vejo o campo na cidade
na espiga vendida à porta do supermercado?
vejo gente do campo entre pseudo urbanos
no olhar, nos modos, nas falas, nas tascas
não na avenida da liberdade nem no chiado
vejo-os nos becos, nos bancos, nos passeios
à beira rio, nas ruelas do rossio, em alfama
nas livrarias, à porta de casa, às janelas
recordando à conversa, vendo passar um barco
anotando um verso, tirando uma fotografia
mas sobretudo longe, longe da correria
não de fato, na fila do supermercado
entalados no eléctrico ou correndo para apanhá-lo
não cansados não ocos não vazios como os outros
se calhar sou só eu que vejo assim
o campo que na cidade em mim existe
podendo até vestir um fato, correr ao autocarro
andar cansada, entalada, furiosa com a fila
tendo deixado a pronúncia, os modos
sem tempo para conversas ou vontade de tê-las
mesmo andando tantas vezes assim, ainda sou
o campo, a espiga, o canto e a bandeira vermelha
e sabes como sei disso?
porque quando vejo à porta do supermercado
a ser vendida ao molho a esperança da colheita
do ano que virá, assim vendo-a ser ignorada
desconhecida, atropelada, a pobre da espiga
eu sei que ainda está dentro de mim a semente
da terra, do bem, das gentes que falam de dentro
também há quem daqui seja que a respeita
que a lembre e a persiga até à periferia neste dia
também há gente profunda, inspirada com alma
gente da grande cidade que nasceu e viveu
em bairros que em nada diferem, dos campos
não é desses que falo é dos outros
dos que usam a cidade, que aqui só trabalham
que não a visitam, que não a passeiam
que vivem em caixas de cimento, cinzentos
pálidos, transparentes, superficiais
desses que não conhecem os becos da sé
que não ouvem o fado, não vão ao mercado
não param saindo do autocarro para conhecer
nem sequer lá para fora olham na viagem
porque não há tempo, nunca há tempo
tempo, tempo, tempo, gasto em nada!
seis da madrugada para regressar de noite
porque o trabalho é longe e muita sorte em tê-lo
porque somos muitos e ao domingo sim
ao domingo lá se passeia pelo centro, do bairro!
vejo o campo na cidade
na asa de uma pomba, na arcada de uma casa
na vista da graça ao rio ou da graça ao castelo
no peixe do mercado, na fruta e no talho
nos velhos, nos copos de vinho, nos livros
na calçada, na severa, no santo antoninho
à beira rio, nas mochilas dos garotos,
nos pares de namorados, a pé devagar
com calma para ter tempo de bem olhar
vejo porque ainda me encanto e tanto tanto
tenho ainda para conhecer, como se cada árvore
da planície fosse tudo isso, diferente da anterior
migrantes de todos os lados, camponeses citadinos
que nunca assentaram arraiais não se esquecendo
que onde as suas mãos nasceram a cova hão de cavar
e para ela levar pão, amor e histórias para contar!
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