para a hipnose sublime da vida arbítrea
os olhos parecem vazios porque na verdade estão
por continuarem abertos os lábios movem-se
aos poucos linha a linha o corpo sossega
para se concentrar numa sonda profunda
uma sonda-relâmpago que ilumina no escuro

não sei quantas vezes enterraste os mortos
e a mim continuas a matar com teus versos
e eu recolho-me para uma posição fetal
contorcida de sintomas de alheamento
porque parti o meu coração para te dar vida
vida que agora não encontro em mim

a tinta que vai secando no odor amorfo
da janela abriu as cortinas e contemplou-se ao espelho
um homem nu e ainda demasiado jovem
trespassado de fantasmas frios e feridas que não cessam

o meu coração de vez em quando pára
paralisado pelo choque de tanto sentir

e é neste diálogo que não haverá silêncios
nessa aparelhagem estereofónica de dor

porque dentro de mim uivam lobos
e uma viagem astral de fomes incessantes

assim como me parto em versos espaçados de tempo
tempo que sinto sôfrego e pouco
e tudo sai de dentro num atropelo de vago e colateral

de querer tanto a vida às vezes me empresto à morte
por isso avanço na destruição e abraço o caos

tenho tanta fome que era capaz de comer o meu próprio coração

a poesia é uma instituição para crianças paranormais
pateticamente deixadas no abandono entre os mortais

e dessas estupendas rosas que toda a gente traz na lapela
sangram pessoas de verdade

e depois erguem-se muros de pão e leite e carnes frias
que nos mordem a mente e o corpo de desgaste físico

e a paisagem primitiva de mistério
onde dormias distraída
mamíferos sanguináreos
amortizados por whisky
e ressacas de extraordinário




sexta-feira, 13 de julho de 2018

o último voo



a trepadeira sobe pela coluna de ar quente
enrolando-se reptilmente de pescoço extensão
os braços as mãos que puxam a corda ao sol
para desaparecer por detrás dos montes de branco
no  instante seguinte o jazigo da solidão
os dias da cólera um odor desvanecido
pendular o corpo jangada sobre o mar
espasmos de luz de línguas mortas
hidra nas suas urnas suspensas de vida
as partes pesadas deixadas à terra
para o transplante cíclico dos tempos
depois invocar-se de fantasmas doidos
para o retroceder da loucura
mais a dentro mais negro mais ordália
o arrasto da distorção das cordas
para o integrar das imagens ainda vivas
um helicóptero pousado na palma da mão
o resmar do papel lençol flutuante
nas grandes trevas onde não se teme a nada
controlar a visão ondulação
os contornos insolúveis da actividade neural
os monitores acusando a geleia imersa do pensamento
a inconsciência a inconsistência
quadros de parede agora de cotão no convés
o olho imóvel de novos poderes
um tanque de nutrientes de massa e matéria e electrodos
os tecidos deteriorados dos processos passados
crianças suspensas anímicas
a zero desprovidos de engenharia planetária
e guerras marcianas de bancos de rostos
tudo terá outro nome de baptismo
antes do holocausto da contracção da dor
cabelos brancos velhos longos secos
antigas civilizações de um papel sedoso e passivo
o último suspiro magnético
para um último acto de mutação sem talismãs
depois as mesmas horas as mesmas estrelas
só o metabolismo poético empírico subterrâneo
o refúgio entre desertos de rocha e afecto
a nave um espaço interior de contemplação
original do êxodo dos primeiros poetas
à beira de um abismo vocábulo
as palavras cuspidas de torpedo e castigo
no absoluto fanatismo expiado
subi a escada de vidro de casaco completo
todo o clic ponta de fio cortina imensa
a terra num barulho irritante de encravado
o movimento parado simulando vida
assinados os contratos de apólices caducadas
lá em baixo rostos familiares presos ao chão
uma mulher grita na escuridão que fica
o grito voa e trepa pela coluna vertebral
o corpo ferve impedido de gesticular pânico
quero saltar porque não sei o que me espera
saltar de uma janela mas todas têm grades de flanela
o vazio é uma trepadeira trancada de retorno
e o corpo uma nuvem almofada adesivo mordido
os ossos despedaçando-se como folhas arrancadas
um corpo gancho que leva atrelado a uma lâmpada
o meu grito junta-se ao outro um buraco que cresce
como se fosse um pássaro morto que engoliu a língua
ou uma alma deixada ao sol em salmoura
num qualquer ponto do universo à deriva

quarta-feira, 11 de julho de 2018

oração da manhã


numa varanda debruçada
um altar de arabescos de ferro
e morcegos na ponta dos dedos
a neblina da manhã a frescura
gaivotas de areia e correntes de ouro
chora exibindo o seu manto de penas
retratos de abandono e de crianças
brincando no pátio de runas
parece que acolhe o sopro de todas as mortes
emparedado de varandas de zinco
e caixas de ar condicionado
e plantas de plástico
diz que se esgotaram as tempestades
contra os dias abstractos
e o sangue coalhado serve agora o prato
diz que o embalo deste prédio é antigo
que só pode ter nascido dentro de água
para a acrobacia em queda livre
de uma gravura marcial de sonhos
em Pequim e a magia da palidez de porcelana
que antes de nascer foi caligrafada em allegros
de piruetas operáticas expressando todas as tonalidades
de um amor borboleta esbraçando no ar
a erosão da ordem fora de órbita da roda do oleiro
e que espelha assim todos os vidrados da alma
em gargalos e asas de bules de solidão
que a vida são alinhavos de bordados
de motivos circulares de avenidas e becos sem saída
e em todos os pregões o desespero antigo
do fruto que chora pela mãe árvore
os pés continuam a vigília dos limiares
consegue equilibrar-se noutros corpos de pernas para o ar
uma passarola passando na distância de outro tempo
uma bola de sabão que vai e vem tocando na cúpula
atrás deste céu outro céu abaixo deste solo outro véu
crescem-lhe cornucópias e tentáculos viscosos
plenos de massas negras compactas
as águas cobrem-se de nocturno e tranquilo
estátuas erguem-se suspensas à tona
percebi que os gritos ecoavam aos ouvidos
que o vestido de chita era feito de tule de vidro
uma câmpanula de lacunas de mistério
o bolor olvidado dos dedos dos pés sem unhas
e uma trança de rastos de estrelas caídas
para comandar a chuva na imponência da lágrima
de um triste pagão emigrado dos astrais hemisférios
como flutua o vago à flor da pele
como do vago se sobrevive no abstracto
como se arrepiam os sensíveis
como desse arrepio nascem os filamentos
de que são feitos os momentos
uma onda maior no atravessar do rio
um enjoo de estômago um vislumbre
para um vocábulo perverso e inacessível
criado no ventre do efémero
e o sono venceu-a no esquecer na benção
no descuido de recordar no picar das esporas
para o desespero de apunhalar cada aurora
da extrema fadiga de lutar
o espírito suportado de pálidos relâmpagos
nasce dos nervos electrificados um monstro
para o curso ruidoso do travesseiro
abençoado aquele que nos oferece o esquecimento
que nos vigia de uma qualquer varanda de arabescos



segunda-feira, 2 de julho de 2018

fora de órbita


a chuva picando na superfície da água
como a vida resolvida no sonho
a tonalidade da pele copo de vidro
relâmpagos para o estalar da cortina
quando se acorda de um sonho dentro de outro sonho
doloroso suspenso o fogo do dragão
espirituosa a chuva entrega-se ao mar
para a viagem astral de cada gotícula
pragas no arrasto das marés
profetizando nossos polutos olhos
enquanto os dias de cinza crescem em paz
enquanto tudo se resolve na fadiga sem fardo
a obra cresce com o vagar do amor tranquilo
e os vermes da terra contornam essa redoma
acudindo ao espírito a mais tenra mãe
o coração poder transbordar-se de desgoverno
esse dedo imundo que aponta o fim
as paredes do mundo caiadas de branco
dos medos papão um monstro remexido nas águas
uma toupeira cega que atraca no porto
para a narração das profundidades
quando a travessia se acaba
numa espécie de contemplação por tudo
a poesia fluindo dos nossos ventres
numa extensão pura das nossas carnes
quando se aceita a escuridão dentro da luz
o núcleo da lâmpada incandescente
hastes de carbono cornos negros
nossos filamentos unidos em espirais
que não se podem mais arder
depois a nave lentamente descola do horizonte
giratória carrossel a infância perdendo-se da memória
mais depressa velocípede a agonia da vertigem
desse abismo de falsas crenças e falsas crianças
o engolir das plataformas e o desespero das palavras
que sem folha são achatadas às nuvens
e o céu e o mar aproximados num paralelismo de atracção
de azul sem dimensão como uma caixa de fósforos deixada no parapeito
à espera de um relâmpago ou de um milagre ou de um batimento
nossos pés enterrados lamacentos como cabelos sem escova
nossos corpos perdidos sem alcofa sem embalo sem canto
para a vigília de uma corda solta uma terra sem órbita
o terrível mal de uma única melodia de uma nota solta
que ecoa ecoa ecoa dentro da cabeça que não é mais cabeça
a sombra a ignição as voltas neuróticas do coração
como um pássaro nervoso que ficou sem voo
que pedala de estrela em estrela sem brilho
ausência e  revolta, só entrega sem minuto, sem hora
livre de assistir a mais auroras e penas coladas pela água
como a chuva que pica a superfície antes da entrega
uma gota de sangue e a droga do mundo desvirtuando-o
para sermos almas rasantes planando
e o próprio corpo mundo planando no universo
perdido






sexta-feira, 29 de junho de 2018

Tálassa Impossível



há nesta página uma vaga sem céu
caligrafias de sombras de lua germinada
palmas injectadas de irrigações fluviais
no alongamento ascendem veios esverdeados
derrames fundidos de pântanos esquecidos
e os ramos quebrando-se subjugados pelos ventos 
do solo virgem as unhas dos pés arados do tempo
restolho de peles mortas pelos ciclos
montes de um gesto desvairado
havíamos nós também visitado as estrelas
e depois o sol caído nas palmas do horizonte
o escalar do fim em epidemias de empalidecer
a imagem crua à volta do pecado
canais de pedra e radiações
aguardando em muralhas túmulos
a imagem móvel transitória dos nossos ossos
porque somos almas emparedadas de berços sem choro
espectrais no topo da pirâmide olhos de vidro
reencarnações de perigosamente possível
em vénias de jade verde antigo
como fera esculpida do centro da terra
também eu fui atirada cometa à vida
sem sopro consolador centelha
para aterrar de pé e nunca mais partir
como eu vieram tantos outros
velhas torres deuses quietas frente a frente
depois um painel quarto mundo
a ponta do lençol a cintura planetária
o vagar de instrumentos sem tocar
instrumentos de cordas trepadeiras
ecoando de beleza de puros tons
em resina pendurado um retrato de compaixão
velas acesas derretendo quartos de verso
minha mãe mexendo ao lume um conjuro
as teias escaladas de vapores e mecânicos relógios
as veias em lacre para nada transbordar da panela
e nós sentados sem vida
como velhas torres que se espiam de tempo
extractores desabando em chuvas de cinza
são os répteis de lés a lés pelas casas de areia
desenhos de espirais e pontos finais
o corpo viscoso fármaco extra terreno
combustível para asas voadoras
asas que não voam porque magoam
são as mandíbulas animais
para nos engolirmos
e de rosto em rosto
estampar o céu de negro
como vagas de pássaros caídos
em gaiolas de sofrimento
e as mãos ramos versos
que espremidos só servem veneno


sexta-feira, 22 de junho de 2018

do estuário do pensamento



a um passo de fé
as pálpebras soltas asas irrequietas
do marfim estátua a pomba à superfície
as horas do vício batidas ao céu flamingo
vulnerável borboleta residente no peito
das salinas da tristeza vieste
emergente da insónia helénica
colónias nidificadas no passado
quente chuvoso o teu corpo holograma
gineceu de uma casa lua eclipsada
o barómetro do peso atmosférico subindo
nossos corpos seios de sonho desencontrado
a sombra descolada dos pés
o sangue trágico mortal encerrado de pandora
a engrenagem épica despojada de paredes de cifras
no epicentro das cidades templos
tudo deixado em segredo para mais tarde
para o fixador de momentos paradoxal
nas areias brancas nutridas de rio
a transparência os ciclos as marés
a biomassa ao abrigo das nossas palmas
ser atravessado por um centauro decapitado
de cascos pesados
quem deixamos para trás
os búzios imaginados da medusa
agulhas abrindo poros nos sentidos
lavrando castelos na areia túneis pontes de água
a ocupação das margens pelas falhas lagunares
é como se caminhassemos sem chão
ou o chão a pele tórrida destruindo a pele dos pés
por isso nos ardemos
deixamos a paisagem do estuário de sentinela
o vidro fosco de uma janela para nenhures
tantas vezes me encontro por lá só
mas não sentindo solidão alguma
respirar o grão desmaiado da tela
uma invasão de onda fresca
o sal em água doce fundindo-me
para ser o que sempre fui
rio e mar e mar e rio e mar e rio








quarta-feira, 6 de junho de 2018

A casa branca


nos anos ocultos o profeta visitou a casa

corredores brancos de portas impossíveis
uma cadeira de rodas abandonada na esquina
e um silêncio de rotina sem habitantes
num espelho de casa de banho
parece que me cortaram o cabelo durante a noite
sonho calvo numa folha de alumínio
ou amianto cancerígeno de uma eterna letargia
rompe no ouvido martelado de obra
a antecipação de uma mosca que poisa
e dos olhos vermelhos fluídos em gradientes de dor
sobreaquecido o ar alcanino sanitário ou naftalino
agarro uma planta uma corda de cortinado
anelados os dedos querem-se inquietos
ergo o braço desprendo-me consigo levitar
fecho os olhos e avanço numa casa de cem quartos
elevador a cabeça de um insecto tridimensional
rasgo o ar em escotilhas de patas de elefante
num sistema soluçante de intermitências
as venturosas pálpebras despem-me de pele
abismal essa paisagem cabide de ossos
a boca válvula para saltar da janela
mas não salto, sou inspirada ao buraco
e a oscilação do corpo reduzido a pêndulo
esfrego-me no sexo que se vai aguando
rasgo o ar em escotilhas de gritos de prazer
para curar a chaga do vagar da morte
a luz cegante das paredes deixa-me sombras
o bolsar do ventre de uma cama sem vincos
para visitar um corpo de coração estoirado
e dar à manivela de um mecanismo aleatório
deixaram-me só neste quarto de tempo
as mãos de uma impotência estranha
apenas esfregam o sexo de tendões emaranhados
para violar cada poro excretor de luz
de membros abertos no hálito da avidez
mas o sentido das coisas não foi arquitectado
astronautas que pisam a terra do avesso
são os olhos que vão e voltam sem começo
as forças esquecidas de recolher alguém
ser a viagem ou o caminho ou os passos
dentro deste corpo apenas se sente fundição
células que se emprestam sem se precisarem
vislumbres tudo pedaço de alma acamada
as moscas erguem-se em coro de candeeiro
uma nuvem negra saída da lamparina dos medos
épico um navio agora a casa baloiça-se de ondas
do soalho soltam-se tacos de outros corpos
grãos de terra lençóis nós de forca
atiro-me ao chão está frio envernizado
ou talvez a superfície áspera da limitação
expulsar-me num último estio sem frutos
como uma oração repetida de espasmos
alguém morreu nessa cama de hospital
meia noite em ponto de realidade absoluta
emergido da terra ardente sem auroras
o último profeta visitou a casa dos cem quartos
para me emprenhar de sonhos e vícios
no abandono desse labirinto de vocábulos
encarcerados num quarto de cem corpos

quarta-feira, 23 de maio de 2018

o profeta anda a pé



um anjo disse-me
desceu as escadas de espírito normal
vogara pela lua
de anotações e saltos de quarto
a fosforescência da queda
nos trabalhos da luz branca
desenhos a lápis
no esforço do sonho perturbante
representando árvores velhas
agachado no reflexo capaz de morder
o próprio lábio
tal vez deitar-me no seu colo
para a habilidade draconiana
pequeno peixe de água doce
no impulso atlante de chegar ao fundo
depois um elevador ou cabo de aço
atravessar  terrenos depressa demais
seguro à linha as mãos frágeis
a linha descendente acabando na ponta mundo
longe de casa tão longe do mapa
saber não morrer na viagem
não poder agarrar uma nuvem
para aterrar de pé
para subir depois caminhante
os pés doridos a pele enrugada
atravessar num estético isolamento
como se andasse de passeio
um anjo disse-me
reconheceu a voz grave da renúncia
vestia cetim preto e gola alta
seda chinesa cachimbo cara branca
lábios carmim para invocar em mim
o princípio do lugar invulgar
aquela coisa que algema que prende
catalisador de sangue fervente
a curta duração
no cubículo das coisas devidas de pé
neurológicas intermitentes cirúrgicas
tão raros para a grande perda
chamara-lhe pavão maldita forma de gesso
o pintor caído de um andaime
a ferida aberta de um prédio
num quarto contíguo à voz metálica
um canto de pranto de malícia
cadeira de baloiço antiga
como um peixe num aquário
o rabo entre as pernas
coral seco de prateleira
sacudindo as moscas o espírito de repouso
no repouso completo das escamas
lâminas de barba a quietude do silêncio
necessitando de um gato
de um telefone que toque
a direcção do pólo
do calor húmido do sexo
anzóis para um passatempo peso
e buracos de um campo de golfe
um anjo disse-me
um bando de codornizes o canto de galos
o mugido do gado o cheiro matutino
a pastagem caleidoscópica
desenrolando-se como uma fita matraqueada
a brisa da madrugada liberta
formigando das chaminés
das maçãs de adão dos pescoços de galinha
anémico globular hipopótamo
quartos de círculo de sol guindaste
o cirurgião de mãos limpas
a tinta já encarnada no casco dos homens
bonecos de absurdo incansável sedativo

um anjo disse-me
fedelho do próprio demo
insecto dos próprios miolos
injecções de poeira catatónica
para andar aos pulos numa corda de violino
para pronunciar dos lábios ao auscultador do mundo
que somos a atracção física
o mistério espantado pelo próprio reflexo
a atitude livre dos loucos
a amortização da hipoteca
numa espécie de idolatria pela terra


sexta-feira, 18 de maio de 2018

pranto da melancolia


À água pedra lascada
o envelhecimento das marés da lua
lobos de um inverno estranho à espreita
árvores caminhando por todos os cantos
olhares em diálogo da linha pungente
da cavidade torácica a máscara cirúrgica
a água periférica dormente
dos impulsos vitais perfusionista
para a técnica de transplante da alma
agonizante
litro fluxo de sangue oxigenado
contrair-se expandir-se
se o novo coração batesse
hipodérmico esponjoso sorumbático
o tórax aberto injectado
para esse bypass de amor
varetas elevadas acima do horizonte
olhar vítreo de ogivas esquiadoras
havia uma fronteira perto da dor
o passo aveludado uma viagem solitária
o fixar das garras no cangalheiro
predador sinistro sibilante
lince do silêncio das clareiras
esse ponto de fuga de anta magnética
navegante arquejante
as patas dianteiras as primeiras casas cómodas
cornucópias de rancor enevoadas
para o latir das trovoadas da recordação indefinida
o sol, a cal, as paredes
constelações redes de janelas abertas de lua minguada
até amanhã que são só lugares
o movimento dura a imagem translúcida
chorões abertos no espaço verde fármaco
a electrocussão polar que nos derrapa a cada segundo
o voo cativo para mastigar o vazio
o ódio implacável no cadafalso da existência
sempre nos meus horizontes
o infame punhal cravado de inflexível maldição
negoceio-me de horas sem narrativa
o antes fortaleza guarnição cárcere
quero sondar cada aparição solar
com a convicção de que estou vivo
calçar os estribos da loucura
o perfume férrico diluído na maresia de pontão
cada embate de chegada e partida
uma ilha de terra e calços humanos
onde estarei sempre de visita
o estúpido remate do coração margem a margem
de noite a respiração lenta das águas
um túmulo de sombras nos cantos do cárcere
os olhos vagamente na luz extinta da lua
nesse movimento de sentir o gélido contacto
dos espectros que andam à mercê da maré
de um sono ligeiríssimo
a luz que preenche as fendas do peito
o sol que rasga a pele e nos devolve ao mundo
escutai a meia noite da hora lendária
erriçarem-se os cabelos da cabeça
na terra dos grandes criminosos
o rumor dos passos já próximos
um homem envolto num grande manto azul
à insónia entregar as palavras
havemos de passar pelos corredores das ruas
servir de mordaças e roupas brancas
até amanhã pela manhã
a água ferramenta das nossas lascas
para nos esculpirmos num só
numa qualquer ideia de cumplicidade
com a íntima paixão da escuridão
havemos de explodir com essa embarcação
que nos empurra margem sim margem não
e trepar por todos os sucalcos do inferno
pelos intrincados corredores do cárcere
escutai a meia noite da hora lendária
a maquete original dos drenos da morte
para o voto solene de morrer para o mundo



segunda-feira, 30 de abril de 2018

sintra


espancam-me os horizontes
a pele da árvore ainda a latejar o corte
o musgo ainda fresco que sangra a morte
está a cair água do céu
as ruínas do desagravo do mundo
a coluna dorsal o culminar da lágrima
rondam albinas aves de exércitos de azul
olhos glaciais para cabeços de condores espíritas
a angústia trituradora em aguaceiros de belo
a pele citrina para a imperfeição da vitrine
quando passamos a moldura e contemplar
os ninhos de cegonha que a linha segura
os sonos planaltos ou bosques de fantásticos
que a nossa vida nunca há-de refletir
será sempre um refúgio, o nosso refúgio
cilindros de ventos para cerradas míriades
tudo em que acreditamos o nosso deus
tudo movediço efeito de tormenta e memória
paus cornos chocalhos mosquiteiros
um pedaço espelho de chuva poça
tudo é tão tocante quando a auréola se dilui
límpido fresco absorvente
de tão puro entonta a gente
parte do que cresce livre e parte do que destrói
a própria natureza do que ama e dói
ecos de deuses que por ali deambulam sem fé
porque a fé não abate o som concórdico da dor
morrer de sono nem sombra nem alarme
o acender do fósforo das luzes da aldeia
onde nunca habitaremos sem fome em tectos
a cabeça histérica as mãos suspensas atmosféricas
carrega-se no pedal a fundo engole-se o mundo
uma noite mina a solidão ás escuras
apóstolos de versos que ardem no braseiro
vítimas da guerra do afecto que mata por dentro
e colateralmente se espalha como vento e cinza
o comboio regressa-nos sempre à babilónia
parte de nós fica insone por lá hibernando
nos depósitos e quedas de água, tanques de sangue
e prantos guardados pelo cão negro que nos espia
calcar o tabaco com os dedos ritos de fim de passeio
calcar o coração de paredes mortalhas
para levitar em contra luz nos contrastes da barbaridade
que nos rebenta o crânio à pedrada
o raio que não nos quebra em dois e as lagoas
que não transbordam em depois
o caminho dos malditos humano animal
dente de alho sal ungento de lamas ossos moídos
traz por dentro a malícia o mirrar emagrecida
a curva da folha a fúria a revolta da palavra
a morte fluía fluída para ser servida a garfo e faca
a dentes e língua...
espancam-me os horizontes de
fortuna mistério e morte

esta noite não partiremos esta noite não partiremos




sexta-feira, 27 de abril de 2018

conserto a quatro mãos



a aflição viva dos tectos
de quem se opera de fios de seda
pendurado de ganchos braços
o impulso de nos partirmos
agora por dentro os uivos gritos
no soturno mutismo próximo de nada
de quem se opera de fios de cabelo
a obsessão da moldura do imagético
esses tectos lâminas redutos
o pêlo depilado de dedos agitados
os campos livres de cores violentas
estrelas de metal íman de peso mortal
nos azedos da boca de anjos vagabundos
o roçar de lábios que se desdobram
do renovar robótico de línguas agulhas
o estilhaçado transversal do chão
em subterfúgios no corpo soturado
se confunde de enjoos e plenos
o fundamento da mortificação
acolher o fim da insónia uma flor aberta
tudo testemunha a fúria violenta da vida
as horas debilitam-se sem resistência
mordaça  de campos blindados
roço em jardins de cor de rosas
jardins de campas de mármore rosa
coleccionado-me de vidas
nas marés sucessivas da urgência
poisa-me no peito a mão
as unhas cravam o ritmo do rasgar dos pontos
penduram-se garrafas nas paredes
e peles arrancadas a dentes
respiro findo respiro-me de vidro
quero do espírito desabrido desabrigo
a longa lenta letargia das veias
beijam-me no pescoço
chagas de velhos traumas
as tuas mãos
eléctricos campos de ventosas
resta sempre a imagem
de amarelos laranjas enjoos de luz
havia os olhos de riso
de horizonte condutor carburante
o tempo abrindo-se de certas horas sísmicas
e cinzas cobrindo de auroras as crateras da vida
a aflição bruta dos tectos que nos espiam
para quem se opera e cose de fios de morte
para sempre voltar a imergir na tua boca
pelos interstícios da roupa



sexta-feira, 20 de abril de 2018

âncoras de clausura



o carcereiro envolve o rosto na neblina
para o choque violento do descolar
dos pontões de ferro
marujo das vibrações do quebranto
olhando demoradamente num rogo
a vermelhidão dos céus
o lume do pensamento sossega no embalo
a respiração insone do atravessar das coisas
que têm pressa em partir
na perpetuação das ventosas do pentagrama
o desgaste do profundo caudal
as algas mortas nas encostas
no postiço da plataforma humana
a margem que o liberta nunca dizendo adeus
ofegante galgando passos na vastidão inesgotável
no esforço de se reter no alheio
olear a proa que comanda a fagia
a carne quente para as águas frias
nas costas a ferida dos bichos diurnos
o sacrifício dos nervos da vigilância
o puxar da âncora por entre o cardume de índios
donos das margens do sol ao sal
a costa enfurecida talhada a pique
caniços de ossos no abandono das antigas estruturas
ainda as vozes, os corpos hologramas por ali divagando
num canto mordido quase inaudível
quase balbucio de peixe fora de água
no atordoamento do desaparecimento
a sedução panorâmica do vazio
uma aldeia marinha de almas marginais
enfatuada de presságios e jangadas primitivas
bichos que se atravessam todos os dias
o desdobrar lento do azul em chumbo
o voo astuto dos animais de consumo
gozando do absurdo do triunfo
de sondar as nuvens de cabeça invertida
com o embevecimento hipnótico de um deus
que já voara por ali nas nervuras nos tendões
vestindo a pele grade da agonia
como pássaro destravado da íntima obscuridade
a vaga lenta da respiração dos estilhaços
bandos de asas agora repousam nas areias
podres cinzentas leitosas citadinas
a muralha erguida a pique nas falésias
emergem das nuvens conversas pardas
a casa o incêndio a cratera do cristo extinto
espelham-se horas forradas a musgo
no cativeiro do imaginário em passeio
não se cheira não se apalpa só se cobra
o tempo mitológico das hidras
esse caudal ilustrador da dureza das águas
mantas que nos cobrem de romantismo
o eco retardador do fim para o princípio
varrem os sinais de uma infância feliz
como abandonam as mãos um barco de papel
palavras que partem e se afundam
com o peso, a lonjura
as mãos agora rugas de marujo embriagado
sem força para içar as cordas
para o vibrar das cordas das palavras
que todos os dias vê partir e atracar de novo
como um poema cabeça de hidra
ferida nunca cauterizada


sexta-feira, 13 de abril de 2018

cante negro


o peão divaga na escuridão
belisca-se para se saber acordado
os olhos desaguando no instante
fundem as ervas na penumbra conspirada
uma gaiola de vidro a carência do ar
as geometrias tropeçam nas horas
no restolho da infância
porque tudo é distância e perto
a paragem deserta de beira de estrada
o altar da senhora do abandonado
a bica seca o cão que dorme o silêncio da morte
as flores murcham no crepúsculo
carnívoras segredadas na moldura
trepando pelos telhados cobertos de geada
o relógio parado quinquilharia
a inutilidade do gesto dos objetos
espiá-los denunciando a filigrana
do anonimato nas pupilas do terreno
destilam-se gotas de amargura ou solidão
e ás vezes uma paz sem igual
do fundo das costas descolam-se os ossos
o corpo mole procurando já a terra
habitado de miragens antenas rígidas
não existe para lá dos muros ponteiros
larvas de uma fadiga crónica
no intervalo taciturno dos sonos
o silêncio sedado
álibi para tormentas fantasiosas
no ribeiro das renúncias carreiro
gangrenando essa juventude acabada
não se sabe quando
é toda uma paragem na têmporas doridas
da luz cegante do meio dia
o que se esconde na clandestinidade de uma sesta
mordente ardente o sol
o fogo lento da espera
a vida é a vida a morte é a morte
como esperam os animais sem gravidade
minas costuras lavrando a voz uterina
lhe empresta o tronco a solidez
a cortiça o vinco da memória a seiva
o mundo esventrado na barriga do animal
esses instantes de tréguas
o cão beija-lhe a mão
esse áspero que todos comungam entre si
alfinetado grotesco trapos de tricot
ai se as palavras alguma vez violassem
o curso das terras virgens
testemunho de um templo de ninguém
não fosse incêndio perfuração túnel
escapar do seu poiso
das paciências das urgências
das paredes que levantam a terra imensa
o prenúncio da rendição
as mãos passivas névoas do desespero
corre em bicos dos pés entre pedras
despe-se grita rasga-se de peles cripta
que pode a loucura ser-se sem testemunha
masturba-se ama-se odeia-se embriaga-se
a tontura do alheamento
para uma corda ao ramo
um baloiço enforcamento estendal
demora o olhar no enrugamento horizonte
procura o chamamento de desejo algum
raspar com as unhas um nome
cheirar as fezes esfregar-se na urina
as dunas dorso do animal arrepiado
bater com o cajado na cabeça
engolir as ervas as águas estagnadas
calar silenciar as vozes de dentro
a desordem libertina do momento
ginasticar desdobrar o alinhamento
os olhos míopes de ausência
brigar com a tela o espaço a cabeça
as manchas estriadas do céu desabitado
sentir o sangue oleoso sôfrego nas veias
evocação quebranto do impossível
aninhar-se chorar odiar-se solitário
poeta pirueta trapezista inevitável
ave migradora animal parideiro
a mediocridade do desencanto da cadeia
sem crista afogado azedo
sequestrado do dia repetido
da terra um puro sangue pausado
e jurar a pés juntos que nunca teve passado
catando os pêlos brancos do peito

quinta-feira, 12 de abril de 2018

O espaço do tempo



os pés no fecundo mistério
uma baforada de sonhos na tarimba
túmulos úlceras do inferno
tonturas de gasolina
roer por dentro as mágoas
brasas de cigarros fumados
do tampo de uma sala vazia
a lâmpada explodindo do lado esquerdo
a sombra do clima avivando-se
conquistando espaço na língua animal
há um remoínho de espasmos
do tampo de uma sala vazia correr cortinas
a repulsa do domador sodomizado
devorar goladas de sangue humano
acústicas de pânico
um pássaro antes livre na linha
agora uma mosca do lado de dentro do vidro
um peão atravessa o quadro limpo
sente-se o acariciar das palmas na tela
tons de cinza para a calvice do tempo
a cabeleira das árvores desmazelada pelo vento
vindimadores presos aos ciclos
a paisagem despida aqui da noite caem bagos
querer partir com o gesto do fastio
a sorte muda como os carreiros do rio
para o corpo no sítio das almofadas
estático no fundo das pupilas
a imagem dela desvanecendo-se
o desmaio da felicidade a seu lado
ou das coincidências de pincelas de acaso
refresca ao relento o corpo nu
velado por uma cascata desejo que cresce
a rocha que protege a investida das margens
engoliu-se
o grande lenço branco das nuvens
o homem peão que vive no trovão
uma ventoínha no vácuo
escravo dos cemitérios do agora
o círculo encolhendo de estranhos que o choram
uma balança de pratos palmos
nas linhas da pele respira-se o peso
espalhar das alturas os santos do altar
sementes à terra de enterro
depois, tudo é humano
com a mesma cadência das coisas naturais
cálido o vinculo aos tombos no peito
a ponta do prego a memória
trejeitos esgares emanências
lá em baixo as casas anãs
no limiar de cada instante espelhos lavatórios
os muros vendas fracções
traços póstumos olhos de fogo
estalando o gesto gesso dos espantalhos
o sacudir das cinzas colina abaixo
um gato preto à luz de um acidente
um guizo cauda espeto
oblíquos metais no horizonte
esse caudal mistério de submersos estéreis
o palpar das brasas arrefecidas
procurando-se o agasalho das tripas
o termómetro alvura losangos para uma tela cúbica
radiadores habitáculos torres de altar
tecem as lâmpadas para o rebentar
ligações sem fios de lucidez campo fora
água benta agora Aurora
o aparelho harmónico da paz
os estendais adormecem bem fundo
à margem dos ventos das chuvas
água e barro para as mãos do impulso
vagas esvaziando-se da rudez
um galo negro anunciando a hora da morte
dentição de pedra manobras chocalhos
a giesta o leite a massa espessa do nevoeiro
cantam as searas sepulturas por nós procurando
o peão imagina-se fora dos castelos, da cidade, do pedestal
saúdam-no as árvores ancestrais bifurcadas
as náuseas do tempo da vida amordaçada
a fome o grão a aceleração
em resina ossos emanados
fora da cisterna fossa céptica do corpo
que não reconhece como mais seu
os campos as telas o cantar dos galos
fecho os olhos e procura-los
para levantar os pés do fecundo
Mistério




segunda-feira, 26 de março de 2018

da pupila do olho, a escuridão


rebentam das fendas fogos de fuga

o dia nasce faraónico
para a luxúria da intimidade
criatura cadabra do grande barulho

o tempo ainda húmido
do azedado fabricado das tinas
que lavam para o rosto da laboura
na cadeira baloiçante golpes duros
atravessam o alcatrão lamentos
para uma imagem de rosto ácido
o alívio no alastro de pontos de clímax
veias que se brincam por entre os dedos
embalsamadas as formas gritam
degraus metalúrgicos cem polegadas
os paladares os cheiros a fórmula
dava-se à confissão a disposição anémica
uma gota de esterco no grau zero do oculto
o fervente despertar das trevas
as fissuras que nos atravessam com pressa
o trajecto poeirento clorofilino
rótulo endereçado ao comboio de néon

a cidade nascida das caves
projectores com lábios e línguas bifurcadas
uma espécie de serpente de viveiro
corda infernal para o enforcamento
a luz desterrada dos nossos olhos
que se encontram no invisível murmúrio
de uma meia noite sem amante
beijos de veludo engolidos a seco
a língua alcatifa infernal do medo
copulando dos arranha céus
abrem contra o peito projectores astral
a violência de nos condenarmos sós
a língua materna balbuciada de morte
na catalepsia de um amor débil

o dia nasce do leque de penas
um pavão de negros e vermelhos
pedindo esmolas para o ascensor
de quem não pode morrer de dor

as penas batem contra a fachada
de uma velha cidade oxidada
contorcida de cabos de aço
e débeis gritos de fracasso
velho rouco atarantado
descrevendo voltas no asfalto
espectro de mundos em colisão
omnipotente de urina sem tesão

do subterrâneo batalhas remotas
uma tocha no fundo do túnel
cambiadas almas motorizadas
a palidez fúnebre do homem trágico
mercado negro de dignidade
sensações olfactivas de contrabando
pelas arcadas sem proprietário
através do vidro sem guarita
nascem dias de sémen vulgar
a carne atmosférica escarradeira
de uma ideia de cela e vácuo
o homem retrato anjo negro
película gelatinosa mutante
mamando do seio de um cabra
de pele enrugada e pernas arqueadas
o homem espelho em queda
gato de repugnância sem entranhas
insecto cabalístico da loucura
emergente de todas as coisas
filhas trágicas da meia noite

rebentam das fendas fogos de fuga
orelhas de elefante serpentes gigantes
o dia sepultando o veneno do adeus
engomado o amor da língua negra
da fuligem das asas de uma borboleta
comboio destino amestrado
pescadores de edifícios sem alicerces
guarda da infância nostalgias
o custo do choro que atravessa o sangue
a poesia de ancas roliças
pernas abertas ao comandante
filho errante da meia noite
putas de nova geração
novas viúvas de coração
bebedouros para rins artificiais
uma nova aurora infectada pelo vírus
de úteros podres de tecnológico
a licantropia privada de telepatia
de uma meia noite sobrenatural
filhos odiados sem ódio
peito sem ruínas e algemas sem punhos
pendura-los pelos pés
para que rebentem como fendas
e ardam como fogos sem fuga
encarcerados pelo dia sem luta
e o cheiro nauseabundo de corpos
que nunca sentiram o apelo da alma
o odor a fórmula a putrefacção
das celas que ficam abertas à escuridão


terça-feira, 20 de março de 2018

mãe, já te choro


subias agora o monte de areia
as redes cabelos embrenhados de algas
sigo-te pela teia no arrasto
sou pequena e reclamo com a temperatura do vento
vai devagar que não me quero soltar
peixe fora de rede molusco sem concha
no apego à vida a última golfada de sangue
para galgar a terra e os homens e a morte
a morte surgindo terrivelmente selectiva
da membrana das crateras que se esculpem
para o tempo ingrato dos ritmos
da impotência dos ciclos da placenta
da síntese da terra dos abismos
que de geração em geração se revelam
depois a mão trémula e o coração de mãe
chegar-me um colo um beijo um abraço
chegar-me o medo terrível do desamparo
o mundo dos elefantes que choram
as reviravoltas acrobáticas de um avião
que não parte do chão
o céu retirado de pedaços de vidro
e uma praia imensa de inverno e nevoeiro
depois tu mãe à minha mão entregas
duas bolas de gelado e um penhasco
há um arco-íris que se desenha
quero mergulhar no oceano mas está frio
sinto pedra nos pés
entre mim e o infinito esse penhasco
depois uma ilha
é preciso deixar a boleia e caminhar
procurar a esplanada mais deserta
a paisagem mais iluminada mais idílica
e o mar no horizonte a encaracolar devagar
na promessa de sermos parte mais bela
meses de verão que não findam
crianças correndo na areia
inteiramente nua a crença na vida
uma súbita nuvem que desaba
para xailes negros de enterro
uma onda gigante que cresce para o céu
a nossa pequenez emerge da sombra
as pernas mecânicas não correm
o nosso corpo levanta levita
uma massa de água envolvente
ainda a crença sem corrente nem abismo
dizes mãe que sonhavas do mesmo
se me incarnam os sonhos de terror
formigueiros de gente boiando
uma tripulação de gritos onde
ninguém se despede convicto
baloiço na vela de um barco salvador
cego de cólera na voz estranguladora
os punhos cerrados contra deus
quero acordar e não posso
abrir uma cova e enterrar o oceano
o próprio imaginário das coisas naturais
a imagem intolerável do fim
encarnar o diabo para não despertar
como o ser mais só
na imagem intolerável sem ti







quinta-feira, 15 de março de 2018

mãe de água


para medir forças podia estar descalça
a pulsação da água circulando nas têmporas
as paredes escorrendo o etílico da noite
gotas carpideiras do vício ou inverno
sigo pelos passeios que a alma glaciou
bebemos da taça do cristal necrófilo
e de socalco em socalco nos vertemos
a densidade do soro da morte
no alheamento da estátua mãe
a alma animal levanta-se primitiva
vagas de pedra para lambermos
ao longe escutam-se rugidos
propaga-se como oferenda trilhos fenda
os cães tropeçam-me nas pernas
nascidos de uma paisagem árida de alimento
porque nos vêm velar o esquecimento
e a pequenez de ramos elos
a chuva leva o que de mau há na gente
com os seus modos ancestrais
cabelos, unhas, pele, língua
nas curvas ossadas acariciando-me
cardumes de dedos escorregadios
os olhos presos como âncoras de saudade
mordes a quebra do silêncio para gemeres
as mãos nodosas saturadas de arrepio
vai crescendo entre as pernas o mastro
para naufragarmos nesse chão viral
imitas dos deuses a sua presença
estarmos aqui captura reagentes
as tuas mãos tremem-me na retina
nas linhas envenenadas de sangue
corpos nus carros de bois
vidrados na fadiga de não mais galgar
corpos alados ávidos
farejando buracos tocas para hibernar
o solo transbordando de impaciência
a natureza revolta-se trovejando
eriçam-se as escamas do vento
para a possessão de todas as fibras
os quadris arbustos para o desequilíbrio
sinto-me incontinente de dor
chega-me o atrito da falta de fronteira
não sou ilha, nem banco de areia, nem alga
tudo tem a desproporção do infinito
a inércia dos cascos onde a água chega agora
o pescoço à boca ao ouvido
nascido afogamento do espírito
nascidas de uma ferida desesperada
da tentativa inquietante do romper das sombras
golpeando ondas hologramas
das caves céu evadidos
nos descobrirmos perdidas uma na outra
e a chuva continua no febril abismo
para nós cai, para eles parte
é como um grito ou um beijo que morde
quando tu és eu ou eu sou...
danço porque no ar há menos morte
as raízes já seguiram o seu curso e eu danço
levada por uma emoção desastrosa
típica das estrelas inacessíveis
ou da civilização dos deformados
arrasto do desprezo de me precipitar
tenho o corpo corrupto de seco
na euforia do remédio ofício
de querer das vagas um mantra
e eu sei que danço para não estar parada
quando é a água na sua virilidade
e a alma afinal amestrada
que me satura de espasmo