quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
mãos de areia
fio de prumo para atalhos de remendo
as mãos pálidas reconhecem o tecido da alma
essa pele céu de elástico horizonte
quando poentes se deixam em repouso
e a alma abandona o corpo para
desatar a correr pela margem fora
num gesto mutilado quase humano
curvando o declive da dor a dentro
dobrar-se contra a corrente do medo
porque o passado se deita em mãos de areia
pende uma folha num fio de seda
sede indolor dedilhada pelas patas da aranha
do alinhar das pirâmides vertebrais
prumos pesados não sensíveis ao vento
assim a alma que se acolhe do infinito
que aponta o céu na graça de se encontrar
nesse cromo movimento de mandalas
que recolhemos dos quatro cantos do tempo
da captura do magnetismo do que nos separa
são missangas de curtos beijos alinhados
a cor do sol em uníssono
das sombras espirais de pigmentos
deixados ao acaso nos dias
tinta à base de lágrima explodindo na tela
como se cuspida de uma garganta em sangue
estoiros de balões tal orquídeas
um túnel de ausência da decomposição das horas
deixadas ao acaso nas noites frias
lapsos de anos ficaram dentro de mim
esse fio de ariadne onde tudo foi em vão
e a alma abandona o corpo para
desatar a correr pela margem fora
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
Entardecer das alturas
são as almas que sulcam as pedras da calçada
que se abrem de revolta
dos aéreos acordes das gaivotas
que se desfazem de anil além portas
a nossa alma transfigurada no grito
o som grunhido do dia rendido
todo o lírio azul de intocável dor
tudo o que se sente de incorporado no ar
e há o gesto nostálgico
no coro das vozes que nos trazem o mar
o mundo redondo e polido
quantas vezes percorrido sempre o mesmo
quem nos sublima o caminho
para a vingança de continuar vivo
como um repuxo arqueado
no seu perpétuo instante
corre o murmúrio desse mar na fonte
embalando o abismo num só trago
são os traços que se diluem de absoluto
urge amordaçado o tempo da solidão
tempo secular de ninguém
delinear das alturas nuvens de espuma
um oásis impalpável de ternura
porque conversam as gaivotas com o cenário
nesse movimento sísmico de nos revirar do avesso
sombras que invadem o soalho
quando o dia entardece sem começo
são monólogos de pedras
da saudade bruta da entrega
o silêncio do vagar sem migrar
do vagar do sopro que nos vinga de pé
terça-feira, 20 de dezembro de 2016
pontes de céu
a paisagem obscena redime-se
às linhas mais concretas do esqueleto
as linhas que guardam os afectos puros
das mudas de inverno das aparências cruas
a apoteose de uma anamorfose
quando da fonte estreita alguém se afoga
mas a morte é apenas o começo
como retorno a uma infância tardia
o tempo sobe e desce pela coluna
pulsando de vivo o desejo frágil e antigo
reconheço o tempo por dentro
e como tantos outros pássaros
parto sem olhar ao espelho
parto de um próprio e livre sentido de ser livre
como se o fosse só porque o sinto em partir
cada elemento de dor que em mim não coube doer
rendilhando a armação de um corpo que se desprende
para voar deixando o chão
em anamorfose sou todos os olhos meus
e muitos foram os que me viram chorar
mas a paisagem é um regaço em aberto
coberta de farrapos de céu
que à noite, numa parcela de sonho
apenas se apalpa de azul
e do vagar do nascer, do vagar
que nos recorda as paredes do ventre
das primeiras horas da precipitação do amor
são esses braços extensos
que nos prolongam as linhas do esqueleto
o nascer das asas para depois
atirado o corpo contra a luz
nesse compasso de estar vivo
vê-lo partir
domingo, 18 de dezembro de 2016
a vida de um rio
as águas percorrem o monopólio dos afectos
desse rio que está ainda por nascer
da gestação de tudo o que está por chorar
dos movimentos de massacre do coração
o rio flui sem idade para desembocar num mar doce
querendo degraus para tropeçar em cascatas de paixão
nasce para o encontrar de um corpo impermeável
nasce do espírito abalado de interrogações
de estarmos à mercê de um ventre sem remoínho
subterrâneo um destino que acontece
que se prolonga do imaginário à ondulação
um movimento suave mas possante
que nos arrasta sem que abracemos as margens
porque uma mão não basta
mas nós somos um rio de valsa lenta
porque nascemos em olhos de água
pelas entranhas de cada bifurcação do depois
por onde a procura foi só o berço de devaneios
o pesar do enigma vivo..por aqui andamos..sem mais tempo
para o salivar do coração à tristeza
agarrar o lugar do instante..aqui de verdade
como salvação para uma vida inteira
porque a vida continua até à foz
a margem provocando os contornos do corpo
um corpo que sem fluir seria qualquer outro
águas clivadas a que chamámos de outras vidas
um rio sombra a que chamámos de eco sonho
mas quando parte, esse rio não é mais o mesmo
viajando-se a bordo de um caudal de esquecimento
alimento da hidratação de rios menores
há apenas o devaneio de transcendê-lo
nas imediações secretas do soalho chão terra
porque se fica. se vai ficando sem conhecer
um rio que nunca chegou a amadurecer
ficam os sedimentos no abandono das margens
e compreender o impulso da morte
indo ao encontro de um passado sem prenúncio
como a cadência desse rio que já partiu
invocando as texturas dos rituais do choro
porque esse rio nunca será encontro de si mesmo
revisitado de todos os lares sem porta
não precisar de ser entre paredes
encontrar-se perante a exaustão
de não ser mais água, nem céu, nem nada
porque a bruma da manhã nasce sem começo
o espaço oculto do número sem equação
as sombras elípticas que nos atravessam
todas as inquietações atraindo ao abismo
no gesto do despir das amarras sem depois
tudo fica, em bruto no fundo desse vulto rio
...fica o lugar de ser o vazio
domingo, 11 de dezembro de 2016
num vazio de quimeras
os pensamentos acordam com o cair da noite
o tempo do sol não sair da sombra
fogem do corpo contraídos gemidos
ao colo, uma cadeira que já não tem balanço
dos cestos novelos de pó, sobre a mesa frascos
um líquido corpo pastoso que talvez tenha sido choro
a neblina do encanto repassa a pele das cortinas
do longe animais varrem todos os caminhos de dentro
o barulho do vento imitando a aridez das cavidades
os olhos ardem de uma febre pouco terrena
como o fechar de todas as gavetas das coisas vencidas
ficará no fundo o primeiro momento da captura do mundo
da invenção do silêncio como frase pura de coerência
porque não haverá mais nada a dizer
trazer consigo a sintaxe de toda a eternidade
a solidão fecundando ecos no vale das aves quebradas
acorda-se com a vontade de levantar o tecto, de arrancar o chão
de deitar abaixo as paredes do coração
porque foi caindo a noite
e é tão difícil mover-se no intervalo das sombras
porque tudo resiste a nós e só mais tarde se desfaz
então o néctar é um grito desdobrável
de tecido de alma plástico
e anda-se uma vida inteira a borbulhar de lava e cólera
para brotarem apenas horas do ordinário
e das infinitas órbitas das faculdades do voo
que vão a enterro pelo chamado tempo
fica o tempo do verso que chama, que é chama
o prolongamento do verso sem tempo, a cinza
que não se renova das coisas entendidas
nesse bater metálico o extraordinário sentir mecânico
pela noite pelo dominar dos pés que vagueiam
ungidos de uma saudade desfigurada
do ser sempre ontem e mais nada
hão-de surgir palavras para quê?
quarta-feira, 30 de novembro de 2016
no limbo do fado
pulam das bermas cordeiros
atirados ao trânsito
do despontar da liberdade
os caminhos de terra sentida
aceites no alcatrão com que matarão a fome
encontros no alpendre
do azul transfigurado da mente
nesse degradado de lágrimas
os filhos desses cordeiros serão vagabundos
sonhados do amor calcetado de asas
asas que não voam
dos casulos de cimento rogam
pássaros dentro de gaiolas
o aveludado desses olhares
mortais sem pigmentação
o corpo no desejo da evacuação da mente
despertam das paredes silhuetas
conservam-se quietas
à volta da cabeça tarântulas maquinais
fabricando-se o ritmo do além sol
para a recuperação dos além vivos
no combate da memória
a duração das horas nesses casulos de ausência
como cães aventados à noite
com a fome escarlate dos homens crus
os instrumentos de deus repousam sem tarefa
como as caveiras debaixo da terra
romper a transição da imaterialidade
nos olhos de lince que constroem a vontade
guindastes e andaimes para uma torre sempre rasa
no esgotamento natural de se sentir vivo
um pássaro transgride os muros da sua gaiola
um cordeiro atravessa a avenida sem a sua pele
a nudez de se condenar ao desconhecido
a solidão glaciar com que todos caminhamos
com o lento vingar da morte
opera no sangue qualquer coisa de fado
mas a cidade ficou nesse limbo de exílio
e como animal de circo ambulante
de parábolas, jaulas e labirintos
animal saltimbanco o homem sem tempo
das primeiras impressões ficou o vazio
do pêlo, da pele, das plumas
o cair do pano surgindo no horizonte
da paisagem inundada de luz, luz cegante
da visão soberba mas breve
baldios deixados ao acaso
da doma periférica das margens
os primeiros vultos atravessam o rio
sob o abrigo duplicado dos espelhos
reconhecendo por dentro as primeiras horas da manhã
das gavetas de alfazema, do mofo dos fonemas
tudo cedendo à inquietação
do monólogo das águas do rio
as marés convocando à rotina
esse azul triunfante que nos condena a cúpula
partem do limbo do fado
partem sem forma sem redoma sem raízes
com o mesmo bucolismo com que parte
um navio uma caravana ou um rebanho
mas foi assim que te cumpriste
partir só por partir mas triste
sábado, 26 de novembro de 2016
cair cacimbando
o mar de inverno sobe pela falésia
pelo tom de voz o gesto de se erguer
mais alto que a terra
a lua vai dedilhando na sombra
as mãos sangrando de sal
um peixe mordendo no escuro
um corpo em queda e mergulho
algumas estrelas reflectem no fundo
conchas abertas e búzios de timbre acetinado
no espaço diminuto de uma pérola
nasce o tempo de se encontrar à beira mar
as coisas movediças em tensão
dunas para recriar um universo lácteo
subitamente vulnerável
caminhar com os pés nos olhos de água
saltitando de mágoa em mágoa
no rasto de espuma o expressar da raiva
e provisoriamente lançar-se no voo
de uma gaivota experimental
tudo é uma fina maresia
onde se vai desaparecendo
a memória cacimbando sem estremecimento
quebrar o selo branco gentilmente
sem uma gota de sangue
polir o lustro do dorso da falésia
sem um rasgo de pele
o mar é um fosso em cadafalso
cuidadosamente censurado pelo medo da escuridão
de corpo inteiro e presente
arredondando-se como uma manta felina
essa espiral cristalina infundada
e voltamos a cabeça para contemplar o limbo
depois da proa esse navio corpo
abrindo os pulmões ao destino das ondas batidas
o mundo tem sabor salino
sabor de lágrima e dor em desatino
depois da nuca perderem-se fiadas inteiras
de pensamentos que desaguaram nesse canal plasma
bastaria a alma ser alma para se debruçar do corpo
para se precipitar com o vento
do impulso da corrente do mundo
a luz apagou-se
moveu-se do palpável com a dificuldade da escuridão
do tropeço dos afectos sem referência
moveu-se para fora do coração
mas é lá fora que está escuro
procura a mão o universo das coisas estilhaços
dos contornos pesados da água
restos de moluscos sem concha calcária
restos de traços deixados na areia
as algas que pendem dos cabelos
os buracos que rangem dos tornozelos
escamas que cobrem a pele humana
porque o frio ecoa por todo o lado
de alguém que se deixou cair
porque o voo é da coragem de se negar
porque hoje quero ser apenas mar
e cair cacimbando com a leveza dos sem corpo
dos sem corpo para amar
segunda-feira, 14 de novembro de 2016
Precognição
há algo de infinito que me caiu de ti
que pressinto que não é daqui
que me foge, que me escorre pelas mãos
a cada respiração, que de tão forte
nos espalha como cinzas ao longe
e depois como vagabundos da noite
atravessamos a escuridão
passo ante passo
sou embalado nesse colo de aia
do infinito que me caiu de ti
com a simplicidade do envolvimento da terra
quero sentir que sou levada
poisam esses dedos macios de pétalas
sobre a fronteira da pele que é nossa
levar-te nesse colo que passa entre a chuva
raízes que caminham como passos de ontem
as copas nuas para a extinção do voo
caminhas com teus pés no limbo
esses passos de antigas ruínas que não conhecem
o calejar da terra sem caminho
as tuas saias vendavais que interpreto sinais
deixando um rasto de lua na sombra
são os trilhos da floresta iluminada de panos
panos brancos ou pássaros de cristal
portas abertas dos rasgos troncos
olhos que espreitam dentro dos corpos secos
tudo leva o seu tempo para chegar
na linguagem perdida do primeiro mundo
hão-de caminhar aranhas como morcegos
e libelinhas como cavalos negros
havemos de renascer desse âmago
porque tudo leva o seu tempo
marca-se o infinito de um beijo
cravando letras no casco peito
num peito novo que se há-de descobrir
para respirar o alívio de um fóssil acabado de extrair
escuto o sopro das vozes atiradas ao espaço
das harmónicas cordas que resistem
o que se deixa na escuridão não faz parte deste mundo
as cinzas são levadas pelo expirar do vento
das gotículas da locução da chuva
abrir a boca, nutrir o céu do calvário
esse céu sobre a terra que nos chega mais próximo
para a transladação do poema à pele
há que atravessar o silêncio
onde não há momento outro
que corpo se carrega para o amanhã?
que levas tu nesses braços feitos de seda
por esse mundo de estreitos jardins de sombra
a última respiração do poeta
um poeta que dorme sem que morto
que repousa nos braços dessa aia mundo
há algo de infinito que me caiu de ti
que pressinto que não é daqui
sábado, 5 de novembro de 2016
do concreto: todos os dias nascem poemas
caem as folhas no seu fim de ciclo
recolhem os animais ao seu abrigo
num sono confortável de espera
de um céu mais intenso de espectro
o céu...o espaço aéreo onde se contempla
esse vai e vem de rotações do pensamento
caem gotas sem trajectória alinhada
para a confirmação de uma lágrima, no rosto
que contra a transparência se deixa ser anil
caem as gotas marteladas de mágoa
cada uma caindo mais forte que o nada
nesse torrencial de momentos
que preparam a resiliência da alma
para se transformar em pétala, pena ou escama
a um corpo despido
que escolhe ao desabrigo
por querer sentir o frio, a chuva caindo
um corpo escorregando das mãos do destino
com a viscosidade obstinada da raiva contra
os dias que se levantam sem vida
do desaguar de compromissos do andar
do continuar a encontrar a chuva antes de cair
a viscosidade dos mantras
que nos escapam das ladainhas dos céus
quando no alto há apenas corpos nuvens
cai-me lá de cima o pensamento de uma gota
gota a gota que se vai juntando às outras
a chuva que bate no ventre
para esse preparar da semente que rompe a terra
todos os dias nascem poemas
talvez ervas daninhas para corromper o ciclo
de vida e morte tão definido
caem gotas marteladas de mágoa
caem as folhas no seu fim de páginatodos os dias nascem poemas
poemas de corpos despidos rompendo
contra o poder dos ciclos
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
o arado do sonho
o arado vai trabalhando o sonho
removendo daninhos os céus
dos dias que já foram noites
impressões digitais nas nuvens
carruagens calcorreando o medo
do mistério da partida
como uma semente atirada à vida
a terra vai envolvendo e nutrindo
a planta que nasce do reino das sombras
e se entronca de árvore
na opacidade da alma que se renova
ficando a paisagem terrena sagrada
do vagar do mar contra a areia
da lua que se enche de cheia
da brancura dos telhados da montanha
da surdina dos parapeitos da janela
as cinzas caminham com a eloquência
do exprimir paradoxal desse corpo árvore
que se transforma além corpo mármore
o caminho de oferendas frutos
que nos caem na palma do destino
esse palpar de dedos onde se começa
depois o músculo o coração
para que se sinta o sangue do continuar
da onda que se renova de amar
um pedaço de madeira para flutuar
uma jangada do perpetuar
da clausura fantástica da memória
de se ter nascido fruto e raiz
de luto e feliz
porque se nasce de vida e morte
e um só corpo para o tempo
de se ser vivo e morto
todos os dias de inverno são inquietos
de cismar de um sono de ventre
onde se aguarda pelas estações quentes
nesse passatempo de crescer a descoberto
a superfície é branca
como o sentir debaixo da pele a vontade
de emergir fora dela
uma barca do fundo que nos há-de levar
como semente lançada ao ar
vejo, impressões digitais nas nuvens
serão esses os dedos que desenham nos céus
a vontade de chover e nutrir
e partir
carruagens calcorreando o dia e a noite
nesse vagar sagrado de se continuar
a pensar que nunca se vai partir
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
para Aurora
sei, a linha que me escapa deste espaço
dos alicerces as forças que abalam
sou tudo o que preenche
que num determinado momento mergulha
os olhos que me sentem vagos
como centauros vigilantes
arco-íris de espuma virgens
ser-me fiel à alma que carrego
pelas metamorfoses da planície
ruínas mistério desabitadas
soam gongos no desafio de escutar o espírito
dos quadrís entranhas na carne
pertencem os lábios aos insectos que partem
ser animal de ofício caminhante
pelas estampas de nevoeiro cabelos negros
do vale dos murmúrios se levantam
do busto, dos dedos, da trama dos veios
a seiva tem vontades de asas de carmim
os pensamentos são o alimento
bagos de fascinação que o destino tece
lamparinas que alumiam de sílabas essenciais
o perfeito inacabado arrasto da sombra
a submissão ao astro sentinela
sim, partem dos lábios insectos rumo ao silêncio
se alma tivessem, partiriam rumo ao nada
onde tudo infernalmente não se cala
juntam-se ao sono escalas de sobressaltos
da migração de fragmentos de resistência
pedaço a pedaço, o olhar perde-se dos olhos
no abismo dos abismos do mundo dos mortos
do estancar do sangue em fúria
cura-me em descargas de novos pulsares
tenho nas pupilas radares
do ondeante olímpico horizonte
para um ponto de repouso seria a fonte
da poeira dos tambores que proclamam a liberdade
fronteiras do procura do ser feliz
tudo isto são fios ferroviários
uma locomotiva infância em trânsito
a bordo uma guerrilha lenta
o veículo que nos transporta é a morte
é com ela que viaja a vida
ecos de cláusulas para nascerem desertos à beira
do descarrilar de episódios eclipses
apocalíptico
renascer a cada novo instante
com a despreocupação realista de partir
atravesso aldeias onde sonho existir
sem o sufocar da enfermidade do agora
agora, partem insectos da minha boca
rumo, aurora, com a tarefa de me levar
com alma
segunda-feira, 24 de outubro de 2016
passeio sem rumo
enquanto caminho
de porte intangível uma ave atravessa o céu
estremecem os favos de um peito largo
numa cadeira de baloiço um sentimento
de pertencermos à terra
dias sombrios onde na praça alguém coloriu
de flores carnais
esse solstício de feridas da solidão
na brancura mistério
de uma botânica de estufa e cimento
compreender que faço parte de um ciclo
do alto de uma torre asteróide
prepara-se-me a geada da alma
para acolher os demónios presas do frio
nesse adormecimento que todos parecemos
areias movediças do pensamento
demora-se o gelo no corpo mole das plantas
que outrora foram embrião
essa ave de rapina que atravessa a avenida
que é o tempo
no céu caminha o reencontro
mas as barcas abandonam o porto vazias
das terras ilhéus mantos
que homens armados de passado
na surdina santa em dialectos de um deus
perseguem
hóspede, a tentação detrás das cúpulas
os cascos escorregam dos vapores das nuvens
a terra desaba numa palma
caem pedaços de fogo além sol
ecos de hinos da ventania
no respeito da possibilidade de tudo ser extinto
os espaços sem as pessoas
as pessoas sem os espaços
entre o sagrado e o profano a palavra
que tritura martelando tudo o que não se entende
porque na linguagem das plantas, do coração, das aves
já não fala gente
no corpo espaço cosmos de carne e osso
já não mora...gente
sento-me
de costas para a cidade
na minha frente...o rio..outra margem
a manhã clara onde me demoro
chegar-me a terra ao peito
a tripulação que trago por dentro
interromper-se-me as voltas do farol
na véspera de se inventar um astrolábio
navegar nessa grande escotilha
que é a mente
são horas de regressar ao presente
de limpar as chagas dos ombros
de apanhar os estilhaços de nuvem
de silenciar a agonia
de suprimir o bafo de fogo
da fantasia
e penso
porque o sol se põe e se levanta
com a mesma alavanca com que abrimos e fechamos
as pálpebras
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
lá das colinas
mundos, tantos
para vos engordar de um alimento latente
inumano, extraordinário e sanguíneo
de escudos e intuitos seduzindo pedra
aquele que carrega nos ombros
descobrir-se perante deuses sem nome
peão, atirado às vestes da escuridão
vigilantes, do assassínio do primitivo
do rosnar atento da existência sem grito
no mergulho, encontramo-nos despidos
terras pardas de terraços antigos
almas pedintes de novo e acaso
no macabro de estranhas vozes, polidas
pelo vigor da memória do mundo
banham-me as raízes de próprio material desaparecido
emanada do gesto enfático de ser nada
e tudo sentir sem um pasmo
todo o último poente tem o seu mistério
no vago navego sem corpo
tudo aponta a um verso extinto
contra a criação suicida de ser pássaro dócil
erguer as folhas profundamente vivas
e queima-las,
gravadas debaixo da pele estão
incluir-se na água, no fogo, na exaustão da terra
e nos moínhos de vento ser janelas
caem estrelas sem que as vejamos
o que separa uma margem da outra
é a distância com que nos amamos
espectral, carnal, ventral
metálica atmosfera linfática
o magma que nos transforma em pedra
vem de dentro, vem de dentro
vem do nada
desejo ser peixe fora de água
respiro porque foi assim que fui criada
o peso de tudo o que carrego não me diz ordem
o resto que em mim vasculha, avança pântano
de uma ponta à outra, eu sou, vândalo
inverte a marcha, anti-maré, da energia solar, tem fé
acima das montanhas, de dentro das entranhas
do automatismo, da aridez das colinas donde venho
há um não sei quê de sinistro, de in vitro
de sentir sempre mais que semi-vivo
de me contrariar, de me insistir sempre a virar
porque há-de o vento dizer-me
para que lado hei-de ...ser
A cidade dos outros
troncos oníricos que se projectam
pelos corredores sombrios
nesse abate de planos
sóis amarelos subindo as avenidas
calhas que se orientam ao céu cinzento
gatos vadios fantasmagóricas esquinas
carruagens alegóricas de outrora
num entra e sai da alma
a cadência do bater das asas
voos que carregam as margens
num passeio desquebrado
abandonei-me num balcão, doca, espera
nesse ângulo onde me vejo
numa longa travessia entre mim e o espelho
meter-me o anzol à boca
amarrar bem a âncora à roupa
a cidade é feita de linhas
numa dança de ondulação corrente abísmica
todos os dias me atravesso de submarino
nesse corpo carga para a frente e para trás
erguer os olhos aos penhascos de betão
e perceber que só depois da partida
começamos a viver
terça-feira, 18 de outubro de 2016
tauromancia
da armação de ferro do peito
contra as barricadas feras exibidas
das impressões do sangue
o espectáculo do coração de sangue
tacteando do espanto de cada batimento
as paredes são salteadoras de vida
lugares de sombra que desafiam as forças
ocupadas pelas estações nocturnas
águas correntes que vibram das teias
sinapses apanhadas na charanga
de gente nativa do desconcerto
do instante
quando se levanta o pano das trincheiras
do ventre que as nuvens espadaúdas
e as hastes dos homens-cavalos
escondem
do encontro das patas na arena
dos passos e aplausos e volteios
dardos na carne golopeados golpes
quando o olhar animal nos confronta
contra o pano, mortalha, denso escuro
como se o mergulho no lodo da impotência
o sonho é a lança, farpa, desejo de criança
a multidão orgásmica de morte
os cornos do touro no ventre do mundo
quando no corredor do abandono
só, aguarda pelo fim, ainda morno
no envolvimento impermeável da partida
uma lágrima escorrida desse olho trémulo
e os aplausos dão a volta à arena
e os chapéus e os uivos despedem-se da vida
enaltecendo-a
do túnel vórtice o animal à morte
a chuva caindo na horizontalidade
a chuva caindo depois da morte
com a própria inocência da natureza sem fausto
lento, descompassado contacto entre sóis
do profético gado de jade negro
a cólera partindo do esquecimento
do peso sensorial do abandono
do questionar bandarilheiro do sentido
de termos nascido touro bravo
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
sombras de Hades
há um corrupio esférico
no labirinto de Creta
um peão na mão fria subterrada
mãos raízes pálidas
que nunca conheceram raios sol
soa a melodia do adeus
arco de costela contrariado, desafinado
ateado da cabeça aos pés
erguendo-se das esquinas
acidentais dos ramos vegetais
imaginá-lo parado
entre os olhos e os muros de fresco
a terra depois de lacrimada
correspondendo ao apelo da vida
suspirar de cansaço
da faina repetida do eu fado
desta tarefa escolhida de martírios
para poder separar o joio do espírito
para oferecer um poente aos mortos
homens que não conhecem o reino dos céus
pálidos e obesos na hora redonda
quando a terra pára
e a vida acaba
a imagem que fica, de ti jovem
ainda pronta ao rebentamento
de uma última palavra
das esporas da fúria do desânimo
dessa mãe terra enlutada de polén
da memória dos flancos e solavancos
do revirar dos ramos de buscas a braços
que se dedilham madeixas de cinzas
dos arcanjos sem origem
quem nos abre as portas de Hades
se dos contos nos mentiram
e da barriga não nascem espíritos?
sexta-feira, 7 de outubro de 2016
Meu sangue/ Mi Sangre
hei-de esquecer
que fluem plantações no reino das trevas
por essa estrada de flocos de sangue
hei-de esquecer do murmurar das águas distantes
escutando em vão as gralhas de deus
de sermos pétalas de opala dura
da lua trapézios de sombras
do vale de Minerva servos sem tarefa
em telhados de musgo, ruínas do peito
caveiras em pirâmides de gelo
hei-de esquecer
os limiares da costa das agonizantes vagas
as mãos que nos deitaram ao mar
sem sermos metáfora para a vida
hei-de esquecer
as tábuas oblíquas do amanhã
hei-de esquecer que te esqueceste de mim
a um palmo do fim
Mi sangre
Olvidaré
que fluyen plantaciones en el reino de las tinieblas
por esa calzada de copos de sangre
Olvidaré el murmullo de las aguas longincuas
escuchando en vano las cornejas de Dios
que somos pétalos de ópalo duro
de la luna, trapecios de umbras
del valle de Minerva, siervos sin tarea
en tejados de musgo, ruinas del pecho
calaveras en pirámides de hielo
Olvidaré
las orillas de la costa de las vagas agonizantes
las manos, cuales nos echaron al mar
sin que fuésemos metáforas para la vida
Olvidaré
las tablas oblicuas del cras
Olvidaré que me olvidaste, a mí,
a un palmo del fin
Tradução Duarte Fusco
súplica de um sonhador
quando os olhos encontram outros olhos
fadas de veludos perfumes lilases
velas esvoaçantes do imaginário
nessa floresta longínqua quase morta
vogam as cores da aura dos desígnios
num balanço imerso de paz espírita
de um adorar de óleos e seivas
bebendo a saudade pelas asas
dessa invariável imensidão...voam
seres de simples abraços
porque nos fogem as noites
do desejo fraco de criarmos raízes
somos obrigados à verticalidade
nessa gravidade de dias felizes
quando os olhos encontram outros olhos
a grandeza do bem oculto
para arrancar do coração o luto
e deixa-lo doente e esqueleto de vazio
lembrar-me o passar dos anos
desses passeios de instantes
presa das teias mais longas
das estrelas de tédio e impaciência
obstinadamente tentei que esses olhos
nunca deixassem os meus
mas a cidade perdeu o seu manto
se vestindo e revestindo de tambores
que ritmo nu impróprio de expressão
corpos magros do mundo quebrante
pernoitam no meu e assim desaparecido
esse barco que nunca aportou do sonho
enfeita o rio de fantasmas e névoa
quando os olhos encontram outros olhos
nesse afago de fagocitoses do desejo
não encontra reduto ou alquimia
e nos corpos gélidos que se deitam
descubro, que fui eu o nevoeiro
e na leveza de todas as nuvens que ficam
as margens de outro paralelo espelho
tão sedutor como ofegante
essa sinfonia que escuto vem de longe
e eu conheço ainda os seus sóis e girassóis
que vão bebendo de um dormir
tão terno
-mãe fada, embala-me no teu peito
no irremediável colo que não mais me sinto
quarta-feira, 5 de outubro de 2016
a cantiga do velho
do arquétipo do poema
se levantam de noite os grilos
porque range o soalho e as plantas trepadeiras
do ardente mistério das nossas fronteiras
as ideias que nos povoam a verticalidade
porque há vocábulos encantatórios
que convocam as searas de trigo
para serem o alimento e o abrigo dos tristes
para inteiramente despertar de olhos abertos
dos dias que correm sem veias, sem tecto
pairam fantoches sobre os dedos
de unhas rasantes e peles descarnadas
dedos roídos das vinhas de sangue
das nuvens mais puras
do deus das madrugadas perdidas
quem abandonou na poesia os primeiros raios de sol
uma sonata ultra efémera
das inevitáveis teias das cordas vocais
lágrimas que caem até ao chão
do descer ao calabouço
todos esses degraus de osso
são a coluna vertebral e um velho torto
só as carnes carecem de outro alimento
a lua crescente, intramuros reservada
aos duros, combatentes da enxada da paixão
que vai lavrando campos apartir do nada
cauda de animal cósmico coisa de si extraída
o bicho-homem já nasceu morto
achando diante de si um corvo
para devorar o peito de leite azedo
a terra que nos promete crianças contentes
se inundará de criaturas desossadas
compreender que alguns nascem
outros apenas se deixam nascer
e a cantiga chega-nos
no arrependimento das injustiças
que cometemos com o afecto
e a cantiga chega-nos
com a mansidão dos dias que lá vão
os sinos avançam na noite invertebrada
que cai sobre as nossas pálpebras
diz que os peixes dormem de olhos abertos
orando submarinos nas entranhas de um amor inerte
quando o sol já vai alto
o fim da jornada
pancadas no estômago para um banquete do céu
os corvos vêm-nos buscar as peles e as carnes
a fisionomia do sonho nunca é severa
a vida aqui na terra
da disciplina extraordinária de nos transportarmos
sem pele, sem carne, sem ossos
quarta-feira, 28 de setembro de 2016
o cortejo da morte
são cabeças de veados, tigres, lobos
são cabeças de animais sedutores
no cortejo fúnebre da fantasia
são as expressões faciais de uma planta
onde toda a margem são as linhas que pisamos
ou latas de corações recortados
para reviver o interior de um alimento que nos mata
das hastes enredadas lâmpadas acesas
corredores de pequenas lascas de Adão e Eva
línguas entrelaçadas, corpos trancados
pedaços de carne fálicos escapando das fissuras
das peles dos assentos e das portas de espelhos
bebendo pelos chifres da besta mais intensa
corpos nus esfregados em cortiça
ou serpentes que se iluminam em casas de madeira
do tamanho de uma criança
janelas, molas de roupa, pedaços de tecido da infância
tão perto de deus, como acolhidos
do familiar espaço do silêncio retratos
as paredes confessam pecados
ou originários lutos do coração privado?
tudo a que chama a morte nada pode
da devastação da memória folclórica
canonizar a nossa alma, pegada, momento
nos gestos brancos das mãos que petrificam
o quebrar do pulso que se entrega
na oficina dos sonhos
diz-me, diz-me como acaba!
não posso parar de viver sem o saber
como quando termina uma melodia
como quando se arranca uma página
a violência dessa vírgula
por nós perdida
ausentes, como essas vigas donde salto
que sustentam o silêncio de que falo
nas águas paradas do rio sem margens, nado
sem cintilante fundo magnético, flutuo
o que nos devora é uma lua atirada ao espaço
nos habitamos nesse vácuo de um planeta sem pedais
para nos medirmos nas veias de um animal de cativeiro
-pedala, ainda estás lá dentro.
e fica uma emanação por brotar
dos altos muros das nuvens que não querem chover
lagos salgados de pesados reflexos
pelo engano de uma pomba
assassinada pela mão do ilusionista
aqui estamos - do outro lado da caixa de vidro
metade vivos, metade perdidos
rasteja a meus pés a sede
a cabeça perde-se no grito humano
há uma cruz que me rasga o externo
sem que me sinta banhado de luz
do mundo dos mortos me chamo
para que o barqueiro se perca
e eu fique por aqui
só uma só palavra fosse o remo
capaz de cavalgar dos infernos
seria torpedo, harpa
tal narciso chapado na água
o abismo, a lança, para um coração sem esperança
dos umbrais da noite
das gavetas de alfazema
sopros de vertigem
dos corrupios dos faunos e das luas frenéticas
o ajuste do acerto das sílabas das sombras
do espaço íntimo da convocação
dos entes que caminham sem chão
há ecos que nos preenchem
limitados ao horizonte do que ficou sem ser
enterradas as palavras ficam por sentir
do definitivo ou indefinido
debruçar-me sobre as grades incandescentes
das partes do céu que caem do futuro
as amargas mordaças que nos destinam
os desenhos das mãos que crescem da ânsia
do desperdício dos pulsos
o acordar onde tudo termina
e nós terminamos aqui
sexta-feira, 16 de setembro de 2016
nas palavras de deus
a noite sonâmbula, branca
encontra o corpo do céu gritando
somos matéria intocável
fora de tempo, fora de espaço, fora do peito
o que nos reconhece é o gesto das mãos
que se procuram na escuridão
e o olhar, furtivo, onde se morre de abrigo
veleiros agitados da melodia do fundo
sem pele, sem tecto, sem ritmo
assim se morre estando vivo.
eis o lugar donde partimos
subitamente de vácuo mistério
nos mesmos passos crateras, amanhecendo
numa mesma hora para habitar sonhos lúcidos
de fuga e silêncio
os braços do mundo vulcão
bebendo da nossa paixão
levantando-nos de uma nostalgia corsária
ergue-se a espinha silábica
para a hora da fundição
da lava que nos descontenta a alma
fazer todo o caminho de volta
- não sei donde me vem esse grito
desfocado, míope, cúbico
que me respira como folha, tronco, ramo
às vezes bravo, às vezes manso, imperfeito
alguém levou um pedaço
e nunca chegou a plantá-lo
(há um deus ferido que nos encontra
no sofrimento)
da geometria do pensamento
o labirinto das migrações
dos falsos ídolos que nascem, que partem
rumores de luz habitáculo carne
abrindo brechas nas tábuas da fatalidade
falhas que respiram através de um templo
nunca acabado pintado de fresco
que é desse amor que inventas
dessa vertigem donde te aventas
que nasces e renasces sempre que queiras
soletrar o missal dessa comunhão poética
convocar o estado de emergência
da manifestação impossível do fim do alento
hei-de retirar do presente a fixação do texto
-eu sou, eu sou ...eu sou
do acesso ao experimento único do mundo
do esgotamento, do desencanto
para exprimir o efémero - somos
no curso da mágoa diluindo-se no sangue
nesse acordeão de notas bravas
daquelas que choram por tudo e por nada
da doutrina de galáxias menores
a estenografia dos afectos menores
com toda a leveza de um passageiro excessivo
na mesma distracção de uma gota de chuva
que a natureza acolhe com a sede do poeta
como tudo se converte e ressurge
devolvendo à terra a sua juventude
ninfas convulsas de pólen e inspiração
pássaros que não acompanham o bando
que se enraízam nos invernos da dor
para o planar do tempo
das voltas do vento
do desprender das folhas
devolvê-los
ao retrato pintado a nuvens
na dança do balanço dos sonhos
para peitos de veludo obstinados em partir
primeiro há que existir
combatendo a sombra
as sombras movimentam-se no lugar do vazio
no cerco da lua tapada pelos cabelos
nos espelhos que nos serenam os olhos
a caminho dos gestos que já não são nossos
abandono-te, de cada vez que esqueço
um pedaço, um momento, uma lágrima
quando me perco no embarque dos dias
no desleixo do fascínio
dos seus perfumes exóticos
mas as sombras ainda me perseguem
no vício da solidão
entre mim e as paredes
como se do canto da sala
ainda me perguntasses quem sedes
coa-se assim o poema
das grainhas dos bagos colhidos fora de mão
e o que há na mão que não possa caber na escuridão?
esse avocábulo que se arrasta a fora do corpo
que é janela, miradouro, porta de igreja
que é ausência suspensa na sombra
de um beija-me, mas mais tarde
as sombras cabem-me dentro da memória
mas não resta espaço para mais nada
da natureza dúbia partem nossos corpos
porque os nossos olhos são lanternas
pirilampos ácidos além-terra
talvez pontes semânticas
que nos atiram do éden
para os severos e negros tectos do intelecto
as sombras partem içadas do galope da saudade
rasgam os clarões finos do trapézio que nos definimos
nessa linha
onde somos sol e lua no mesmo horizonte
terça-feira, 6 de setembro de 2016
horizontaliza-Te
andam sibilantes as noites
do parapeito da terra apenas buracos no peito
sou como um pedaço aberto que a ponta da lua
despontou
ser arrastado pelo vento
para chegar às margens que me decompõem
em terra e água e ser vibrante
da matéria dos imortais terrenos e mundos
da depravação do fim do flutuamento
devorar-me de pílulas inertes à deriva
do pó-de-arroz dos vulcões extintos
das manchas que a terra inventa de longe
a vitalização da tinta escorrega-me do coração
das maçãs do rosto carreiros do tempo
uma única centelha o sol posto
andamentos do começo dessas noites
com toda a solenidade da morte
jardins de campas cobertas de neve
a neve desfaz-se antes de ser dia
com toda a função estéril da fantasia
deixemo-nos ficar
para conhecermos as estrelas desse dia
horizontalizando-nos
as montanhas falam na língua da poesia
com os seus olhos especulares
e os seus pescoços helénicos
fios de cabelos desfiando-se do cume
novelos à roca de um lugar fixo
deixemo-nos ficar
dos saiotes ancestrais nascendo a utopia
os que virão encontrarão o paraíso
das formas virginais do entrudo
deixemo-nos ficar
o sol magro contempla os pertences da felicidade
exibe-se diante da fome da liberdade
compreendermos que não somos nada
o rio que devolve à margem a sua imagem
raias com asas para o planar do regresso
deixemo-nos ficar
do fundo boreal das auroras esvanecidas
a escala retomará a luz
quando tudo for imparcial lacuna
cuja memória profunda do belo, do apetite do belo
encontrar de volta o cordão umbilical do absoluto
que alguém nalgum momento há-de quebrar
mas por agora...deixemo-nos ficar
quinta-feira, 25 de agosto de 2016
monastherium
acordarmos de pé
como um enorme fóssil vivo
as paredes estão já caiadas
os jardins repletos de flores exóticas
mas acordarmos como se nada disso
estivesse concluído
a tortura é amante da paz
ambas fazem amor nos lençóis do tédio
por acidente escorraçar do espírito o mundo
desse inconsciente colectivo
do ocultismo de tê-lo debaixo da pele
as fronteiras são apenas o impossível
e é do impossível que há que tecê-las
como serpentes vigorosas enroladas
elefantes de patas no ar a pastar
relutante, a vida tem de continuar
da corpulência de um pássaro a levitar
a poucos metros do chão
mas a vida tem de continuar
combateremos as impaciências da sombra
equitadores de algo móvel
cavalos de arco e flecha
através das planícies irregulares da consciência
para lá do sol posto
das pias secas dos deuses
dos muitos templos que o homem
ainda desconhece
em frente a galope ao seu encontro
da reparação berram demónios sem corpo
das regiões fronteiriças do sonho
ninguém será poupado
da ardósia o giz duro talhando destinos
um inverno do qual nunca saímos
as nossas andas enterram-nos
volante par de pernas para escavar
penas coladas ao dorso
uma mente remota lançando papagaios
como papiros saturados de mitos
volante um dragão habitando o centro da terra
do vidro moído uma atmosfera caindo
cautelosamente, o céu nocturno
chega-nos mais íntimo
desse corpo concha fogo corrente
dobrando-se depois folha de papel símbolo
alguém se esqueceu de descalçar os estribos
pela cintura equador
agarrar-se às crinas da dor
prolongar-se o voo
ainda que
as paredes já caiadas
e os jardins floridos de pequenos nadas
mas exóticos
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
runas brancas
tamborilando garras que me conhecem o corpo
como as garrafas que são lançadas
que o mar traz de volta
a minha cabeça presa num vácuo de existência
porque me querem prender o pensamento
e que o corpo apodreça
sobre as andas do destino
alegóricas batalhas de esperança
porque digo que nada me derruba
mas nada me deixa sair da luta
da exibição da fúria
dos gritos ancestrais das grutas
as pálpebras da escuridão
que nem descanso dão
e os laços brutais dos moluscos
agarrados à alma já conchas mortas
contra a rebentação tudo se despenhou
há um fio de prumo que me corta o punho
abandono o sangue na areia
que aos poucos se cora de vermelha
à vacuidade de tudo
do engodo das promessas gustativas da vida
nunca provei senão fantasia
como a aura dos cisnes
dos espinhos das plumas brancas
a espuma que me sai da boca
com a intenção de borrar o céu
de nuvens nascidas da tormenta
da profunda maldição de estar viva
o sangue é o caminho
que trilha o cansaço do ser
ser de carne e poema, balanço e recomeço
pelas guelrras arcaicas do animal
pedra sobre pedra a falésia
longe dos gestos a solidão de passagem
olho êxodo as pontes das asas
dos cursos das mágoas que se afundam
no lugar de derrame o silêncio
com o vagar arfante de um sonho de verão
deixo a lua e os espelhos para os que espreitam
deixo apenas uma lente estreita
num pulsar que nunca dorme, nunca se cansa
acompanho o arrasto do afastamento dos barcos
na ventilação marítima da saudade que fica
a luz atravessa as paredes de lágrimas
que compõem o mar das memórias
runas deixadas em poemas
tecidos que não tiveram outro destino
senão essa Atlântida desaparecida
dentro do meu peito
mas atravessam-me dias noites encalhados
revirando-me em ondas de revolta
partido aos bocados pela praia
porque não posso mudar o que não conheci
fui atirada das alturas sem destino
como quando nos fecham num frasco
e se esquecem de nós num aquário
num pedaço de vidro sem paredes nem portas
sinto a alma dentro deste corpo garrafa
imóvel, inerte...que em nada se converte
que nem sequer mais envelhece
condenada ao olhar vidrado da contemplação
que o mar insiste em trazer de volta
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
palavras migratórias
deixo-te estas palavras na linha óssea
que é tudo o que te posso deixar
olvidar-se do pêndulo a despedida
porque nós nunca tivemos tempo
parto como fonte fome, guerra
a escrita na mão frenética, a mão que treme
na gravitação da ventura do coração
bombeando desta terra a esta terra
de todas as âncoras sem lamentos
deixo um alvéolo um vocábulo aberto
da esfera armilar o equador que lembra
que há horizontes que nos matam
sempre quisemos viver demais
a lenta lágrima que da fonte partiu
que nos transformou em onda de fastio
que vai e vem sem descanso
de noite vagueias sobre meu corpo de areia
essas lágrimas que desenham caminhos sem passos
que deslizam sem rumo pelos meus braços
dunas fantasmas, estátuas de carcaças secas
e querer deitar-me sem a mortalha que me cobre
querer que tudo o que me consumiu por dentro
me consuma agora na maresia
longe das coisas gastas do dia-a-dia
no silêncio de todas as palavras que não te conheci
as crinas selvagens da fantasia irão primeiro
depois os ossos, muito depois os ossos
que de noite vagueias sobre meu corpo de areia
essas lágrimas que desenham caminhos de teia
que deslizam sem rumo pelos meus ossos
dunas de silêncio onde nunca fomos um só
que te posso contemplar no céu sepulcro?
das portas flamejantes do inferno
em teus olhos a escuridão como promessa
porque deixamos um mundo inquietos
da roda livre do tempo inviolado
da fundição de todas as quedas
lutando até ao último sopro mas sem guelras
sermos nós gaivotas migratórias
um homem livre sem terra
viajando sem memórias
numa mente operária do mais nada
porque não te recordas dos nossos sonhos
deixo-te estas palavras na linha óssea
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
pedra dura e opaca que sangra
ousar opor-se à tirania
monte abaixo, monte acima
tudo fora, singular, espantoso
azulejo vidrado cosmológico
do seu habitat natural
incluir-se na paisagem
somos união universo
rochedo escavado da apropriação inventiva
dos opostos polares cerebrais
a essência redutora glaciar
factos brutos, estátuas, torres, pedestais
todos os ângulos salientes das junções bizarras
da coloração histérica das ondas magnéticas
protestando contra a palavra transparência
rubi, safira, prismas facetados de ideias mágicas
jaspes suspensas como folhas de ensaio
do regresso fundador do passado
aceder por via do prazer - um prazer melacólico
aos pigmentos da natureza dos brutos
dias que já foram
alvorecer do ocaso como lótus espreguiçado
caminhar sobre pedras de fogo no arrasto do sonho
no trânsito dessa outra terra
que nos habita dentro da cabeça
a alma reconduzida à íris do céu
para dar vida àqueles que já partiram
esse céu de lápis-lazúli perdurado no olhar
de quem o carrega do fundo da dor
ousar opor-se à tirania
rasgando essas cortinas de vidrados opalinos
que um eu em absoluto se decompõe de lutos
do ramo que nutre a noite
cada pétala que fica é uma pedra
que respira o tributo
do que deixamos em bruto
a morte certa
quinta-feira, 21 de julho de 2016
Phantastica poesia
infusão, vácuos digestivos
a garganta do mundo
à lupa da poesia micro crepuscular
a luz focada à lente convexa
há uma fonte inesgotável
de favos vocábulos que querem ser células
células vivas
-só me apetece subir às árvores
retalhos da epiderme da rã
somos camadas de cebola
do estado inalterado das coisas
o osso dentro da carne imaculado
dos músculos contraídos da morte
a distopia reservada ao perpétuo
mergulhar-me no vulto do ser
na surdina incómoda grosseira
obsceno ou domado
na disposição de tudo ao contrário
os pássaros parece que andam à toa
abanando a cabeça em pequenas passadas
dando voltas
saber exactamente o dia e a hora
porque nós já não nascemos em casa
das janelas da mescalina
a linha marginal da utopia - estou vivo
ou felicidade artificial - vivo
da vigilância do banal
Meca para uma mente vedada
da contracção da oração - em ti vivo
como se espera por ninguém
na hora extraordinária do além
visualmente procuro pela palavra-pássaro
não sei se é ela a fachada das casas
ou a pedra que falta na calçada
mas nós já não nascemos em casa
nem as fachadas nem as calçadas
nos pertencem
só a palavra encarnada da indústria
incontrolada dos sentidos
esse mundo-pássaro honesto
o mundo em que se vive
o mundo em que se sente
das linhas marsupiais
elevarem-se os beirais
dos sonhos vulgares erguerem-se
novos voos
para atravessar arco-íris de cinza
porque a abstracção não carece de cor
a escrita lanterna mágica´
projectarem-se nós fantasmagóricos
da transparência a partícula íntima da beleza
do éden desaparecido - porque partimos
não nascemos em casa nem morremos dentro dela
somos um todo pedaço de tudo
como os olhos da velha que me fixam
não sei se em mim o final da rua
se em mim o final da sua, vida
esses olhos perturbam-me
desse mistério que não tem mistério
os olhos penetram-me de concreto
será que pensa no que penso?
- só me apetece subir às árvores
...
domingo, 17 de julho de 2016
a que chamamos de casa
na teima de tomar o fogo por dentro
chamar. só por salvar
a caldeira que investe os confins do corpo
que anda, só por andar
da vontade de estar só
e esse vulto
barco que se desvanece
que desaparece com um não posso
porque desconheço a ponta do sol
chegou ao céu quebrado no mar
essa única linha direita
que ninguém pode atravessar
deus criou o horizonte para nos fazer sonhar
anda, faz e desfaz
porque sempre que retomas o ponto de partida
há uma parte de ti que vai e outra que fica
demorei-me
só agora compreendo que há momentos
que ficam por dentro
como essa linha que nos separa do outro
esse horizonte enganoso
a casa está fechada
dentro dela ferve uma caldeira abandonada
há trincos que nos servem de abrigo
quem se pode esconder do destino...
então os pés velcros ventanas
podem cobrir o céu de pinceladas de fogo
caminho de pernas para o ar
piso as estrelas
imitação espectral desse peito
que desconhece o real
somos campo amparado por nada
trapézios de fios de prata
a prata da lua, o oiro das ceifas
e da alma somos senão a paixão
do que sempre fica por agarrar
porque o vento é outro
que não tem começo nem fim
porque tentas agarrar o vento
ou atravessar o horizonte?
- não sei fazer de outro jeito...
domingo, 10 de julho de 2016
noite de vento
noite de vento
máquina, volume, instante
aparas do dia que se vai esculpindo
no aborrecimento de figura nenhuma
os amantes
de casas vazias e silêncios absolutos
todo o momento é último
porque a mortalidade é uma conquista
diz que os deuses nos invejam
feitos de murmúrios e corpos celestes
dançam ao ritmo de outro prisma
o destino de deambular no limbo
pende uma borboleta no foco da luz
bate as asas, toca-me, não mais voo
quando o homem nasce
pessoa do tempo
eu também tinha paredes
antes de pertencer ao vento
o caminho vai-se revelando
duro, de tombos e avanços
falam retalhos, búzios, portais postais
e frascos de perfume vazios
temos espelhos no olhar
encaixamos uns nos outros, frios
o sangue corre alienado
na construção que não chegou a vaso
cobre-se a terra solta de cascalho
a alma sem húmus
para servir um homem sem rumos
baías sem lua
estrelas ponteagudas que ferem o sonho
porque falta liberdade no fole
conversa-se, dorme-se, procria-se
nesse foxtrot anti fantasia
porque temos pupilas ovais
e nascemos para a caça do concreto
mas há bocas insanáveis
cuja fome é maior que o vento
maior que o passo das pernas
que a planície das terras ocultas
noite de vento
contra o horizonte o sol partindo
o embate no céu cristalino
para quebrar o frio
riscar o fogo, a poeira, o peito
é dessa afinação que somos feitos
não máquina ou volume, instante
porque o tempo lê-se nas estrelas
sexta-feira, 8 de julho de 2016
estação terminal
do diálogo debaixo das escadas
o ensopar das lágrimas
todo o verbo no presente se escurece
na observação oblíqua da gente
do tomar comum, pôr em comum
transitar da pele acolchoada
para um soalho de madeira gasta
do rosto agoniado polissémico
dos gestos originais do ser
garras mínimas d´infantes
do teatro das sombras do coração
para ser signo - abandono
mas no fundo desse vão triste
quando não se sobe nem se desce
nessa estrutura ponte cabana
porque está escuro e ninguém escuta
porque se tem vergonha e ninguém se importa
há vidas que não mereciam ser vividas
ou merecimentos que carecem de razão
damos voltas nesse colchão de chão
dentro do corpo nada se aquieta
é uma pele que rasga as paredes
uma lâmpada intermitente de sombras
falam alto os terrores da solidão
os outros dormem, todos dormem
dentro das paredes dos quartos
das fronteiras melancólicas da alma
onde nem as velas são permitidas
não vá pegar fogo às mantas
então o cartão são lençóis de seda
e um degrau a almofada de penas
ela escuta os efeitos das esferas da vida
no espaço obrigatório de um sonho branco
e no tecto, sim no tecto o meu palco
rio, choro, converso, silencio-me
das narrativas da tragédia de estar vivo
ou dos delírios do veneno, sou ficção
quero ser bailarico, músico, toureiro
quero ser homem, mulher, filho
tudo ao mesmo tempo
neste quarto escuro sinto uma mão
que me acaricia o cabelo
me percorre a espinha, os ombros
os lábios
de todas as faltas do mundo
a que mais me faz falta é o abraço
e danço, dança o meu corpo todo por dentro
que nas voltas do movimento
abraço-me a mim próprio
nas noites em que me sinto mais próximo
segunda-feira, 4 de julho de 2016
génese
redes de fissuras, frágil
amostras de conjunturas impressionistas
tal o papel das feridas
no maciço tempo que partiu
holocristalina alma
da camada superficial, litosfera, a pele
rocha, pedra, substância, carapaça - dura
a vida eruptiva de geodinâmica interrompida
uma paixão violenta pelo céu
antropofagia terrena, consumir-se
andam os passos acorrentados
o mundo está por nascer mudo
nas espumas brancas do mar
na frescura de um mergulho
no abrir das velas
para não se regressar nunca
o mundo dos que sentem
dos chocalhos da mente enferma
dos ventos fortes do despir-se
da palavra saudade
regressar ao berço, ao ventre da terra
que a viagem seja serena
dos andamentos aflitos e das penas
a sombra do silêncio
denso esse sentir resiliente
que não admite corrente
o que nos fascina é o voo
em toda a sua extensão
sofrer e amar
esse momento de temperamentos
onde a voz de deus
vai e vem
do desespero ao sonho
a queda, é consequente
paredes, cemitérios, tectos caídos, ruínas
que passem anos que nos sedimentem
no esquecimento dessa sede de mentira
quando nos foi prometida a vida
depois um canivete
com que nos riscam e testam
essa redoma de vidro por onde nos espreitam
de volta ao sistema para cristalizar
vejo hexágonos
giro e manipulo objectos de dispersão
em toda a perfeição morfológica
não encontrei senão rochas, pedras, amostras
a alma parte sem alinhamentos
separa-se dos átomos, dos traços das faces
dos corpos que já não servem a deus
para um adeus breve
que não se consegue definir
na geologia da mente
nasce apenas
com a recordação do manto de emanações maternas
segunda-feira, 27 de junho de 2016
ossos de porcelana
como é triste para o poeta
o som das palavras
do ofício asfixiante de recria-las
obediente da liberdade
onde tudo é palpável
alinhavando horas
e a procissão já no átrio
de toda a articulação
do tempo contra o tempo
Ia triste.
e sem mais preâmbulos
a palavra resolve-se
quedou-se o pensar
ouvindo contar de um acrobata
que o céu tinha muito mais para contar
que o equilíbrio é uma ideia
para repousar
na retina, na veia, categoricamente
ser ou não ser
chagas num corpo de vidro
que se quebra e desfaz ao assobio
atirar-se às suas cinzas
nessa provocação caduca
de energias flutuantes
de corpos cópias sem asa
mãos e espírito de sacrifício
homem-massa apóstolo
mosaico, prisma, rótulo
feridas para ângulos sem título
ossos de porcelana sem carne
em contratempo ideias desnutridas
vagas antigas de melancolia
o fato que nos vestem depois de morto
ao poeta militante da morte
na obrigação de explicar ao mundo
os trópicos da paranóia
a casa decimal dos delírios
os co-senos perturbados do animal
quem não conhece senão a língua do afecto
chegou antes do tempo
sedento do tempo de amar
mas já vai alta a madrugada
e a procissão chegada
e o santo de volta ao altar
fica uma garganta cansada e seca
de tanto apregoar o teorema
para bestas sem poema
quarta-feira, 22 de junho de 2016
como as palavras ficam
cantam os búzios terrores cristalinos
madrepérola o tempo de espera
diamante, radiante, encontro estropiado
do naufragado sem memória
tecem redores de uma malha sem nós
música de variações amorfas
vêm até aos nossos dias
a ausência das coisas espíritas
rosas, converto-me em horas mortas
buscando-te em terras sem órbita
gentes da desocultação oblíqua do sol
já não há sol do outro lado da colina
símbolos, das contribuições vindas
da alternância das lágrimas
de tanto indagar fronteiras
da permeabilidade da obra indolor
já nada mata a grande dor
o culto padrão das locuções de dentro
a luta entravada comanda a diáspora
há um magoado diálogo de esperanças
do espartilho momentâneo do peito
os trópicos descansam na linha térrea
quando me deito no passeio
da encenação utópica cárdica
ficam de lado todos os paradigmas da terra
a pedra é dura quando te deitas nela
da existência do poeta resta o poema
dos recalcos e socalcos resta a fúria
de abruptamente deixar de caminhar
como vingança
repousa no fundo do oceano
o compasso mortal da saudade
como a folhagem que nos cobre a campa
e a visita dos pássaros na penumbra
como partem as palavras
atai as redes dos pés
sois pescadores de rua
onde o horizonte se precipita a cair
-ainda bem que ninguém volta
a imobilidade intocável do partir
no recorte indeciso de uma asa
da sede de cavalos negros
adeus ao silêncio transeunte
todos se desfazem no céu
aceno a mim, o vento me escuta
do instante com rosto de acaso
aponto a alma ao coração incerto
pêndulos em calafrios
há quem tenha frio
no desarrumo desse tecto, pesos
encontrar triângulos na parede
a geometria é simples
o espaço ensina o afecto místico
que fermenta dentro do frasco
das barrentas barreiras do peito
das baladas do instinto tudo tem que ser feito
da vontade de me vestir de dor, despir-me
da aragem morna da noite sem sombra
para a distância não se entende que somos nada?
desses lábios de coral beija-me
segura-me na cintura e levanta-me
banhar-me de cheiros de fumos
o sonho missionário da mutilação do verso
magma que sangra em cada página
em estratificação ágil as palavras caem
na hora da fascinação do abismo lírico
vincar o arsenal de nuvens vermelhas
que adensam esse céu de sangue
tal oração dita sem estrutura linguística
o sentido é a condenação de um coração sem pés
do eco nostálgico da tua ausência
como eram as palavras de outros tempos?
eternas
da metamorfose de pulsações do fim
o astrolábio são teus lábios sem rasto
da encenação dos deuses entre nós, brandos
a poesia não é o consolo, é o recobro
mas o virar da página é sempre doloroso
porque te encontras só
sexta-feira, 17 de junho de 2016
profecias vagas
vai andando...
pedras nos vidros das janelas
ímpetos de avançar sem terreno
ao encantamento
da língua escorrem serenas flores
carnívoras
como se a necessidade das horas
do rabiscar das auroras
não nos dividisse em noite e dia
triângulos
o sol a lua e os estranhos
pelos caminhos de pedra
sombras móveis despertam
do leite materno espumante
o canto invisível dos pássaros
o perfume do orvalho choroso
fitar os olhos nas nuvens
gigantes peneiras do sol
não ser senão um peixe azul
num aquário de vidros baços
para lá dos espaços haverá outros gémeos
que se encantam e emocionam como nós
gira o peixe então às voltas
numa casa assombrada sem memórias
equilátero, isósceles e escaleno
acelera o passo
imagens plácidas apregoam a chamada
rangem as escadas ao ultra terreno
do fundo do espelho seres de arco íris
o leite morno ou azedo
dizendo tudo vai bem mas não é perfeito
passa a mão pelo rosto
o vestido branco estampado de sangue
frio e calor ao mesmo tempo
perde-se o compasso de espera
das páginas que o livro reza
a menina do espelho diz ámen
duas gémeas, a terra e além
quarta-feira, 15 de junho de 2016
marchas mortuárias
uma oitava a cima
o oráculo dos sonhos
do completo vocabulário de gravuras interiores
do revelar de películas a preto e cinza
ousam os fados a alma acolhida
a lua é mentirosa
quando as sombras se levantam e caminham a teu lado
do arquipélago narrativo - o que nos espia
o rasto do silêncio que cruza o céu
da terra natal dos espíritos
o ciclo completado dos vivos
campos de neve e porcelana
das camélias penduradas no cabelo
uma borboleta milagrosa sobrevive ao embate
a cúpula de mármore face lisa
o semblante de um coração partido
a tentativa honesta de reter uma gota de chuva
são as mãos que são de areia
da plumagem de um pássaro selvagem
vontade de vaguear pelas ruas sem luar
desertas de silêncio a respirar
há flores que acordam de noite
para irem a parte nenhuma
do consolo de um rio que espelha nada
o contágio que sacode o grito para longe
reformando-se na madrugada
dos rumores do que falta na paisagem
há qualquer coisa que falta na paisagem
do retrato da ancoragem de ninguém
começam os ruídos da pensão
gemem homens de coração na mão
também os recém chegados sofrem
terrores do desconhecido que se deita com o demónio
há um céu sardento que nos repudia
do limbo triunfal do fim dos tempos
seguro dos humores que se estendem pela encosta
dedilhando nas janelas desvirtuadas da cidade
o altar é o leito dos abandonados
riscam espaços desenhos nos defeitos do cimento
todos os momentos belos já partiram
em rapsódias de corredores malignos
derramam-se os passos
colunas de vasos sem flor
das vidraças tricolores quem nos espelha
os espíritos berrantes que ficaram na fronteira
quando meus olhos me olham sem emoção
a vida vai desfilando marchas
do pó de arroz mortuário
sambam as falas nesse caminho de sombras
e aos poucos se vai desaparecendo
na memória que os dias de sol refazendo
e as gentes se debruçam nas janelas
para enfeitar as aguarelas reproduzidas à escala
quarta-feira, 8 de junho de 2016
do meu alpendre
naipes de enforcados
de tempos trancados
em capicuas de amor
de folgas espaços buracos
pelas pálpebras dos marinheiros
que o destino são rumores
de sílabas de fora
entre os soalhos do oceano
cálices de fontanários envenenados
o coração dilatado
como se tudo o resto tivesse tamanho errado
mergulho nos lençóis de água
como se nadar fosse nada
escoando segura do meu caminho
no estampido de um obstáculo
de não haver sequer caminho
vai-se deambulando nas modalidades
de uma lagoa sem destino
de paragens e momentos gota a gota
sermos memória que somos esquecimento
vagas que não tardam
pérolas consoladoras
transfiguram-se os remos da aflição
quando tudo quer chegar ao fundo
tonturas como num dia de verão
ondular a alma
as campainhas que nos visitam nas beiras
brotam da solidão mal me queres
deixo-me ficar nesse areal jardim
sinto na pele o estalar do sol
o mundo queima a pele sensível
a brisa que tarda e não acalma
a terra respira a morte
são os meus dias de alpendre
que deixarão saudade
na obra que ainda não os compreende
a sombra tropical da melancolia
os barcos que lamentam
o aportar dos duros
que se embriagam e adormecem
nesses nocturnos sonhos
que a luz cegou sem alma
a eles faço companhia
com eles faço poesia
podendo tristezas mudas conversar
nas horas de tédio de instantes eternos
um passado que por defeito não passa
só no coração do poeta se vive a hora completa
ou hora nenhuma
alguns têm pressa para ser velho
nessa ilha de tédio
suspiro moribundo
com a dualidade moral
de destruir ou salvar o mundo
são as paredes de cal e as rugas de sal
de quem se olha ao infinito
encontrando a morte no horizonte
( a morte é a nossa última fronteira)
um verso atravessado
cisma-me um luar ainda o dia a raiar
na sobriedade mestra de uma frase
no arame do fulgor dos estames
o negro desmaiado das violetas
sobre a terra o sinistro se coloriu
unhas aveludadas um espaço sagrado
eu quero a luz! eu quero tanto a luz!
de todos os solfejos o sol amplificado
só me lembro de todas as manhãs frias
onde me deixei petrificado
voltam lacrimejantes os passos ao coração
não fizeram senão trovoadas secas
do mais lúgubre rompendo o verso
basta-me um juramento franco
mordendo o frio das palavras
calidos aromas caminhantes
levaram-me a todo o instante
alucinando de ser saudade e areia
murmuraste: quero-te sereia
o verbo penetrando a veia
do peito tantos pontos de geleia
o mar se afunda em tormentas
ando gladiador há tanto tempo
que a força que me condeno é poeta
nublando estacas no alcatrão
penso que me raizo, mas não
parece que me deito sempre a descer
e o corpo desnivelado a endoidecer
cândidas candidatas a imagens
se tendo a adormecer
oh mas essa nota eleva-me, sonha-me
o silêncio das noites imperiosas
nas linhas que me deixam sem fôlego
a poesia é mãe de todos os tristes
o aroma de todos os nomes
por quem não chamaste
esconde-te, refugia-te, guarda-te
um santo repudia a tua lágrima
o poema é um caminho sem volta
atravessado pela revolta
segunda-feira, 30 de maio de 2016
extractos do coração
está tudo escrito ontem
o passado é muito extenso
nada disto é um ensaio
vogar em sedimentação
da carne à pedra
num relâmpago o afago
do olhar que apago
tudo é um festival
de espectros bem ensaiados
a saudade à margem sem costura
no estuário de uma ardósia de sopros
deixo ser formigueiro jugular carótida
a disposição dos galhos dos umbrais dos vasos
dos tímpanos do mundo
faço
um alçapão para o silêncio
em telegramas de micro poemas
todas as palavras são promessas
e até aquelas não ditas
drenando sonhos coágulos
uma malha laça de afecto
que dura e dura no contágio
labiríntico de horizontes
o vento acenando a possibilidade
da imutabilidade das coisas
das siglas do corpo a corpo
que contém o céu soletrado
e quer oiças quer não oiças
tudo não deixa de ser fado
sexta-feira, 27 de maio de 2016
a liturgia da palavra
o fumo da boca à nuvem sem anáfora
imagens temporárias desse dialecto
sinal dos tempos de um tempo que não volta
aos defuntos e aos vivos
comungam o poema e o coração em
células de braille desgastado
trepando varandas orientais sem telhado
candeeiros nocturnos redundantes
encaracolando momento mortis
do ventre rebelando-se a oração num gesto de paz
aos olhos da virgem parecem humanos
um coração de espinhos apertado
todos os homens sofrem do oculto
da astrofísica vascular do céu inacabado
achas de resíduos sem matéria
absolvidos do sangue da luz extinta
de partículas emoção eco fantasma
o corpo às vezes é um elemento à beira
do precipício alfabético das sombras
do princípio destronado dos deuses
olhas-me como se estivessemos perdidos
para sempre
não sei se piedade se compaixão
de um caos desencontrado no nevoeiro
contemplo esse deus em cativeiro
como se apenas presente nas paredes de um templo
sou convidado a um relicário vazio
à imagem de um sonho inominável
meio animal meio homem selvagem
que repulsa em te demoras?
no limbo de uma lágrima de porcelana
nas reminiscências de uma última hora
meu coração não podia ser mais franco
estala aos assobios ásperos golpes
no arrepio de graves moldes
teríamos sido feitos à imagem de um animal que sofre
teriam sido as aves mais livres
estariam as aves mais perto do céu?
declaram-me as raízes que me sinto feliz
debaixo do tecto em que me fiz
de resto que pode o tecto incomodar
se são as pegadas que insistem em não te encontrar
que pode um cego procurar
se ao tacto o teu corpo é frio adormecido em vidro
os poetas têm apenas espinhos
do coração...só caminho
quarta-feira, 18 de maio de 2016
xilema matricial
lugares
da poção da vitalidade
esse caldeirão das bruxas febris
sintoma de desarrumo
desse tecido vegetal matricial
diante da pura evanescência
fantasio com a minúscula bússola
que me cabe em vão num fonema
numa página de celulose feitiço
súmula epicurista dos dias
a tolher fuso adormecidos
no histerismo de um beijo despertar
escuto o que de mais íntimo há
entre as folhas
no movimento livre mas contido
onde
o vento é vago dialecto
bailarino virtual no meu tecto
da declinação da permanência
conversam
do tamanho do sufoco se misturam
nessa reza automática ancorada
represento o poema
a espécie que o contempla
e tudo o que mais resta da sua ausência
no paradigma feminino do éter
não pertencer a nenhum conceito terreno
solitariamente atravessado pelo vento
opero a subtracção da gravilha
pedra a pedra
desses passos cristalizados
no impulso de desertar
pela emoção justificada de ficar
compreendo a vocação do absoluto
nesse sono de infância gritante
à viagem meridional do pensamento
mas que lugares pode o vento riscar?
desse traço de devastação
folhas enroladas esquecidas a um canto
destinadas aos grandes úteros aterros
desprezível endereço
são cabelos de bruxa que enfim vejo
desalinhados num poema condenado ao exílio
que se dispam as árvores já destinadas à fogueira
e se quebrem os ramos dos complementos sem beira
há algo de tenda nómada ou fenda ou nódoa
nesse xilema onde corre o veneno da cabeça
terça-feira, 17 de maio de 2016
hóstia viva
corpo místico
que recebe a alma em vão
escamoteando a realidade
na esmola de um suspiro
hóstia viva truncada por tábuas
machadadas na raiz de um velho gitano
a labuta da cruz nas suas próprias linhas
toma o verbo como pedaço de carne
e na clausura do poema sacrário
oferece-te
ingrediente mundo silencioso
filho do homem
na imolação de um coração teimoso
na sua aparência viva
na unidade de uma só paixão
o prato da balança pende
na expiação dos dias perdidos
quando a terra é dura
serão precisas mais palavras
vindas de todas as correntes sanguíneas
na abstinência de algo físico
Maria e todas as mães
que choram a partida de um filho
no cume da montanha dos partidos
é na perda que mais perto e mais longe
nos encontramos do destino
sangram bárbaros na labuta diária
a cruz da vida que nos atravessa
não há penitência em consciência
é real e violenta
mas venha a nós o Vosso reino
mandai um exército de poetas
que o mundo anda sedento
da cabeça aos membros
todos percorrem o caminho da indiferença
a humanidade dorme sobre pedras ruínas
adormece nos abismos da matéria prima
lascas soprando um vento cálido
a agitação dos dedos dobrados em punho
por osmose, a palpitação do coração
preso nesse momento de redenção
na palma da mão de Deus se entregam
campos austeros de intoxicação
somos papoilas flamejantes
nos filamentos de um ópio
que não mais errante
o laconismo de toda a expiação
desses dias vividos sem comunhão
nesse porto onde desafoga
um coração minguante
com a ironia das coisas dolorosas
escreve-se
nos pergaminhos da coragem
foram inventar outro porto
foram invernar para outro sonho
que flutua antes de ir ao fundo
esse corpo que respira sozinho
guarda-mór da linha austera
das altas esferas absorventes
tudo ainda te espera
tudo ainda te acredita
no último quartel de vida eterna
poeta
quarta-feira, 11 de maio de 2016
Quid hic agis?
há razões silenciosas
razões que nos transformam em titãs
os condenados a murchar
porque um espírito de passagem
permanece mármore
porque nos acenam do fundo os pilares do amor
laivos em cordas bambas
de chagas de vida insana
que divertem os escravos volantes na mão de deus
a hera comendo bichos opiáceos
para a entrega a um céu opaco
em fúria a caçada dos anos juventos
quedas de água manipuladas num pau de chuva
torcem as asas num frágil encantamento
de acrobacias de olhos abertos
há bichos que dormem de olhos abertos
pregos atirados às tábuas
o tique taque frígido
filtrando a luminosidade de miosótis
nesse staccato triunfado da matéria
vulgar uma ideia reparadora
de que todos podem ser reparados
mas há razões que nos transformam
em milhares de cadáveres tranquilos
o cadáver de um deus desaparecido
Quid hic agis?
escrevendo o diário de um convertido
enquanto todos descem à arena
almas voluntárias caminham até Ele
eu escrevo
sexta-feira, 6 de maio de 2016
acalma o coração
caminhando sobre o fogo não articulado
somente de pés descalços
para o renascer na curiosa palpitação
das brasas próprias do chão
de que se vestem os nus
da candura de filantropias
revela-se a si mesmo
quando o eco soa mais alto que o pensamento
pétalas de narciso por mãos alheias
fui feito de rasgos de infinito
da lapidação de um rude coração
pétalas de sangue de uniões selvagens
descubro-me na curvatura de mil coisas
nenhuma delas me deslumbra mais
monstros, pó, desenhos de um só traço
mundo vasto fósforo efémero
os estames e o estigma
centre e fuga e ilumina
Ícaro sol fortuna
sinto-me levado de arrasto
ou preso nesta varanda citadina
como se lá em baixo
estivesse a vida
do fino recorte do vento encaracolando
as paixões naturais que nos punem
há uma corrente estranguladora
talvez seja a mente castradora
sonhos diurnos de lábios entreabertos
para que as palavras de facto escoem
de dentro
como corrente curadeira de uma alma
perdida
da voz profunda soou
uma tremenda dor pela vida
a sombra tem o seu encanto, os olhos baços
de porte quebrado escarlate
porque estes lábios pertencem a outros mundos
as palavras ametistas exclamam
uma valorização futurista
que pode um floco fora de estação?
derreter-se no chão
do labirinto poético mortal
os pincéis secam sem lágrimas
confirmando-se a paixão de um pé outro aqui não
quarta-feira, 4 de maio de 2016
pátria amor
uma quimera cabalística
da vizinhança demoníaca que vai fora da cabeça
impressões dos carnavalescos arlequins
há um impulso nocturno
a lua vagueando no absurdo
à confissão dos sopros e das cordas
empalidecendo o retorno da vida
quando finalmente a cidade crepusculada
se dimensa na silhueta de um desconhecido
subindo à lua num dirigível
para lá do cognoscível
deixaram o rosto de estanho contemplando
o sol posto
embora aquela vista não fosse viver
formas enregelando nas vidraças de uma teia
mirante de uma estrela que não vai mais brilhar
uma copa de pedra que não mais vai frutar
e um sentir que tudo está de passagem
num compasso desassossegado
há um tremor que habita uma outra epopeia
uma orquestra de esqueletos
cravando na terra as unhas alongadas de ocre
quando o entorpecimento acorde
os passeios de cimento levantar
um corpo cidade flutuar
então fazer amor num leito vago
para reinventar o amor, levantar de novo
o insofrível corpo pátria livre, o sonho
no prazer de todas as brutalidades
que caíram no esquecimento
cai sobre o nosso esquecimento
a lembrança de um passado
terça-feira, 3 de maio de 2016
o caminho para a negação
dobram-se as casas rogando o chão
acendemos lampiões à perdição
antes que se extingam as adivinhações
capturamos as esfinges de beira de estrada
decompostas de caminhos possíveis
e para lá do que se desintegra
as mãos economizam formas do passado
a erecção dos pasmados
aqui espera-se tudo do acaso
desse monstro fabuloso com cabeça de sonho
as mães vestem vestidos cor de fogo
e comem um género de insectos ressequido
interroga-se a própria sombra que nos estranha
borboleteando do prazer melancólico
ou dos triunfos mundanos que não satisfazem
abafam no colo as profundezas
certas miudezas do espírito que não choram
as mulheres conversam para entreter
um tempo que só se converte em miséria
substituir as obras mais sérias
passeia-se a futilíssima mentira espontânea
com a sensualidade de uma posse de carne
um mundo que se supunha mais tenro
apertei-a contra o peito e embalei-a
supunha-a uma espécie viva de crença
mas como calar uma criança não meiga?
com lágrimas e beijos
e diminutivos de homens como tu
mas a carne não responderia à minha
somos união de outra natureza
noutros campos te pari
e tudo entendimentos provisórios
houve um tempo em que também eu
fui religião
e dizer-me agora para me iluminar
depois de tudo ter sido em vão
sexta-feira, 29 de abril de 2016
os lutos do imaginário
opalescente tenacidade
além do presente símbolo
estado de naturalidade - eu tranquilo
cortina de premonições
bagagem longa noite
não é nada...não é nada
da natureza transformada
a união dos corpos
descartando o adjecto da perfeição
o ser é fosco, tosco, esgota-se
na sublimação da realidade
o céu forrado de flores e pássaros exóticos
a presença absoluta
globulosa do vagar da vida
no sono arrastado da meia noite
precipita-se o encontro
dos espíritos que vagueiam entre mundos
a nossa falta de ginástica sobrenatural
a engenharia provinciana da paciência
em busca do real maravilhoso
nos confins das paredes de um fosso
a relação autêntica com uma gaiola
reconhecer os seus limites e ama-los
há fins que não se derrubam dentro de nós
antes nos infiltram da voz
das aves que se atrasam e ficam para trás
pendem sobre os murais das águas mortas
dos gestos inestéticos dos venenos
que nos condenam a mente
aos grandes olhos doentes do espírito
o fastio das horas de resíduos
ao lodo, reflexos escondem a morte
o verdadeiro verde clorofílico
não é deste mundo
estátuas de ferro não têm filhos
essa decadente órbita mitómana
nos campos de mijo envernizados
que a nudez agrava
a cidade que enlutámos deita-se com os nossos ossos
space dogs
coisas que matam o tempo
labaredas delírio
querendo rugir cirandando
no Apolo imaginário
gaiatos percorrendo paradoxos de caminhos
do índice vagaroso de uma aventura
escoando das escadas dos anos
o que lá vai lá vem irmão
essa pequena terra redonda que não é visual
sobre a qual nos alinhavamos sem caligrafia
o céu vai encolhendo
há uma imperceptível pureza
na saudação ao sol
multiplicam-se as forças dos destroços
nos soluços do que resta da infância
pedras amorfas alinhadas no passadiço
quando o assombrado se levanta
contemplo em redor a naturalidade
com que tudo se move, em frente
se as coisas pequenas pudessem ser gente
das caprichosas combinações do ventre
raízes a flores, brancura-rubor, milagres a dor
o apetite de inundar os olhos de um mundo que não este
da luta corpo a corpo, do empurra das coisas crescidas
da brevidade circular das mãos vencidas
o pavor não aclama o suor gélido
nem o trabalho acalma a arrelia
o sonho havia de continuar noutra vida
do sentir arquejante das cinzas
o chão dá-nos chapadas duras
sexta-feira, 22 de abril de 2016
sem chão
se as minhas mãos estivessem em sangue
passaria-as pela cal branca
querendo sentir o ardor dessas paisagens
para o corpo não esquecer nunca mais
o caminho de volta a casa
as vísceras serpenteiam-me
à boca chega o veneno
de um olhar saturado
acaricio o crânio
faço-lhe cócegas com o dedo médio
a cabeça encosta-se à outra palma
e uma alma à beira da secretária
os armazéns à beira do rio
são manifestações de um passado arcaico
numa outra cidade eu habito
medito o pesar de um cigarro antigo
a dama do sopro
essa latrina vaporeta
donde aceno
um cinzeiro de lata retorcido
onde apago tudo o que sinto
em todo o caso um casaco para o encontro
desses burgueses astrológicos
espécie de penugem cisne
inalienável belo, despir-me
flutuar sem identidade física
apertar o corpo contra a sombra
dentro de casa, na carícia da erva
no berço da lua, no sexo de uma cratera
há um gesto no lavar da loiça
no engomar da roupa
no temperar do tacho
no aparar dos canteiros
no pentear dos potros
no babar dos sapos
nos confins da memória
meus pés nunca passaram desses muros
o escoar suportando este dormitório
por aqui a asfixia paira carraceira
nos demónios alucino genios do movimento continuo
os reflexos mornos
laranjas vermelhos que entornam o céu de cinza
vende-se constelação
quando se rasga o animal
e as vísceras sabem a sonho
os olhos pesam de um azul glaciatico
massa que envolvo e devolvo à linha
sem os fonemas habituais
seríamos terraquios sem chão
nossas línguas mudas castigam
papagaio de papel ou arame de Babel
é a estrada viva
das luzes extintas
o estranho baloiço que ainda se encontra
nesse vai e vem anatómico de um instante
um céu de platina ao milímetro paulatino
talvez seja alheio
palavras ao vento
desse léxico de estáticos limiares
fermenta a madrugada nas vagas sombrias
de não se saber voz ou ventania
a empurrar fixamente as gentes
pesquisando no céu espaços de mistério
para onde caminham as nuvens...
é incerto
do descontentamento inquieto
poderia nascer um verso
com todo o asco pela palavra universo
o vento importuna
desnorteia-me o pensamento
deixa-me o corpo inquieto
os cabelos nos olhos
as folhas reviradas
o cigarro se apagando
o lixo dos outros
o bafo do rio
e um grito devolvido
se estampando no rosto
o verso feito e refeito
e de um só feito: aventá-lo
ao espaço saturado das coisas
que não lhe pertencem
todos os ares remoídos
me vencem
que reconheço eu?
este silêncio que é só meu
os outros pensam a favor do vento
riem de tudo, não dizem nada
há uma ordem que me excluo
numa altura que não sinto
da frente militante da alma
do fascínio pelo corpo na sombra
através da cortina do vento espesso
balanço
essa amputação de forças interiores
onde tudo é passageiro
passa o sentido entre os outros
numa identidade sem nome
a inspiração é algo insuportável
para um grande ansioso
obsessivamente quero ver para além
e o verso não se invade do concreto
farto desta película de brancura
donde não se esboçam lábios
de ternura
o vento gela, rasga, desmancha
o que posso descrever é senão a raiva
do próprio poema que não se encontra
diálogos de pedra
a chuva vai lavando as estátuas
no diálogo de um apego que escorre
esses braços de pedra que acolhem as pombas
na sombra que embala a febre dos dormentes
nesse tapete de corpo alcatroado expandido
aos caprichos do vento a alma é jogada
para longe
e confessar-lhe o murmúrio da vontade
de levar tudo
há um íman que nos arrasta pelas nuvens
cravejado nas estrelas um animal dolorido
as chagas de uma criança que nasce contigo
fins em que os amantes se desconjuntam
separa-os o ciclo da nostalgia
há o inesgotável cântico da morte
que os enlouquece de mágoas
e as minhas mãos calorosas que gelam as tuas
porque nem o sol acorda nem a lua se deita
das origens parece que a primeira palavra
pertence a deus
mas não, tudo foi a terra que nos deu
e à terra tudo se converte
amanhã, o dia será sempre ateu
no fuzilamento dos sonhos que se confessam
comungar-se a fome bestial
quando o sangue é tão fluído que escorre
desse céu sem ideal
o coração deixa de ser uma palavra
feito de pedra e espinhos de cristal
o interdito supremo ódio
donde não se quer ver pessoa, flores ou animal
durmamos por agora.
continuas mãe na tua infatigável obra
sou artefacto nas palavras que te deixo
continuas mãe como se nas tuas voltas
coubesse um deus inchado de vida e sacrifício
sou pura traição em tudo o que te confesso
mas a chuva lava. a chuva lava o que não se chora
no diálogo de um apego que não se sente
esses braços dormentes que me acolhem
pomba que existo dentro da pedra
terça-feira, 19 de abril de 2016
que linda falua
descalço os pés ao chão
a vibração de réplicas de uma realidade
perfilhada do sonho
sou mãe diga, de dizermos
tudo o que não tem valor sem sentirmos
o que tem a brisa morna do para sempre
como se empresta ao chão ao ventre
dos ritmos nascer-se de uma fornalha
sem gente
que nos alimentamos de uma ânsia que não tarda
a alimentar-se de nós
os meus pés caminham com a catarse dos salvados
as articulações das vértebras urbanas
apertando o espartilho desses prédios erguidos
as mãos que afagam o sofrimento
são as mesmas que o sufocam
o ruído afinado dos transeuntes
são deslumbres já finados
há um amanhã que é ainda ontem
as linhas progressivas da contracção
dos rostos que me cruzam
têm o traço final do acabado
desistes-me.
como essa dor inominada de imensurável rectidão
são as forças das raízes que nos investem o chão
que nos irrigam essas catacumbas submersas
de lágrimas caídas de olhos que não choram
vertem
há uma febre que antecede o momento coma
as imagens que caem amorfinadas
pelas pálpebras geladas
há uma cidade que já não te contém
porque ninguém sabe mais de onde vem
para onde vai
sexta-feira, 15 de abril de 2016
um homem ao rio
para lá do sol há um clarão que se agarra às lágrimas
e um homem que se mata na beira do cais
e uma noite enfim, quase à força
os leques íntimos da cidade escondem a vida de fora
o rio prostrado no leito toma o silencio onde cabem
todas as pancadas surdas do medo
a perpétua ressurreição
as voltas que a terra dá sem mansidão
nas profundidades da mente
um vaso de flores na varanda
vigiando o movimento do bairro
há um terrível sentimento de abandono
da irregularidade das coisas
como se os passos instintivos não fizessem
o caminho de regresso
eu queria pensar a que pertenço
como um duelo de ti contra o acaso
um aterro de memórias sem passado
as pedras atravessam-nos no sonambulismo da gente
abandonar-se na penumbra que respira
na absoluta contrição de vontade nenhuma
na acender das luzes
a cidade é encontro de sombras
a carícia insinuante das coisas solitárias
do encostar das tristezas ao muro
que separa o rio da terra firme
que testemunha o aparecimento de tudo
o que nasceu sem o choro baixinho da compaixão
sinto o arrepiar do corpo
a temperatura talvez desceu
ando matéria sem faísca viva
temo ser criatura amorfa
sem os méritos da culpa
a causa de todas as ruínas
que me assistem nascer sem história
temo a possibilidade de me perdoar
ou de me reverter nas janelas vazias onde aterro
em qualquer outro
sou pedaço vago de som surdo
o ar de abandono pede para ser esbofeteado
o rio das coisas inertes espelha
um busto de bronze de espírito aventado
levo a mão à água
nasce uma ordem na ondulação convulsa
friamente o corpo despe-se de luta
tirar-se à sorte
renegociar-se a fortuna
há toda uma terra estranha solitária
sempre só, despedindo-se
quando se sacrifica o sangue
que gosto teria
a desgraça de o beber
de um só trago
fico suspenso
toco na campainha
não há barqueiro algum
procuro vagamente por um assento
conservo o perfil do vento que me vai desaportando
a bordo dos menores gestos
eu já nem sei se quero navegar ou ser navegado
talvez queira tudo ao mesmo tempo
com a lentidão de um velho
a intenção eloquente de trocar o verbo
pelo deslizar do silêncio
do outro lado há uma outra cidade gémea
a ponta mastro desligando-me
acabar com a fúria de um animal encurralado
eu quero todo esse amor sujo
que se acumula na borda do cais
eu quero tudo tudo tudo
eu quero tudo quando se acaba
Subscrever:
Mensagens (Atom)