quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

a labora do poeta


da oscultação do vazio de deus
cinzas habitantes das sombras
debaixo da túnica o ventre das bruxas
caindo homens de pedra paridos
anjos que não carecem mais de asas
como árvores dispersas sem linhagem
a paisagem feita de carências bífidas
o corpo um telégrafo de bestas
necrófagos pássaros do ventre de Lilith
deixadas no lugar do trono
as pálpebras do anoitecer ficcionando
a queda de um animal doméstico
encolhendo minguando
para a antemadrugada em transe
dormirem juntos no avesso das intermitentes
calhas do mundo morto
é coisa dos dias, das horas trancadas
do desvario da lassidão ou abandono
o mecanismo encerrando-se no corpo demónio
surdo de uma profecia amorfa
para um duelo com a mente erótica
corpo entregue a corpo
vertebrados os sonhos são fundidos
a terra rasgada de precipitações do vazio
para extrair da última gota do sémen de deus
a nudez das palavras sem talha
Ela está no meio de nós






quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

as pás do arrasto


as pás do arrasto calaram-se
no canto um monte de folhas e lama
a terra remexida por lágrimas
que o sol insatisfeito de inverno vai secando
embalagens ressequidas, rostos rasgados
cascas de frutos que os pássaros de luto devoraram
as aves alheadas sobrevoam e cruzam os prédios
desenham nas arestas combinações destinadas
a linha da roupa das molas das copas
das armações que não sustentam as costas
a idade à janela num diálogo repetido
serve de companhia o horizonte gasto carbonizado
as roupas encolhem as meias rasgadas
os chinelos do arrasto aquietam-se
janelas que se abrem ao contrário
naftalina e ocre dos gatos pendurados na máquina
que cose sem linha panos de barcos estagnados
no vício de um cigarro apazigua-se o riso céptico
de tudo estar à beira de um fim
e não é romântico nem cáustico ou moderno
não é aceitá-lo de braços abertos ou fechados
antes uma impotência surda do inadiável
porque nos podemos adiar até ao fim
o que resta da solidão é um aperto no coração
a curva por onde nos despenhamos e o agarrar
que só na possibilidade do sonho nos poderíamos salvar
para depois de um esforço arrasador chegar ao topo
e constatar que todos os outros estão lá
e um gemido definhado porque ninguém se salvou
que a alma no momento da partida tentou ainda
no pós vida arrastar-se colina acima


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

a um deus sintético




no colo da virgem sintética
o esqueleto de uma árvore decapitada
cobertos de névoa os campos são florescência
gotas que pendem para cristalizar a dor
no ventre da terra ancoradas as cordas
do instrumento que nos distorce
o cordeiro aninhado em espinhos sonha
o manto de todas as mães dos nossos terrores
sem tocar deixamos lençóis engomados
instantes em que nos despimos e vestimos
intervalos de inexistência
pasta o rebanho nesse retrato a preto e branco
ancorar na omoplata direita que sofre
o instrumento doentio não mais melódico
a linha que estica e encolhe por asfixia 
do fole o fluxo vascular para a secura
talvez uma chuva que nos leva por arrasto
a luz raiando a miopia natural
demasiado oxigénio a rasgar no lugar
as asas que partiram antes do corpo doer
disparos de cegueira para a paz da fé
e os momentos caem ao encontro do adeus
volteio nesse perímetro de recantos e colunas
que atrapalham as voltas da lucidez
guardar na carteira o santo pisar o chão colante
cuspir o atraso das horas que nos partem
em impossibilidade de construir a carne
mas as mãos voltam ao bolso e descobrem
a solidão da virgem de cartão
e do outro lado da rua saindo de casa
alguém carrega uma árvore nua decapitada


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

auroras de luz



golpes de luz iludindo as arestas
para nos partirmos em instantes
para o terror da madrugada lúcida
foi o vogar lento de um passeio
o lugar comum purificando a dor
assento aurora na fronteira de um rio
encosto as vértebras à corrente
desdobrar-me e assumir o fluxo da água
negro o rio devora-nos lento
aspiro a náusea flores de dentro da cabeça
o frio de um intervalo que se quer despido
ficar-se por ali a contemplar a mistura escamosa
o arrasto viscoso da língua que mergulha noutra língua
sentir o arrepio da espinha quando arrancado à linha
e atirado de novo à água já morto mas ainda vibrando
para ser desconectado da parede das estrelas
ou emprestar-se a toda a pele que se funde no balaço
doce e amargo da nascente ao inferno
sopram preces de um prazer tão íntimo
que só o silêncio respirado é capaz
e corpos abandonados capazes
essa massa brutal corpo de água um só ser
longe de pensar onde acabar o movimento prende-se
nas docas entre as pernas que caminham arrumadas
sobre a água, dentro de água, fora de água
a luz abrindo portais de longe
rasgando a pele que vira costas e atira-se à margem
para nos partirmos em instantes equidistantes
nesse arrasto melódico, o rio
um organista do mundo dos vivos
que por nós há-de passar


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

a decadência do símbolo



aves negras insónias cobrindo a retina
um salto felino para a exaustão
servir a carga as penas coladas na saliva
o grande escudo das radiações além tecto
hexagonal mente perfeita de olhos abertos
um prazer sufocante no intervalo dos braços
constelações do isolamento ao cair vago
mais ar dos termos lógicos do levitar
da armação incompleta das horas
da programação da busca dos sentidos
a escuta o diálogo de uma língua desconhecida
quando o cosmos cai de um orgasmo
sublimado na solidão dos corpos
decadências no segundo extinto do dia
ciclos falidos existindo colidindo
um sistema sintético de antagonismos
aves que não procuram ninho neste mundo
a miséria da fome do campo experimental
a ordem natural que não cabe no bombear
verbalizado na pedra basilar de todas as cargas
que sempre nos pareceram demasiado pesadas
o sonho insonhado no corpo nunca adormecido
só as aves pernoitam no dia que não chegou a vir
em lugar nenhum o poema acordou




terça-feira, 12 de dezembro de 2017

dos últimos dias


o poente despede-se
visitando um lar perdido incolor apolar
horas perto do equador
mortífero para nos engolir por inteiro
e partiram penhascos de gelo
um sistema de tentáculos e tubagens
onde as palavras são metano
circulando na boca dos homens
o caminho da balada dos sinos
bizarrias atravessando portais de púrpura
uma corrida nocturna sem corpos
animais dos últimos dias
abrir no hiperespaço uma força tarefa
cair de um ponto morto
e leopardos mineiros saindo da nave mãe
as vozes do tempo para um não tempo ainda
pela cintura a borda da placenta
transbordando uma barragem de magma
nas margens velas recolhem os intrusos
metais distorcidos e o pender de quebrados fios
figuras de antes manipuladas
à terra seca de cinzas pentagramas giratórios
irados os homens sem âncora de arrasto
abruptamente há o quebrar do céu
faiscando as fronteiras de deus
velhas trepadeiras de luz trémula
as primeiras aterragens fora da atmosfera
estrelas emergindo do movimento especular
bolas de fogo saindo do peito dos lobos
e todos os quilómetros de espessura
apertando-se como um louco
devolvido à camisa de força do mundo
assim, sem massa, sem carga
nossos corpos quentes como conchas ardentes
o assobio do eclipsar de exaustão
a seiva pronta à fervência
e um último elo que nos prende à cadência
combustível para rampas de lançamento
habitar no coração do astro hipnótico
mensagens por impulso em metros cúbicos de amor
como qualquer insecto vulgar que já esqueceu a dor
as mãos erguidas companheiros de queda
a figura turva de uma memória não mais redonda
porque nunca tiveram um só sonho
que não acabasse no ponto mais distante da terra
estaremos sempre a caminho
apesar de não haver chão, nem cordão
estranhos vindos das estrelas
da parte da atracção de nos projectarmos para fora
dessa estranha forma lúcida da insatisfação
irrevogavelmente transmutar
o tempo partido de olhos abertos
entre o permanecer e o partir sem nunca ter existido
e o poente despede-se triste
porque quem lá fica nunca soube que podia ter partido


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

choros do vento


é o sal da lágrima que cura a ferida
para o matraquear da máquina
essa parede de fóssil vivo
para o riso histérico de uma carcaça
a criatura dissimulada da própria morte
o desgaste oleoso de um relógio novo
e afogar-nos num só golpe de pesçoco
sugar do polegar da criatura a beleza
que avança pelos cascos da consciência
ao travar da luz, meditar no topo escultura
alimentar os cães com carne crua
o céu interpretativo adesivo
para escutar por detrás das portas
o gemido

e um corpo recém-aceso
um instrumento fora de sítio
gene ostentação de imagens imortais
todos clandestinos da forja divina
a condensação do movimento natural
o fumo instinto que brota da boca
para flutuar num aquário seco
nas costas subscritas de um anjo
nas paredes mosaicos de um tabuleiro
onde se estende essa terra oca
dos lábios um rebordo de um beijo

vejo cabeças de hidra reviradas
nos dedos delgados do sonho
e das palmas raiadas planar
cães vagueando pelas estrelas sintetizadas
a mente ficando límpida da fúria do abstracto
para a revelação da ausência dos deuses
no fundo de um rio calcetado de aço
há um espelho retorcido por onde passo
é poro, pedaço, pano de mundo amordaçado
o exorcizar do real sem fonte
te recordas do horizonte?

para dar corda ao mecanismo
o arquétipo da escuridão cá dentro
rosários para despir ao contrário
ornatos acordados de fresco
pelas caves da mente
onde cada paz tem a sua campa
as folhas caem na atmosfera
tronos de pedra adormecidos
o cair ensurdecido da ressonância do vento
que por baixo da pele prolonga a morte

as nossas mãos são lendas entrelaçadas
as casas abandonadas arquitectam-nos
pontes de existência para uma nuvem contínua
um bosque vivo na ponta dos pés
tudo tem olhos refundidos
aquieta-nos
espirais por onde saímos sem ter entrado
remexem dentro de nós via satélite
no décimo andar de uma copa despida
para a ruptura dos hemisférios métricos

choram-nos, lágrimas doces que não curam

rostos de pedra
passos de musgo
linhas de água
a descarga viral
em gradações de poentes
para repousar no eixo imóvel da terra
nossos corações raivosos
de quem não sossega





quarta-feira, 22 de novembro de 2017

a acidez do alinhamento


ao espaço
o voo é tão intenso que provoca enjoo
quebras de tensão e um embrulhar do ventre
interrompendo como vertigem
corpos em queda livre sem alimento
deslumbrados de motivos de luz
para o desprender onda magnetizante
de fissuras ao uso industrial do fluxo consciente
a geometria das mãos que acolhem o ar
pequenos magmas gestos orientais
para o círculo graduado de momentos
que nos encontram rodopiando
como parafusos peões do movimento
delicado é o estado da desambiguação
esse órgão cartesiano de divisão mágica
em todos os quartos de tempo
somos intersecção de sólidos
para a espessura quântica da metáfora
esse xadrez de avanços e recuos
de equivalentes de traços de pontos
para a felicidade extrema de nos sentir
um planador solitário
que salta de referencia sem escala
pó de estrela e mágoa
recolher do fundo o resto subliminar
planos de sombras desvairar
 e a esfera rola à beira do precipício
no movimento perpétuo
sem sair do mesmo sítio
como em todos os recantos redundantes
serpentinas de calafrios
instrumentos perfeitos que servem ao balanço
desse metal inventado
um escorpião sepultado no sonho
tentacular do arrasto
silvas criaturas do algodão
esporas no lombo celestial
é a paixão de nos sentir do lado de fora
para o desagarrar como diaspora sem partir
comer-se os olhos em pedaços
sais fibrosos tetraédricos e só deslumbrar
o alinhamento do horizonte sem eixos
e múltiplos de nós no ato material
do deixar-se ir desencorporar
para convergir nos pólos galáxias
de mil universos ainda por pensar
prometem-se um ao outro
no preciso segundo em que se começam
o sangue corre mais depressa
e a viagem parte antes da alma
dos dias visitados em redes de amianto
para a combinação química da alienação
de pisar da linha da terra
em projecção



segunda-feira, 6 de novembro de 2017

as águas do pacífico



marés dedilhadas do invisível
para lá de tudo, as águas do pacífico
ao longo as ossadas parecem firmes mastros
essa paisagem já desfeita
como um visitante ou passageiro
e despir-me, só depois para dentro das mãos
a moldura das coisas velhas e ocultas
as águas reflectem a cor do alívio
por esta altura, todo o tempo é remoto
o farol que controla as memórias ao abandono
os velhos edifícios que veneramos no reflexo
o dia vem corromper a honestidade
interromper o formigueiro ou a água a correr
aterrar num peito desfibrado
por onde se escorrega ou se entrega
há no horizonte um último lampejo
no coro de enigmas e escapes de desejo
para a melodia da distância já ardida
dizem que o delírio é a vida
praguejado na língua do pensamento lírico
que cai no sono dos que não dormem
e as palavras são o ciclo mortal dos que não partem
e os dedos escolhem arrancar do fundo
a brandura dos homens que se matam
as águas reflectem a cor do esquecimento
dos homens que se matam
não há porto em terra
não há vela nem corpo
não há morte para os homens que se matam

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

laudare em suspensão



sento-me, no topo do mundo sereno
as nuvens bordadeiras dos textos da fundação
respiro, sou pura funda de cordas vocais
atiro-me sem corpo contra os muros anfíbios
para a domesticação de tudo nocivo invertebrado
assumem-se formas imanentes
elementos supremos do contacto com a alma
mais próximo da representação sensível da alma
chegam-me relatos circulatórios
para o acto mais puro
o que nos move sem se mover
há em nós a atracção do fim
das anulações abstractas
dos trabalhos materiais dos sonhos inacabados
uma pluralidade de olhar
que só se encontra nos terraços metafísicos
e depois a decadência dos voos
a prima substância para regressar à terra
actualizam-se os pássaros no céu
as forças potentes das suas asas
para o acto de vir a ser ponte de céu
e península entre peitos desabitados

afago em nós o sangrar da terra
o óbulo nódulo para o limpiar dos clarões
tudo o que carrego de negro que nos absorve
tudo o que sou de desespero
há o dissipar das ravinas
o encadear das névoas
o conforto da rigidez das trevas
de tudo ser tão forte que se anula
e depois o contacto das pálpebras
o ziguezaguear dos voos inéditos
rasgar o céu pela primeira vez
porque tudo é uma estreia
e sucumbir ao peso
do entresonho da interrupção da morte
madrugando na futilidade da paisagem
ter os ossos articulados à carne
na ruína das ilusões atiradas às fornalhas
as paredes de azul celestino retratos ou espelhos
a luz que reflete a água dos teus beijos
para a sanidade possível
e o paladar tropeça na incursão da cabeça
a poesia sabe a láudano e incoerência
para tudo o que nos cobre de lonjura

há plenitude nos ângulos das aves
as mãos albas para a sombra da cegueira
porque para lá destes terraços
somos o desfiar das vagas, descampados
e o coração pela boca silabando
tudo em suspenso, tudo em suspenso

assume-se a distonia febril
o sonho mecânico interrompido
e bater com as costas no chão
o quebrar de estátuas de sal
para o difícil rasto das palavras
para o desaprender do olhar do céu
há um eco apagado convulso ainda
de se manifestar no atingir do azul
e anjos descalços ainda por vir

tudo em suspenso, tudo em suspenso
sinto o corpo suspenso por cabos de aço
fibras elásticas de aproximação e afastamento
quando me tento, ser, em movimento



sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Tempe - esse vale ameno


andam os pássaros enfeitiçados
melhor do que ninguém
na grande linha dormem tranquilos
vendados imortais aos tiros da obscuridade
feitos de gestos e delicadezas
inspirando o dia de proeza e significados
o voo das coisas pequenas
na sombra dos grandes telhados
à luz trémula dos raios dos homens
que importa a verdade exacta?
a memória muda a cor do tempo
as garras religiosas dos solos
que nos atraem à cova severa
o horizonte limitado da terra
as sebes dos campos já lavrados
de quem não conhece o feitiço
da orla do mar, dos areais primitivos
que os arados egoístas dos homens
rasgaram em farrapos de tristeza
desaparecer levado do sopro
desaparecer numa espécie de baldio
materializado no sonho da garça
no conforto físico das suas patas
lançar gritos no seio da noite
no ataque nocturno das almas
o suspiro que resta depois do asilo
do corpo abandonado noutro corpo
viajando na embriaguez de tudo
minutos antes do crepúsculo
os caminhos corredores do espírito
grosseiro sem eira, um covil de dor
o olhar franco da felicidade completa
trotando contra o grande enigma
das esporas que fazem o girar do dia
ao nascer do sol de inverno
dos reflexos de sangue no céu
um hino ao voo eterno



quinta-feira, 19 de outubro de 2017

o corvo mergulha no abismo



o corvo mergulha invertido
no fundo observa a vida na sua abstinência
ao chão duro, a tudo o que já não é puro
é com toda a serenidade que aceita a tristeza
cada ramo volátil de natureza
e é confortável e quente, como a cinza que fica
para a abstracção solar, para o rastreio de vento
é o espaço que está entre tudo
a pasta que solidifica a pele
depois do encarnar das trevas
a projecção do coração humano
a sombra nutrida do devaneio
ou a metáfora do ângulo morto
o momento traçado altissonante
aliado a uma hipérbole vibrante
insurrectos seremos sempre escravos de afecto
emancipado o andamento desmesurado
banirmos do exílio o passado
a destruição dos teares da morte
e vagar pelo mundo dos vivos
avatares de Prometeu
da fuga dos doentes de engenhos
perdidos nas brumas da metrópole
ou na ficção do átomo isolado
para esse vórtice oracular da vigília
contra a alvura fantasma de uma vida
para a arte do alto voo do incógnito
tudo memorandos de imagens titânicas
descritas pelo voo horizontal ao abismo
o corvo mergulha
o corvo mergulha invertido
traz de volta aos vivos
a paz dos mortos esquecidos





quarta-feira, 18 de outubro de 2017

nossa senhora


a semente caída do aperto
dos parapeitos das janelas
dos maquinismos da infância
da água que ultrapassa o seu nível
para o dia de expansão
à execução da fadiga
dos dias sem aurora
para o transbordar de relevos
onde o peito arfando de fogo
se demora sempre de tão negro
contra aquela janela aberta
onde não chega nem calor nem frio
moramos em lapsos de impaciência
para a asfixia do grande reboliço
-havia entre nós alegres demónios
ora para dentro ora para fora
como as velas que se acomodam ao vento
versículos irados em voz baixa
"um mistério...um mistério..."
tomando o seu lugar o dia sereno
nada absolutamente nada
uma represa que se abre ao espírito
voar por cima das pontes
onde as lágrimas já lavaram a tristeza
e entre nós nessa espécie de tecido
esse sofismo de tudo o que é bonito
como as velas que se acomodam ao vento
tudo caído do aperto do fio do novelo
da primeira ponta do mundo dor
mundo das coisas humanas do amor
tocaríamos a terra mais de perto
com o gozo do sentir-lhe o tecto
graças ao céu e ao inferno
sabemos que estamos sempre por perto
tropeçar na felicidade como um pormenor
cujo passo maior que os nossos pés
e beber desse cálice de amargura
até sentir as borras na língua
para o anunciar estridente da loucura






terça-feira, 17 de outubro de 2017

uma casa de pedra


os dias calcetados de gesso
raro sumido pouco a pouco
o amor cresce dentro das casas
arquitectural
no caos das paredes 
a divisa dos afogados
afogados dentro das casas
mas que casas!
pedras esculpidas do calvário
sombrias estreitas profundas
ruínas muros de desabafo
de pé, alto e isolado
o sonho arado 
o chão abatido
dos campanários da escuridão
dos profanados telhados velhos
torres menores arcanos arcanjos
torres pontiagudas que não dão repouso
o batucar do encaixe calcário
falas ao longe de um calão mundano
o tilintar de uma era que chega ao fim
e o buraco olímpico do submundo
cada vez mais aberto
pancadas de mais forte 
amortizar as pedras e o chão que é mole
um trapézio firme e denso de raios de sol
à medida que o descrevemos no espírito
na caligrafia dos agachados
dos que cumprem promessas de joelhos
para que a cidade se cubra de tapetes 
de calos, de dor, de sacrifício e esplendor
em breve tudo será cinza e gesso
essa antiga cidade que trago 
mais as portas que os telhados
mas os telhados, de novo os telhados
jardins e monumentos de anjos vedados
pegadas de um gato atravessado
preces, orações, o desespero do habitáculo
não era apenas uma cidade
foda-se..agora partir isto para que encaixe
cada pedra que nasce é livre 
depois as mãos dos homens 
a picareta, o martelo, a força
o riso diabólico do trabalho
ai que caralho, foda-se, a pedra é dura
o grande génio da arte da rua
o sabor do remédio na boca
do suor na roupa
a tosse que anuncia a chuva
crianças que brincam na beira dos passeios
risos, pedaços feios de vida
crianças que cresceram calceteiros
dos arabescos dos seus cantos góticos
o nevoeiro levantado desfigurado 
pelo dia em que deixou de haver passado
as paredes ardósias de palavras 
sussurradas pelo tricolor das fachadas
vibrando figuras em relevo numa cova
o desprezo por quem parte o objecto
para cobri-lo de pancada

distanciam-se-me os pés
os passeios são linhas de um engenheiro
os passeios não sofrem de poesia
eu sofro do que cresce pelo chão
que me sobe pelas pernas ao sexo
a cidade pornográfica deste corpo
raia, limite, renascente
partida e torcida
foda-se, parecia um acordeão
as costelas em fole abrindo fechando
ao toque da minha mão
a poesia escorrendo
abatendo-se sobre o chão
a clarabóia do labirinto 
onde contorcido me abato
e nada passo de um buraco

lá fora estão agora calados
amanhã, amanhã a cidade continua-se
de orgasmos de abismos
por agora, os calos sangram
e o amor cresce dentro das casas
um monumento puro e efémero
tal como as calçadas
duma cidade que ainda trago por dentro


quarta-feira, 11 de outubro de 2017

o espírito em visita



a paz dos claustros vazios
dos vivos deambulando
ossos de um fiel cão de arrasto
salmos de solidão
para fomes vulcânicas adormecidas
andam as trevas da extensão
débeis de tanto quererem
o aparelho da madrugada dos homens
o antídoto ao desamparo
para o pó dos dias
e o tempo demora-se
no bico de aves do frio
o corpo febril de lágrimas de cimento
o que escorre agora é a chuva do entorpecimento
e as manhãs nascem do livre arbítreo
revolvendo os espíritos no seu zelo

se a brandura não conhecesse o teu olhar
as mãos adagas com que me afagas
ou a saliva com que me afogas
quando terminam todos os salmos
e as aves abandonam os nossos telhados
o dia não é mais a extensão da noite
porque o caminho de volta se conhece
o medo aperta-nos as mãos
o monstro desaparece das trevas
a angústia de te encontrar na escuridão
que sempre tardou a ser completa

e os passos percorrem as salas
pintados de fresco avidos sangrentos
as criaturas desprendem-se das paredes
e falam tão alto que não as compreendes
a privação do sono, da fome, do sexo
quase submetidas ao fenómeno do sonho
e do olhar fixo dos objectos do mundo
a cabeça é um simulacro da existência
o esqueleto de um homem no centro
uma luz azulada progressivamente
vozes de crianças veladas de véus
e flores e pedaços delgados de dor
não mais humana que essas mesmas
paredes, de claustros de células e veias

e tudo isto é viver e morrer
e tudo isto é triste e belo

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

na voz do espírito


um único latido
de morte desse pobre animal
a monte, sem o afrouxar dos passos ao nada
os tapumes lavados de sangue
acariciar o animal moribundo que deambula
nas horas bravas cruzadas na verticalidade
esse animal que lamenta nunca ter visto o mar
nem a brutalidade das ondas contra o peito
sentir o sofrimento dele
uma hemorragia incontida
uma árvore acorrentada pelas suas raízes
uma concha vazia
que passa de mão em mão na surdina
sem o despertar dos sentinelas
das faculdades de atravessa-la no silêncio
a noite suspensa numa forca de dor vaga
pagã, enquanto respira o instante valado
em todo o olhar um banco de praça
ou uma porta de igreja
de olhos fixos na terra
oiço cigarras nas cidades
e cães mortos a sangue frio
no abandono de dono algum



terça-feira, 3 de outubro de 2017

os cães uivam desafogados


o dia é salvo
os cães uivam desafogados
em todas as esquinas os beijos ficam desamparados
no choro das cordas que vibram
há nesta rua um candeeiro que se apaga
de hora a hora
porque não me encontras na escuridão?
um país que se podia atravessar a pé
às vezes sinto que esta não é a hora
de se escrever um poema, ou dizer-se
o que fica por dizer, entre nós
que não são lugares, nem paredes
ou luares
a sombra, a cal
uma lanterna que carregas nas mãos
com a doçura das ruas onde foste
eram pequenas, mistério, desejo
onde corrias descalço sem o anseio
um dia qualquer dia acordares
eram pequenas, as mãos que encontravam no sexo
nos lábios nas costelas do peito
uma mulher que de outro jeito
andaria de triciclo, a cavalo, numa vassoura
estas palavras que atravessas de salto
as ruas nunca seriam só minhas
mastiga-las no vazio
transbordar-se de felicidade
porque há um eco, uma outra voz
que nos diz que:
não se pode esperar a morte antes dela
existir
que mais pode o passado
mas nós ainda não chegamos
e quando todas estas palavras não dizem nada
quero pedir perdão, absolvição
quero olhar-te na paz de não nos cobrarmos
já pertencemos, já fomos, já nos amámos
é só uma parte não iluminada que por agora
nos quer desesperada
a escuridão tem fome do nosso desespero
todos os dias são de luto
já foram e continuarão a ser a morte dos que vivem
em absoluto
um dia, retirar de nós os momentos que nos condenam
constelações que nos absorvem de céu negro
é só um sol que nasce fresco e liberto
de qualquer outro intuito
é só um sol que nos olha de outro jeito
porque lhe rejeitamos a luz
de continuar, de nos continuarmos
desalmados desafogados

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

memento mori



um cigarro pendido no cinzeiro
a fera que arde lentamente na mortalha
há no peito um extractor
porque para dentro se carrega
toxinas de um desnível que o mundo
visível rasteiro não conhece
e a pele toma uma força metálica
a ferrugem para o restauro dos pilares
do grande grito da fúria
ou da cinza que cai no vaso
criaturas minguadas depois de ardidas
espirais de fumo
aos comandos
sentimentais sem rumo
o antídoto cristalino giratório
para a cadência em crescendo
para a surpresa da hora
de sentir cada dia mais vivo
abruptamente
rebentam à superfície
notas incandescentes dislexicas
compreender estupidamente essa hora mágica
a língua sucumbida aos travões da vida
para retirarmos do substrato mais
e sempre mais profundidade de um buraco
há uma pauta magnética no corrupio das almas
que não nos assenta
e os dedos calejados, de amarelos doentios
não trazem o cigarro à boca


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

no dorso do sonho


- ofegante
entreseios de pernas arqueadas
que se emprestam das vulvas da madrugada
até à última gota
nos vertem despidos de sinais de nascença
a pele branca tinta da china pincelada
há a urgência de um conversível danado
e se fossemos de porcelana comestível
carcomida de tempo infalível
essa água de colónia lavanda
uma xícara de absinto de águas fluviais
para fervermos em lençóis de limalha
o banquete do paladar anestésico
esse balanço crepitante descombinado
aspirar ao ritmo de azuis em topázio
atirar-me ao rio com traços de flamingo
esse céu rosa desmaiado de tempo
onde me perco
pega-me com esmero
a lua miopia mede o círculo da íris
pega-me com esmero
a pele oxigenada de desespero
puxa-me pelos cabelos no calafrio da queda
somos alcatrão e prata e pedaços de estrela
aprendiz de tumba vespas na ponta dos dedos
para a existência de se contorcer
estafados na forma
vira-me do avesso
sem o menor indício de fratura
voltas na ausência de um trago
de uma língua que atravessa a outra
o contacto um manjar glaciar
o labirinto mental do lençol
gravado de sonho e suor e o teu nome
ofegante
até à última gota

sábado, 16 de setembro de 2017

cartas de neruda


doem-me todas as coisas
vivas e mortas por dentro
leio-te.

o lançamento de uma pedra no lago
o momento presente com que salta
e volta a saltar para se afundar
nas profundezas de tudo o que fica
um gato na fixação de um pássaro
o espesso céu cinzento que uniforme
nos aperta de conforto macio e suave
também eu deixo os olhos no céu
por não saber o nome dos pássaros
sopra um vento seco na boca dos homens
o imenso alívio de tudo
abate-se de quatro patas no ar
com a vontade de matar só por matar
porque a inocência é um estado

talvez porque despidos
o corpo é como qualquer outro
e o meu é o teu ou o teu é o meu
esse poema lúcido que se toca acordado
uma árvore antes da queda
uma imagem de um santo
porque aqueles que mais temem a morte
mais perto dela vivem
é quase tão sério e sombrio como amar
leio-te. por querer descodificar
por querer quebrar as paredes
desse espaço nesse outro espaço
uma brinca de vícios ocupantes
como seria ficar só contra as paredes?
leio-te sem pretensão maior
não querer dominar, não querer acabar-te
leio-te para me começar todos os dias
como um poema mais próximo de ti

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

essa pálida Ísis


relógios com apontamentos mórbidos
um gigante abandona o esconderijo
galos ou choro de crianças
e caminha com a missão de chocalhar
de revirar a terra por acidente
relógios com pensamentos mortos
serão perseguidos como lobos na mente
as vozes dentro de casa
do vento que se dissipa para fora das paredes
a febre que rói o lugar da carne
uma vela por acender no exercício em vão da cura
um cubículo onde repousa o medo
visitar às escondidas os becos
onde a tirania da poesia se oferece
um cisne negro procurando por beijos
carícias em troca de lábios de vinho
de sinais em troca do espírito
juntar as minhas lágrimas às suas
das dores excessivas do amor pó
fumarolas brotam em forma de cruz
a paixão uma chama que nos chama invertida
há um velho deus atrás da porta
companheiro de viagem morta
os nossos fardos esmagam a solidão
as teias do aborrecimento vigias
a alma já partida para o Hades
virando costas aos fieis do mundo
meditam os vitrais do edifício
todo esse lado distante do peito
desse gigante que partiu do lugar
que se quer desabitado
e das ravinas arenosas
erguermo-nos como silhuetas às escuras
dos caminhos de areia intra venosa
celebrar uma cerimónia nocturna
e a noite cai
cai completamente nascida da lua

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

a noite



ao encerrar das pálpebras
aproximam-se e quase que se tocam
as paredes do quarto pele
cai o primeiro sono
na luz tudo o que se quer de seguro
os pés nus
aconchegar o vazio nesse substrato
ela adormece no lugar debaixo da terra
fala das coisas interiores
contra as paredes
o rosto descoberto pelo tecto
lençóis de água dobrados
o corpo amarrotado ao nível do horizonte
para ser manhã
o corpo despede-se com a nudez do adeus
a coisa acontece bruxuleante
marginal um septo película sonho
há horas em palavras
quando tudo está de passagem
cobrir de lençóis brancos
a espera tem sempre os olhos cerrados
se um dia viesse à minha beira
pendurar no cabide a minha alma
e deitar-se comigo assim de aconchego
e não ousar por medo, tocar-me
há horas em palavras
levantar e caminhar pelo quarto
acontece que se descreveu às escuras
respira comigo sem existir
a noite está longe e desce das nuvens
olha-me mais por dentro
sem falar sobre
o comprimento espaçado das ondas
batem perdas no labirinto das runas
batem todos os desígnios
ela diz que a noite tem a duração de um grito
mas que não a conhece
ela diz tanta coisa...

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

lapsos de tempo


deita-se
o corpo contorcido de pragas
inspirar de novo
o queixo nos joelhos da paciência
essa alma que se masca de infância
e morde já sem sabor
as palavras na casa da loucura
uma viagem para longe das coisas
ser um frasco de pó carregado de sangue
ser um fardo horripilante
como a alfazema que deixamos nas gavetas
planos de resgate e promessas
a lua uma roda gigante de gaiolas
pequenos beija-dor
o peito a arder, as penas que endurecem
uma paz aqui e ali sem razão
os silêncios nos seus corcéis
sarar os nossos abraços em decibéis
no contacto mercantil da fuga
as mãos agrilhoadas de frágil vidro
das escrituras estava escrito o abismo
esse guarda cela ganchos nos pulsos
todos magros e duros
pudera eu partir dessa casa da loucura
e juntar-me às pedras, às areias, às paredes
no sonho, tudo é suave e doce e inócuo
e partir dormindo ainda caminhando
um violino chorando em ecos
porque são já tantos, os lapsos de tempo
que as escalas rebentam do lado de dentro

terça-feira, 29 de agosto de 2017

esse cais que nos acolhe


o céu condensado de dor
um corpo terreno no cais
de pedra raiado
a luz fulminante do cair da tarde
a tarde de final de estação. é tarde
pedindo colo no abandono
para a certeza de levitar na servidão do olhar
antes da fome, da sede, do cansaço
sonhado com todas as forças do mastro
na impotência mistura
o paraíso sempre tem a duração desse olhar
quando errante a imensidão de tudo
é mais longe que o comprimento e a largura
reforçar as velas, o sopro, o choro
içando-me do fim do mundo
e a revolta das profundezas não pode
virar-me do avesso mais do que conheço
como ficam os lugares que ficam para trás
para um naufrago que tem a pele em escamas
e as mãos em chamas de tanto se atear
pelas nervuras do oceano o luto
reparte-se por todos os que o habitam
o céu clama um destino maior que o homem
que se adia na urgência de se matar
e todas as orações não podem

anjos sem corpo
esse cais que nos acolhe a todos




sexta-feira, 18 de agosto de 2017

ventos menores


o vento
para a assinatura do desapego
irrompe pelas artérias
nesse tributo à penitência
da solidão
vai só...delirante
como uma toalha de linho inacabada
os pontos do oculto de floreados
e destinos de espuma em terra nua
um anjo que abandonou o seu posto
para instantes menores
respira animal
sobe ao altar solar dos tectos do consolo
as mãos sujas de tombos
as fronteiras heras devorando a altura
para o desejo dos melancólicos
e sonhar justo para o esquecimento
o arrefecimento das dores boas de sentir
o que nos separa o que nos impede
de contarmos as horas só nossas
debruçadas nas varandas da muralha
que erguemos de híbridos beijos
morro neste quarto sitiado
ruínas escarpadas de nadas
só um lugar de fosso contemplo
para me render um chão que não é chão
uma concha que baloiça ao sabor das tuas mãos
são mortais e o tempo anseia
de ser vento e acabar sempre à beira
de tempo nenhum



quarta-feira, 16 de agosto de 2017

rivus lacrimalis



da decantação das águas
o que sangra pelo vau
pela brisa dos afluentes
num golpe ágil de cartilagem
barbatanas asas abertas
esse pássaro-peixe flutuante
deixa-se um barco de papel à deriva
no grande desfiladeiro da vida
que a breve ondulação e o sopro
são a vontade de ninguém
as escamas, as espinhas, a carne
o que resta do arpão
de um velho que trocou o mar pelo rio
para a captura da linha
a prata purpurina metálica
de âncora flutuante
nesse vai e vem
de aqueduto de nuvens nuances
passar a mão pela água
colhendo a cedência
e soltar a linha deixando-se partir
no prisma de todos os traços
a espinha esse sinónimo de indomado
um peixe voador voa dor
o escamar das feridas nunca saradas
que vogar do leme fantasma
o nó atado na garganta
beijos afiados como navalhas
o firme impulso da vela
sentir os palmos nadados em vago
da nascente à foz
sentir a vida acrobacia desesperada no ar
e a profundidade do seu cansaço
como um porto o corpo vem até mim
para o baloiçar da maré e o medo
fechar os olhos e recordá-la
sem sentido de fé ou dados de altura
fechar os olhos e vivê-la
numa índole de fera a grande linha
para o repousar no fundo
que repousa no fundo
a resistência


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

do volver à perdição


os olhos habituam-se à escuridão
no silêncio catatónico do mar
as cordas que vibram na madeira
estendais de vazio
as casas de dentes e patas e pêlo
choram no gesto do adeus
de tudo o que ficou para trás
ainda mergulhado numa dor imensa
o animal encovado de tristeza
doses de colo materno em falta
para um inverno branco
e um aguaceiro contido
o céu carregado de palavras
o penoso trabalho de guarda-las
o sofrimento pintado de fresco
por toda a parte
se a lágrima caísse das nuvens
dedos, lábios, em combustão
nessa espécie elefantina de mágoa
que brotou de uma alma confusa
se pudesse salva-los a todos
no alívio de nunca me ter salvo a mim
sufocar os demónios imortais
que ninguém pôde arrancar de mim
no murmúrio de preces
escuto a cura do profundo oceano
o peso, o peito, de se deixar ir ao fundo
e partir num dia qualquer
sabendo-me bruxa da terra
do volver das paixões sem raízes
e em lugar de pegada, a lágrima
sempre a lágrima não como uma palavra
mas como toda a poesia

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

no limbo das lamentações



um sopro harmónico
o sol partindo desse limbo arsénico
do bafo doentio de pasmos
escoando por entre os dedos
como a água que a terra absorve
onde a cada mergulhar se morre
a saliva no abandono da colina
para dar lugar à silhueta do silêncio
da noite escura, da sede eterna
um hino às lamentações da ira
e correr no último segundo
um sobreiro solitário e senti-lo
a pele áspera pronta solta movediça
tão perto e tão longe da infância
elementos de uma avioneta
no equilíbrio de um voo circular
só porque tudo é efémero
a paisagem nesse detalhe de material
trágica, assombrosa
onde cada sombra esconde o olhar
e o poema nesse detalhe de imaterial
onde cada sopro o diabo fez nascer
o sonho harmónico eu sentiria
se os meus pés pudessem sentir de verdade
o chão lavrado pela morte
seriam raízes e a vida fluiria


sexta-feira, 28 de julho de 2017

o arrancar das farpas


os touros ao alto no monte
a silhueta no limbo da escuridão
privada de volteio...raízes
para um encantamento de paz
a paisagem petrificada de nós
de nenhum grito mais alto
a paisagem um jazigo da infância
antas de pedra e beijos de promessa
a inquietante noite das crianças
os foles do sul fazendo girar os anos
dos corpos que deixámos adormecidos
a partida da terra
da concavidade materna da sombra
num estado de magia enamorado
para o mais fundo abismo do nada
e brava é a contagem insólita dos passos
e turva é a visão dos ávidos de paixão
os touros espiam a partida
possantes de sangue mortal
a linfa de mutantes deuses
que se revelam ao mundo
quando o chão se abre para colher
as farpas...como os espinhos de um cacto
antes de ser doce pela boca
como as palavras que deixámos no passado
os touros...os touros...a arena
a terra sem espírito nem colheita
como um embrião sem alma
a paisagem que deixámos vazia
incapaz de quebrar a saudade
escura e fria...mas pacífica





quarta-feira, 26 de julho de 2017

o turno da noite



da beira de céu
a entrega da carne e do sangue
mergulhada uma impressão tranquila
a cidade ficando para trás
podia escutar o exalto que a ferve
de infiltrações negras, isoladas
do tabuleiro da ponte em quarto minguante
uma foice de lua ocre
e a mão de fora caçando pedaços de vento
veloz, o que fica para trás, veloz
do cais a pistola da partida
rebentam as suaves marés nos braços
numa competição de guelras
papagaios largados da mão de deus
como se estivessem parados
um homem também ele atravessado
um homem valado de memórias
doente para além do sol
foi-se de luz e verdades microscópicas
correram nus como borboletas
os fragmentos de uma alma de instantes
ficar na plataforma vendo partir
e dos silêncios poder repetir-se
as pontes são ecos dos pés
escuto o tiquetonteado dos ponteiros
dessa rosa dos ventos do meu peito
um adeus de um alpendre vazio
o tabuleiro da ponte que suporta
como se não houvesse lugar à escuridão
os braços dessa ponte de um não adeus
um débil rasgo de luz
caído obliquamente da confusão das nuvens
de não se saber quem se deixa para trás
depois a crença do murmúrio da derivação
vagando o espaço silencioso para outro
sentir o pulsar do sangue
a correr em apoteose para o mar
um dia, numa noite tranquila
a primeira fúria sem remorso
a cidade parte dos nossos olhos
e temporariamente, nós partimos com ela
sem bagagem, sem peso, sem começo


quinta-feira, 20 de julho de 2017

à boca do inferno



são as masmorras do incansável
da grande boca do inferno escapam
os arrefecimentos da terra
os soluços triturados no almofariz
da luz matinal partículas de lágrima
regressam e partem, regressam e partem
mastigados pela boca do tempo
que se consome de mais tempo
numa cópula de dia e noite cinza abissal
o chão se abrindo de secretos labirintos
aqueles que pensam que estão no alívio
num estado de morte longínqua
caminham pelas planícies afinal do limbo
escorrem pelos ventos espirais do retorno
uma alma corrosiva e violenta
alada de visões em tormenta
clamada dos ventos solitários
espalhando os fogos eternos da mãe crueza
chamando a si a película genial
para dentro do vazio de cabeças de vento
a película genial que faz vibrar a terra
e em ruínas e arquitecturas desconstruídas
interrogar a própria existência
um céu coberto de pó e teias de medo
como se habitássemos num sótão de abandono
e todas as manhãs deixássemos de falar para dentro
para as inversões perversas dos espaços
porque entre a pele e o esqueleto está um monstro
de avidez de vida, paixão e eternidade
à boca do inferno estamos todos
da grande boca do inferno escapam
o obscurecer, as fendas, a retracção do amor
os arrefecimentos dos fogos que nos matam
com uma genialidade divina

terça-feira, 4 de julho de 2017

filigrana de céu



as aves contornam os céus
no atordoar de volumes ultra-sónicos
para o pender da claridade
onde tudo podemos deixar suspenso
e as palavras em silêncio
das colmeias das imaculadas criaturas
aninham-se no peito horas antigas
que furtamos à morte violenta
a matéria comum carnal
que em todos os passos ruge
para a afronta do dia que urge
se vale a pena definir o voo dos pássaros
para o acrescento de cânones
e de todos os ismos que inundam de vivo
nem os pássaros sabem das suas voltas
das dores brandas das suas asas
para a inocência do voo
há que praticar o retornar
depois...o néctar sequioso escapando
dos céus precipitados do fim do horizonte
porque depois...a vaga onde tudo é longe
é meiga e mais próxima da terra
porque o voo se descreve em circunferência
onde não há mais que eternidade
enquanto para nós houver a contra-luz
ei-la nos olhos e nas mãos da entrega
para o imenso vácuo do mundo das trevas
ninguém domina a fúria da existência
ou a paz de sentir os pés sem marca de água
prontos, sempre prontos para romper
a folha branca mundana
a fúria brava de se abrir fora da tábua
para a paz, de vogar como fantasma


terça-feira, 27 de junho de 2017

ENCARNAÇÃO revisitado



Há uma criança a ser descarnada pelo tempo
os galhos ramos de silêncio estalam                                           
dedos de feiticeira magros cadavéricos                                          
entes erguidos no seu posto zelam
pelos portais de outro hemisfério

do vírus vida, tudo brota luz rasgo de folha
lagos santuários de musgo desfigurados
fissurando os muros dos caminhos estreitos
as palavras que rumam ventos mistérios

as falhas dos seus corpos
deuses contemplam a imperfeição
o olhar da noite sem fim
cada rosto de criança planta
o pronunciar lento de um tempo sem ampulheta
arenoso, pó de canela, que não avança
essas crianças que nunca saíram das entranhas

uma lembrança
uma memória que antes de nós era
os rios rasgam a terra com as mãos
escravas da lavoura mais próxima do chão
a sombra que atravessa a vida
o vagar das horas para o aceno de ocaso das copas

meu anjo negro obstinado
segura-me pelas arcadas paciente
para me soltar da carne
das chibatas do coração
do caminho

meu anjo negro obstinado
revira-me de azul
das pernas dobrar-me ao animal
as malditas incendiarem-se
e vezes sem conta morrer de novo


e vezes sem conta morrer de novo

quinta-feira, 22 de junho de 2017

o pericárdio



das férreas linhas que decompõem
as vozes, serei sempre uma e tua
ferve no caudal uma emoção tresloucada
como se todas as palavras fossem uma e tua
nos declives da mente o sangue queima
desordeiro de uma fome de ruído
a gata que arranha as folhas saboreando
a saliva que sabe a inferno
na noite ignorante que nos espia
a cama giratória a mó
vai encolhendo de mim o nó em uma
tudo o que nos cobre de entes
que nos estendem os seus pericárdios
na complexidade de mundos que não se tocam
bate parte quando se começa por doer
o grão que depois dá em palavrão
que já não cabe na alcofa
quando o poeta criança pede por uma trança
e em três, a três vozes se escutam, uma esta e outra
as fibras que nos apertam de opacas e finíssimas
ternuras, sempre a mesma, esta não outra
mas tudo isso faz parte dessa locomotiva
que nos leva aos dois de mãos dadas pela vida



domingo, 18 de junho de 2017

horas mortas


abro a janela porque não posso mais com a escuridão
a cama arde-me por dentro da carne
enfrento o temor acelerado do medo
o quarto é um mirante colado aos céus ardentes
levanto-me, dou voltas pela casa, há um terrível propósito
nos infaustos pensamentos que se me murcham
não há vista, as paredes brancas do reflexo são eu
de que faleço, o diálogo é um inferno em constante repetição
havia cinzas e fumo no quarto, línguas remotas nos meus passos
o universo tal como o conheço parou.
preciso que um esqueleto, uma câmara fotográfica ou um lápis
nada podem, o que há de definido são as sombras
o sonho está como o ar quente que não refresca
também ele é a ilusão que nos resta
o corpo tenta combater um não sei quê que lhe falta
mas os orgasmos saem pela janela e batem nas paredes da frente
num agonizar disfarçado de pássaro ou de bicho rastejante
são os olhos vivos dos demónios que me ensanguentam os olhos
numa marcha de terrores que me trazem um amanhã de mais medo
que de hora para hora vai vencendo as minhas palavras
e nem os silêncios dão tréguas.
é uma tarefa interminável, a de esperar, que as faces de um prisma
se conjuguem em concreto e ainda sempre nebuloso
que eu possa sentir nas minhas mãos a vida sem fúria
finalmente afagada por um entendimento onde o inadiável
não terá mais momento.
é que o medo deste medo, é daqueles que queima por dentro
e que me traz de volta para se renovar de energia de mais medo
por isso abro a janela, o combate cessa quando aceito a minha impotência
porque não é a temperatura que me deixa nesta agonia
aceitar a escuridão ou aceitar também a luz, porque não é isso que importa
das ausências de sintonia ou nas ausências de sintonia
nesse descompasso onde de facto estamos perdidos,
o medo talvez faça sentido


sábado, 17 de junho de 2017

o dia mais belo


os caminhos dos céus bifurcam
só se sente a tormenta física
como um antepassado coberto
de negras compactas asas
depois de fénix pássaro de fogo
a cidade cobrindo-se de chuva
os nossos corpos colados de suor
o disco do gramofone
da lâmina que sustenta a agulha
o anonimato caindo pela distância
de uma garganta sem fonemas
riscada em forma de ondas de anca
no vaivém de uma janela de ventaneira
a noite ou o dia, já não se sabe
lá fora pirilampos girando sobre o disco
que apenas em horas de extremos
se sabe que está girando
na intolerável precisão
com que nos desencontramos
ao fundo do rio
do resultado final da combustão
os resíduos de um trovão
lavados e esfregados no passeio
anulados pela corrente
nesse quase imediato abstracto
é uma claridade que parece madrugar
mas sempre diferente
quando tudo parece melódico
recordar é caminhar chuvendo
de gota em gota, de boca em boca
como aquele que dorme nas mantas
lá fora
ou aquela que já perdeu um chinelo
pela rua fora
e que só a melancolia nos teus braços
encontra e pode cobrir de belo



sexta-feira, 2 de junho de 2017

mas as asas combatem o chão



as asas combatem o chão
com o vagar do desalento
do sol inteiro
do gingar do corpo
com esses olhos ladrilhos
a ceia que veio com fomes tristes
para o reforço do prolongar das linhas
desse sol já posto
no içar de todas as bravuras
das marés e dos barcos sem faroleiro
o apontar do céu
cascos rasgados de céus anémicos
crias entregues à luz
o cordão das sombras
as mãos que descobrem o vago
das encostas âncoras
é sempre vago o olhar da ferida
dissolve-se a dor no paladar ácido
o que cai pousando
depois do movimento gasto
a lembrança do fim
as velas à revelia içadas
respiram como se estivessem destinadas
pairam como nuvens brancas
as palavras choram
dentro de cada homem
e a maré vai espelhando
o que está de passagem
mulheres vestidas de histórias
barcas de ventre e memória
dentro de cada homem
o que está de passagem
como o Inverno que ficou
e deus sabe como ficou
asas geladas para as águas
que de mágoas não passaram





segunda-feira, 29 de maio de 2017

o poema entornado


vou subir mais um degrau
para mais tarde não ser capaz de dizer adeus
os cães que ladram ao seu próprio reflexo
vou esperar que a noite me desça sobre a sombra
não deixar rasto como se apaga um astro
o som da avaria do motor, o esquentador
o martelar da minha alma contra o tecto
o descampar de um cemitério a céu aberto
vou subir mais um degrau
engolir-me pela cal da parede desaparecer-me
matar todas as vidas que me põem doente
deixar-me um só corpo onde não habita gente
vou subir mais um degrau
que o fundo da garrafa tem depósito
e no fundo das escadas bebi o primeiro trago
vou tombar por aí, talvez rezar
pedir às pedras da calçada que me deixem
encontrar-me num buraco
quero saber a que sabe ser atravessado
por tanta gente que não se sente
vou subir mais um degrau
e depois se me vires, não me cumprimentes
...não terei mais dentes para te ver sorrir












sexta-feira, 26 de maio de 2017

poema mourisco


é o cabelo que me afaga as costas
esse manto negro reluzente
do leito da baía da captura
arrepio na noite caída da loucura
o vento clemente de corpos nus
para atirar ao interior da terra
recortes do horizonte sem tréguas
o vestido de noite branca
os cavalos percorrendo a sombra
cada fio de cabelo são rédeas
que a natureza oferece
e que tu não domas
como um estaleiro a dentro
que o tempo quisesse de pasmo
as âncoras da terra levantando
são os braços com que me danças
os sonhos feitos de obeliscos
de uma aceleração sem fôlego
atear a fogueira com o corpo
que o amanhã é sempre imaculado
porque amanhã há sempre o lugar
ainda no pulso de correr acidentalmente
um vento constante
da análise sentimental do rastilho
da mira do dorso do animal
o corpo viagem astral
e vi o vagar da estrela rasgando o céu
para caminhar nas sobras do tempo
para lá da pele, dos cílios, da penumbra
como um mero acaso orgásmico
porque em nós tudo é exilado
quem nos devora as entranhas
e os cavalos seguem em liberdade
nessa quebra da noite sem fim
são arrancados ao sonho
descolados do chão infértil
para atravessar os jardins do éden
cavalos de fogo
do tempo de ser mortal
ocupados por um corpo de crinas
do leito da baía das lágrimas



domingo, 21 de maio de 2017

a ceifa da dor


os dias tristes da jorna
para o cáustico do sol
de amanhã febril imenso
os céus subindo demais
temendo demais
quão vago ou tão raro
um astro festivo das entranhas
do remoer de homens e castigos
quebrados pela cintura
trazidos em suspenso
como braços da era de deus
são as caldeiras e as mãos cheias de terra
o afago das nuvens as brasas dormitando
a lâmina que nos ceifa desarmónicos
com a leveza do fumo esbatido
homens abandonados no escuro
a luz talhando os contrastes
para a intimidade de mundo
lágrimas lavradas de orvalho
na dureza das manhãs
para plantar o arrebatamento
da orquestração dos espaços
o dia multiplicado de ausências
baloiçam as cabeças no desafio constante
da planície da tristeza
desse desdobrar, arfando no ar que se respira
as mãos que tremem
o suor que escorre com a vitalidade
do desaguamento das ânsias
segue o voo dos pássaros quietos
a quebra das nossas searas
o corpo sedento do sol que rompe a noite
no arrasto das luzes
o chão mergulhado sem tréguas
para um chão já plantado
o eco das chamadas de dentro
erguem-se esses braços dos meus
o homem volta-se às colinas
galgando alturas e horizonte
os dedos descarnados de alimento
capatazes de tudo
para a labuta do sangue que foge
para fora de tudo
as foices do fim do ciclo
do vaguear do pêndulo sem fim
riscando o silêncio a cada esgar
o sol é um clarão que não pede tréguas
valas para tendões de poldros
tudo é céu aberto e selvático
rompendo as pálpebras casulo
as foices reflectem a alma da ceifeira
as mãos que escorrem de sangue
para o voo abstracto da dor



quinta-feira, 11 de maio de 2017

mãos de oleiro


os mistérios
da estrutura espacial dos sólidos
das substâncias comuns que somos
pedaços de vidro
o carrossel das altas fusões
a preparação de um sólido ao amanhã
para a deformação
essa magnetização ao sonho
o pensar cristalino da salvação
tudo pode ser aleatório e amorfo
todo e qualquer polímero
que carregamos na distância dos anos
essa construção cerâmica
para encontrar o estado físico da alma
gotas de chuva depositadas num frasco de vento
lágrimas guardadas sem pensamento
que se vão evaporando nesse céu espelho
expandindo nas asas de um pássaro azul
a distância significativa
onde se alinha o pensamento atómico
o poder cristalino do vazio
replicando-se no amanhã em doses
de bombeamentos de vida
as lágrimas reviradas em marés vivas
diamante grafite pedras pedras pedras
o corpo há-de ficar para trás
porque nos pesa
a cada difracção ou distracção
a natureza ondulatória do coração
da poesia quântica que nos define
ou um arco-íris que nos deslumbra
as lágrimas são capazes de tudo
limpam, lavam, secam
castelos salinos depositados na areia
que as mãos modelam
para a erosão dos mistérios da vida
as lágrimas são essenciais à matéria
a água que quebra a argila
e ainda que lágrimas de vidro
nada é definitivo

domingo, 7 de maio de 2017

linhas puras


contemplo esvoaçantes
os tapumes que revestem as paredes
dos estaleiros verticais
uma gaivota perdida na passadeira
moscas sobrevoando palmeiras
espectros às janelas
pérolas desfiadas de terços
de andarmos nauseados no labirinto
nos juncos da memória
andorinhas retidas em estação alguma
para levitar a um palmo do chão
há o contentamento das coisas vagas
para me estranhar
para me tecer de um aperto
desse leque que se abre de nebulosas
falências
imagino observadores
anjos revestidos de pele encolhidos
nos extremos das linhas
pontos de fuga
às beiras dos extremos das nuvens
a alvorada levando de arrasto
esse sonho que não nos continua
que me querem as ladaínhas
revejo-me nos rostos espelhados
que a todo o momento abandono
nos dejectos de um gato
numa fenda no telhado
por onde rompe a copa de uma árvore
no combate à dor que já nem sinto
na impureza astral de um mapa ardido
vago como fantasma no prolongamento
das palavras
e contemplo, com tempo
tudo o que fica perdido nos meandros
do invisível

sábado, 29 de abril de 2017

caixa negra


o movimento dos corpos
desenha na plataforma círculos
nas suas possibilidades epidemia
nascendo um campo, contracampo
de um lugar de eu
em que somos a última consequência
em toda a metafísica
onde sonâmbulos nos encontramos
para um núcleo anti dogma
nos confins do íntimo
faz-se corpo e coração universal
com todo o direito de parar!
as notas que se seguem
na presença dos vocábulos infernais
que não fazem mais que o alívio
terás sido alheia como uma mãe a um filho
mas então porque te trago comigo?
uma sensação que não posso descrever
e em todas as primeiras palavras
um acto solitário
a dor irredutível de uma dulcineia
que nos desconcerta de novos silêncios
pós nova vaga de pensamentos
que sempre se abraça de inversão
guerra ao trajecto seguido de longe
no interior do tempo cativo
um único fotograma reconhecível
o vocábulo finito
como elemento fundamental
a uma língua morta
o que é contar pouquíssimo
reafirmando o ontem na sua presença
uma obra em depósito
um vinho avinagrado póstumo
de momentos que se restauram a si mesmos
o que é contar pouco sobre o belíssimo
que nos é contido no surgimento do novo
quando se encontra a vida como pano de fundo
e um homem sentado numa cadeira respira
fundo

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Essas são as pérolas



um simulacro de existência
o náufrago chega a uma ilha criatura
povoada de processos
Ideias implantadas
de um credo manicómio
a sombra internada abaixo de terra
em flexão um mundo rural
as estátuas falsos jubilados
um poeta desidratado
pela transição de reminescências
a vivência da paisagem
desencantar um mapa do corpo
da textura do osso e dos lábios
uma lágrima singular
nunca vem só
e recebe a inesperada visita
da solidão

antigas fábricas da velha cerâmica
que nos reveste a alma
das conchas o que sou...Ficou
pedestres guiados pela rosa dos ventos
um comboio de passeio ou teleférico
estou de visita ao meu edifício solar
quando um panteão de pérolas a acordar
abandono-me em queda sem mistério
a água caindo em liberdade
assente um mundo sustentável
para quem nunca tocou nos seus olhos
essas são as pérolas em oficina de luz
ou talvez as cidades que caem em sonhos
uma coisa assim perfeita



quarta-feira, 19 de abril de 2017

III


o dormitório de um cão sarnento
mandíbulas os tijolos das paredes famintas
um mecânico de balões de oxigénio
atravesso de um assento desmaiado
cismo de maõs cheias o que está lá em baixo
e olhos vendados
os olhos trago-os nas mãos, parras gigantes
as arcadas movem-se com pernas andas
veio passear-me a curva dos sentidos
como se as patas de porcelana
se houvessem quebrado para sempre
no topo da cabeça ventoinhas descompassadas
a quem sirvo agora?
a uma espécie extinta de outrora
morde no regaço o corpo espaço
corro no ar por esse pátio de portadas
lojas fechadas iluminadas por dentro
em qual destas casas vamos morar?
vamos mudar-nos para onde?
esse tempo espiral de seres um só
um monólogo a título de horizonte contínuo
porque vem sempre tarde o sentido
caem dominós, são os dedos do livre arbítrio
os bicos dos pássaros andarilhos
trazem a rama, o alimento sem alma
aterro nesse pátio, observo por dentro do vidro
um manequim rendado de negro
é um vestido de criança
atravesso o pátio de pedra em pedra
ecoando uma melodia dentro da cabeça
não a reconheço, não é cantilena do começo
os cães coçam as orelhas, sacodem o pêlo
é preciso voltar a alimentar as taças
daqueles que esperam pelas minhas lembranças
alguém me espera pelo fim das minhas tarefas
veio de longe de trás, traz outro alguém
corro mais depressa porque é preciso encontrar
as notas, a noite, um saltitar frenético
o ar quente que me levita
sinto sou eu sem tempo
minha irmã prepara nas panelas um enterro
a porcelana transparente, o luar que atravessa a gente
minha irmã sorri, sorri sempre
os meus amigos ficaram à espera, a espécie extinta
a que sirvo também
e eu recordo nesse pátio donde não quero acordar
a melodia roça ainda na cabeça
como a margem de uma página sem letras
fico fascinada com os meus passos
dos cães não me recordo mais
fico parte do estático do cenário
que não contempla passado nem presente
essa casa para onde vamos mudar, morar
tantas vezes mudei
adivinha-se o timbre dos abutres
que nos farão companhia na sombra
em bicos dos pés, cada porta é um mundo
que se encontra fechado
porque é de noite e eu não tenho corpo
e ainda assim encontro-me deslumbrado

terça-feira, 11 de abril de 2017

Encarnação


os galhos ramos de silêncio da floresta, estalam
dedos de feiticeira magros cadavéricos
entes erguidos no seu posto zelam
pelos portais de outro hemisfério
do vírus vida, tudo brota luz rasgo de folha
lagos santuários de musgo desfigurados
fissurando os muros dos caminhos estreitos
percebidas as palavras que rumam ventos mistérios
as falhas dos seus corpos
deuses contemplam a imperfeição aos seus olhos
da noite seguinte
cada rosto de criança planta
o pronunciar lento de um tempo sem ampulheta
arenoso, pó de canela, que não avança
essas crianças que nunca saíram das entranhas
e eu chamo, chamo a mim todos os planos
de alguém que se deixou cair
ao abate, porque somos todos demais
para que se abram canais entre irmãos
os rios rasgam a terra com as mãos
escravas da lavoura mais próxima do chão
sentir que não se é digno de plano algum
sou como a sombra que atravesso esta vida
os vasos em que me desejei imaginários
tomam os braços de longas impressões
o passar das horas para o aceno involuntário das copas
que a certa altura regeneram o dia
o espírito humilde em harmonia
meu anjo negro obstinado
segura-me pelas arcadas paciente
pendurada para me soltar da carne
receber das chibatas do coração o caminho
fui destinada ao pensamento
e nunca passou um dia em que o corpo em agonia
não me chamasse já de morto
revirei os olhos, senti-me de azul
senti as pernas dobrarem-se ao animal
as malditas queimaram-me
e vezes sem conta morri de novo
tanto me doía, mais profundo, atiraram-me com as ganas
ao limiar pontiagudo do mundo
o abismo sabe a tecido conjuntivo
somos apenas sistema circulatório em contínuo
nutrido de paixão
sente-se o céu em solitude
depois do abandono
no último nano segundo
corro atrás dele
agarra o ventre com ambas as mãos
quase estoira de tanta euforia
esfolem-me enquanto viva
porque depois não sentirei mais a poesia
e as copas evocam a recordação
o que acontece à alma
vezes sem conta encarnada
em vão

quarta-feira, 5 de abril de 2017

vem escutar as orcas



vem escutar as orcas no cais do rio
contemplar as horas mortas
fabricante de clarões a dentro
violinos submarinos tamborilando ao ouvido
o embate contra as paredes da cidade
indo e vindo numa ondulação
cujo instrumento é nosso coração
nas pontas dos pés rasgos de luz
onde reina um prazer sem razão de ser
lugar sombrio do lado esquerdo
onde se fica quieto arredado do medo
que este rio é paixão
que atravesso a cavalo do chão
quero rir das palavras
porque as orcas sentem a vibração
das guelras dos acossados
sou pano cru e colo pintado
de vermelho e branco santo
um peixe liberto de aquário
na boca um pedaço tão grande de mistério
quero precisar este instante
desse branco que é seu reflexo
quando possuo a lua a dentro
sou lanterna farol de desejo
que a maré insiste em trazer contra o peito
os barcos moinhos os dedos dobrados
entrelaçados de escamas
e peixes mortos entediados


vem escutar as orcas
que se levantam das margens do cais
que em nossos pulsos escondem
todos os sinais
e cada gesto teu, perdido do fundo
numa cidade de província
onde os rios só trazem malícia
a cabeça e o busto mergulho
quando se perde a calma do flutuar
ser recluso desse pronuncio lento
puxa-me pela margem e fala-me do tempo
em que mergulhavamos por este rio a dentro





a travessia das viúvas


vejo velhas senhoras de negro
ajoelhadas no degrau de terço
numa dor que apenas teve começo
como um condão intuitivo
animado pelo delírio mapeado do agora
agora a vida não tem mais sentido
para a entrega da solidão eterna
latentes dentro delas mães, irmãs e filhas
para as espinhas da voracidade do abstracto
são elas que partem por último no retrato
onde e quando o momento em que atravessam
do outro lado do espelho alguém que não conhecem
vidros que caem e nunca mais se quebram

agora transportam a morte sem saber dela
tudo é paisagem distópica de afecto
a fé é o tecto de uma catedral em céu aberto
contemplam o mar, a serra, a colina, a fábrica
fui tudo o que me projectaram e mais a margem
para lá das fronteiras do tempo, a ausência
a linguagem dos gatos e do trapézio
para as silhuetas de pedaços de memória
que se diluem dentro da cabeça sem tarefa
agora a mesa deixa-se posta e as roupas na corda
ficam, o alimento e o vestir são artifício
porque não como nem durmo sem meu marido
dentro das coisas desbotadas
dentro das páginas marcadas
os passos de arrasto pela casa
dialoga o demónio nos meandros do tiquetar
essa convenção de um espaço mecânico
onde só resta rezar

hologramas de aventesmas fantásticos
as histórias desenrolam-se à lareira
porque nas casas de xisto faz frio
o verão dos ribeiros e dos banhos despidos
fica com alguém que já não ciranda por aqui
as torradas na chapa queimam
há tanto tempo para dialogar com o nevoeiro
nessa luta endérmica do tempo
só o corpo arquitectado se dobra de novo
das escadas têxteis os buracos rendilhados
de alguém que já não habita por estes telhados

vejo velhas senhoras de negro
que atravessam o tempo


sexta-feira, 31 de março de 2017

não me largues da mão


a cidade pelo dorso do teu rosto
       um passo atrás de ti
todo o corpo rebatido no passeio
      ainda sem sombra
da linguagem gutural emerge
o divagar do arrasto lento do astro
        um somos um
a dimensão articulada dos murais
a cidade que nasce pelos dorsais
meus olhos prolongam os teus
inauguram a madrugada que se instala
de linhas irracionais da alma
e do grotesco que é nosso peso
onde todos dormem ainda
a noite desloca-se para trás de nossos pés
na ilusão de não haver mais nakba
que é casa, abrigo, o teu corpo comigo
uma casa-animal sem sono
descarnado pelo batimento clandestino
de um amor atravessado pelo destino
e há uma total beleza em descobri-lo
uma cidade de silêncios à incandescência
do transe entregue à sincronização das luzes
nessa madrugada lúcida de cinzentismo
é o meu vestido de azevinho
e o teu lenço de azul marinho
nossos passos subterrâneos do pulsar dos anos
para mim hoje é sempre natal
ali na fronteira dos teus traços frontal
a cidade vinda de todos os lados
a cidade à beira do nosso regaço
continuamente fluída
do pulsar da vida

domingo, 19 de março de 2017

I


dos anfiteatros do peito
as linhas espartilho da alma
os anjos partem-me das costas
o nosso retrato reflectido molestando-se
ouso dizer que nos enlaça das arcadas desfeitas
a superfície salgada de uma lágrima
arquétipos como homens de areia
na tua alma infantil
muito minha mãe alquimia me perguntas
pelo combate que trava a nossa fórmula
tão reflexiva como imatura
vejo que o equilíbrio é tudo
que tenho procurado a liberdade
na vez de vivê-la
a minha vista tolda-se
para me debater sempre com o fim
sopram-me os ventos quentes do deserto
desse espaço que ficou para depois
sempre por resolver objecto
o absoluto murmúrio
com que rangemos uns contra os outros
como se não fossemos tábuas para soalho
onde caminhas tu o único
e nos armários, nas paredes, os telhados
dar-me um quarto solitário
porque se escutam pela casa os ecos
no calor da narração
das forças elípticas para a cadencia
dos trilhos do espírito em comum
das mãos inanimadas
que nasçam os filhos das palavras
para um compasso de ternura e mais nada
uma ária de bravura para o claro timbre
de uma alma harmónica sempre firme
pega-lhe pela mão, uma qualquer
pelos anfiteatros do peito
dançar com ela pelas curvaturas que não têm
mais sombra nem solidão




terça-feira, 14 de março de 2017

manhã completa


ergo finalmente os olhos
para o altar da manhã completa
vendo curvar-se no limiar da lembrança
no rasgar do tecto em céu aberto
das glândulas que segregam o tempo
à boca do seio sem fome
o teu rosto de mais ontem
a noite fica para além das horas
das violentas dores de parir os mortos
para se entregar às coisas do dia inteiro
a distância de um corpo sem sono
que se nutre de vagas da fundação das auroras
informe, é todo o ser acordado
em que me abandono e esqueço
finalmente os olhos
na intimidade dos nós do avesso
quando me deixaste embrião
a desconfiança do meu espírito
de ter nascido em vão
se fosse possível o ódio, mas não
apaguei-lhe a luz, fechei as cortinas
há uma vontade mórbida
de acreditar na noite contínua
os fantasmas que alimentamos das rotinas
para a solidão de caminhar sobre as nuvens
regresso ao que me é possível de recordar
sem revelação, quieto, a trança do coração
ensinando-me a dissipar o que resta
desse amor cão.
na implosão do inexplicável afecto
que nem de passagem menos intenso
cheguei tarde ao enterro
cheguei fora de tempo ao meu próprio enterro
e tenho sofrido desde então
de violentas dores de coração
porque em toda a manhã completa
há o ruminar de uma noite perdida
são as palavras que vão e vêm
com o próprio desejo que a dor oferece
para o aniquilamento de toda uma vida
numa espécie de ternura abstracta
por ter sido minha



sábado, 11 de março de 2017

faias ardidas


das sepulturas das faias
seguindo o curso da luz
agora mais vaga
os olhos abrem-se-me devagar
para a luz deixar entrar
borboletas de asas raias
nervosas
as folhas caducas de afecto
caídas a solo nas palavras
dessa copa ovóide
deixando-me cair humanóide
para as fendas ásperas da idade
esse corpo pardo amarelado
que com o tempo cinzas
de nervuras paralelas à vida
escorre num invólucro ténue
o fruto desenvolvendo-se aos pares
ao solo delgado o embrião
drenado de sonhos calcários
tudo é folha e borboleta de asas raias
tudo se deita ao chão na entrega
como uma fauna bravia
que se alimenta de fantasia invernal
montículos de reservas
para corvídeos colectores de solidão
aonde a alma não cabe nenhuma outra
ecos nessa catedral de dentro
que podem as raízes e as alturas
saciar mais do que a própria vontade
de não ser nunca saciada
talvez o céu não esteja assim tão próximo
quando depois de ardidas
a verticalidade de um tronco erguido
sempre de pé
ainda que em montes de cinzas
erguido de pé

domingo, 5 de março de 2017

em ondulações para sul



sobre a calçada uma passadeira carmim
para uma caneca metálica
miosótis para esquecer a fome
engolir a poeira amarelo pálida das paredes
que se convertem em pele e rua
os sons que ficam por pairar
do confronto entrelaçado e intrincado
dos pássaros do desejo
sobre a calçada o retrato do corpo sagrado
a carvão, o menino da lágrima de aço
a mão que pode os fios do vulgar fado
do bizarro aspecto da cidade
onde ainda na Primavera faz frio
sobre a calçada os animais dormem
com uma avidez infinita de colo
envoltos num cobertor de ócio
a necessidade de fechar os olhos
embrulhar-me nesse adormecimento
porque para além de tudo isso
há o compromisso de continuar a caminhar
sobre a calçada há os livres esculpidos
da pintura moderna paralisada
dimensionados de molduras do assassínio
penas, tinteiros, as últimas folhas do tamanho
de pequenos palmos
que o poema arlequim descreve com escárnio
que pode de perfeito a humidade cair-me do rosto
o ar articulado da grande pressão
de nos sentarmos à beira rio
para o abandono da expressão e apenas
contemplação
como pode o abandono das calhas de cimento
que seguram nossos ossos
e nos sustentam o pensamento
como pode que a comoção seja mais forte
de não poder estar dentro nem fora
que o limiar dessas pedras me sejam células
e que eu não queira mais atravessar
e apenas acrescentar-me de neblina
da saturação dos vapores das toxinas
para os passeios negros da minha vida
como pode que os campos se me tenham olvidado
esses campos de maio que se omite do calendário
como laivos de melodia sinistra
para o solfejo do trânsito uivo mecânico
onde se realizam só e apenas profecias
da morte terrível das faculdades humanas
enormes e soturnas fachadas que erguemos
reduzindo os homens a iguais
ao fragmento de qualquer coisa que lhes é inútil
ao nascimento
e sobre a calçada e acima dela
só os pássaros
em ondulações para sul
e sobre a calçada
só os passos
em ondulações para sul



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

odisseia de um operário


as vilas operárias do pensamento
desse mosaico desmaiado sépia
retratos ventosos da consciência
dos estendais do abandono
dos estuários de outono
a entrega das mãos a um estranho
há o cair dos anos pronunciados
o espírito vaidoso de lacunas
revolvendo de tremores a vida
nesse triste aborrecimento
de tudo o que se reveste de coisa
vital e natural
o que flui sem as paredes da linguagem
pela emanação do coração
quer o contexto da profunda beleza
matizado sem a pele das palavras
onde as memórias anémonas
são texturas de um passeio oráculo
que o ripar dos anos tornou febril
e seco de lágrimas sem choro
voltarão aos seus lugares para o sinistro dos voos
o eco compulsivo de coisa nenhuma
e a saudade de uma ceifa de consolação
o meu corpo repousa então numa esteira
de outras vidas que se entrelaçam
quer o contacto da profunda beleza
ganhar a fúria dos afazeres de cada dia
labutam na respiração das ideias
ser coisa danada de fantasia
ó mover das foices capatazes do inferno
movem-se as pálpebras desses olhos tristes
olhos de tristeza de solidão em falsa paz
em que faina posso então findar
por fim afagar o tempo que o sono refaz
cobrir-me de negro e pertença
de peito aberto de jornadas sem medo
poema, vagabundo de um sonho-mundo
mundo meu e mundo teu

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

para dizer a deus


em toda a terra onde me recusasse a pisar
da polaridade do mundo palpável
o diálogo dos nossos olhos
campos fundamentais do sonho
para a desmembração do dia sólido
e ampliações articuladas da noite
como posso dizer que as palavras são aparições
de ninguém vivo
relatos da criação a que sobrevivo
que a imagem desmedida se afunda
no triunfo pantanoso da escuridão do espírito
e da separação límpida das lágrimas
da aspereza do brotar da espécie viva
debaixo dos céus a poesia
e então o dia é curto e a noite silêncio
para o inimitável ilimitado
participar do ser
mas eu não posso senão a partida
que está sempre a caminho de qualquer hora
que me faz sentir mais longe
abro a boca
uma pérola ardente na língua
como flores desabrochando da saliva
pedaços da eternidade sem som
que a minha voz no alívio do silêncio
silencia
o rumor da alma fora da concha
abrir um buraco na terra
e cuspi-la
que esse quase que me foi sempre metade
cumpre-se de céus de acaso
e dentro do peito sempre bravo
capto a doçura do adeus
obstinados os meus pés perdem-se
e eu perco-me com eles à procura de entretê-los
dos ecos que partem deste peito
com o ritual de poder senti-lo descarnado
não estejas triste meu amor
é desse agora que tudo faz parte
quero que saibas que me hás-de encontrar
para instantes revisitados
nós que temos os gestos lassos e as mãos pálidas
pelo reflexo da brancura das páginas
para a vida que começa agora
em toda a terra onde te recusas a pisar
tudo farsas do mundo original
são os horizontes que me são estranhos
para sentir a absolvição de qualquer desígnio
que eu já procurei e não encontrei
mas não estejas triste meu amor
as palavras são egoísmo em cativeiro
quero dizer que mesmo antes de começar a bater
o meu coração já sabia ler

mas o relógio marca sempre uma hora a menos
com a precisão de um batimento de exclusão


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

monólogos de um pária



forasteiro de toda a voragem
- quem atravessa a multidão
ícones arqueados de impotência
abro os braços estendo as pernas
apoderado de uma redoma de escamas
do sintonizar dos sinos das alturas
e de todas os balidos que tomam os sentidos
medindo-se a proporção dos passos
entroncados pela dor de caminhar
acolhendo formas estáticas
mimos de negro transformam a paisagem
veio substituir-me a vista pelos interiores
onde moram entre paredes as vozes
veio substituir-me aqui na terra
o ocupar das coisas sossegadas
para a impressão do viver sem mistério
as sombras recuadas aos corpos
há a projecção de um relógio sem astro
condenado ao mitigar dos corvos sem esqueleto
é excessivo tudo o que carrego
as batidas marteladas dessas garras
que me prendem a nada
- quem atravessa a multidão sente
as faces esculpidas desse divagar
do enrugar da membrana corrompida
quando um leque de caminhos é uma linha
tecer dessas linhas a mortalha
essa membrana pele limalha de ferro
labirinto cúbico de párias
para um tempo aleatório a si mesmo
há uma fera que me habita
que me mostra despida de voragem
numa autofagia de fomes extremas
- quem atravessa a multidão
não escuta o ruído das portas do além
do tamborilar dos pensamentos
dos que partem sem vontade de partir
não há gritos nem lágrimas
no infindável crepúsculo prateado
dos passos desviados das cinzas
no entanto há soluços abafados
escapados das imperfeições dos seus passos
há o cair do vago cacimbando
criando cortinas de lençóis de lágrimas
cai essa noite de encontro privado
das complicadas curvas do escombro
o zumbir das sombras acariciando
o oculto suado dos corpos
depois do fatigar da paisagem
quer o respirar das coisas cair sobre a terra
ser senhor das dimensões
desse tempo que gire mais depressa
e faça emergir gente
a paz abafa o sossego das coisas
como a vibração de uma corda em silêncio
as formas interrompidas pelo chamamento
do fogo que nos consome por inteiro
é como se o sangue deixasse de correr-me
o corpo gélido e hostil
há uma erosão febril em tê-lo por garantido
há uma erosão febril do infinito
um pouco de terra para o caminho
um pouco de terra arrancada dos meus vasos
para o atravessar áspero dos anos
sibilante o corpo aninha-se em monólogos
que acompanham os meus passos




terça-feira, 24 de janeiro de 2017

a alma descontinuada


entre os quadris apertados das ruínas
vem-te de emprestado passeando
pelos diques da distância
das sinapses que resistem ao afundar dos anos
as águas que velam este frágil tripulante
mágoas paridas a ferros
perder os sentidos, cair-se nos braços
toda a falta de freio que ao mundo veio
cativo da própria teia grosseira do tempo
que estuário serve a memória
encarregue de outros tecidos
são as correntes anímicas do exercício
de nos abandonarmos em equilíbrio  
feixes de luz num pântano de vermes
é o próprio alívio a catapulta do pensamento
quando finalmente se encontra o silêncio
é soberana e insana a membrana
que nos separa do pulsar da alma
ficarei sentado numa cadeira à sua espera
aquela que já não me dói de impaciência
aquela que vive dessa mesma vontade
que compreende como tudo é tão pequeno
quando comparado à grande vida do pensamento
do impressionismo dos flancos do peito
o transbordar dos anos nunca vividos
mas mais que isso sentir o atravessar
do peito escancarado aos muros do esquecimento
onde para lá de tudo obscuro
da fenda palatina da fantasia
desse trote desnorteado de cavalos selvagens
onde já tarde porque nunca foi cedo
onde compreendo que esse tempo
só coube dentro do meu peito

mas vem-te de emprestado
entre os quadris apertados de qualquer outra ruína
qualquer outra não saberá à minha


sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

o ó dor da terra



vejo reflexos na escuridão das águas
sombras na brancura das páginas
clarões vagueando em torno dos olhos
copas eriçadas pela nudez da noite
nós imóveis atravessando nuvens verticais
a intensa vaga do pensamento
emergindo de um amanhã carregado
porque amanhã serão precisos arados celestiais
a chuva recuada ao céu desbotado
atirar a semente ao chão
depois da profunda desolação de a reter no coração
fosse o tempo se encolhendo desses nós
para a efemeridade de todo o adeus
para o perpetuar do odor a dor
esperam as gentes dos campos
pelo mugir das tripas do mundo
do sangrar lento e atento do desalento
esperam-nos campos de silêncio
a terra por revirar do avesso
incompleta, mãe de nada
só os seres não vivos continuam a vigília
para o oscilar deprimido da noite para o dia
a respiração de arrasto das criaturas frias
do agarrar sem atar da superfície
a terra fugindo dos pés sôfrega de passos
desconhecendo o nome dos seus pecados
pronta para a vida, berço da morte acolhida
a terra inteira contida num só grão
o mistério vagaroso dos corpos geminados
quando o tempo pára, entrega-se à escuridão
vejo um estar de profunda invasão sem maneio
quando todos violámos o nosso chão


domingo, 15 de janeiro de 2017

desintegração dos céus



contra as paredes um rasgo de sonho
espaço visível acima do horizonte
atrelado ao real um corpo gritante em chamas
pendente do firmamento das estrelas
ficar-se...como os animais sem céu
da espumas dos rasgos da cúpula respirar
para a imagem reversida de outra vida
ser o incêndio de um espectro
a alma que caminha pelas saliências do fim
que se alimenta de corpos pendentes
subindo descendo pelo vale desabado
pousando um pássaro esqueleto cansado
do alívio de todos os voos
o clarão vermelho atravessa os espelhos
o odor de carne desguarnecida
o volume da dor atravessa a poeira
materializada na andrómeda em desgoverno
das fendas quebradas do caixão
pronto e martelado mesmo antes do fim
a trote das alturas minha mãe vem-me buscar
sou detrito para atracar nas espumas dos céus
da adraga do coração crer nos golpes desta vida
a chuva a cair para os vapores das cinzas
o momento despido de dor
olho para nós ante, após e de novo
desses olhos andarilhos do desejo
da língua animal ruminante é o fogo
do equilíbrio das andas do infortúnio
descarnar-me numa espécie de meteorito
do sufoco apertado do silêncio
completo-me entregando-me a tudo
como se quisesse abandonar a fera que me quer devorar
passos em fila indiana pelo fim
penetrando pelos bosques da alma mãe terra
o fluxo de pigmentos estalando
querendo afogar-me nas correntes de luz
o relato do temor incessante das águas
para o enigma do seu caminho
as chamas chagas de espíritos sem margens
perto da nascente um ramo seco liberta-se
passos em fila indiana bizantina
do tempo de nos perdermos da forma
das arestas do pingar das lágrimas
que não podem conter o fogo

ficam as memórias ardendo-me por dentro
desse dentro que não tem mais forma
quando tudo em volta serve de pavio à chama

sábado, 7 de janeiro de 2017

o que não mata, liberta


a matéria lívida que circula nas folhas
do flutuar na decomposição atmosférica
nessa rota anárquica de hiatos
para a descendência do tempo sem corpo
esse monolítico que é o coração
rompendo pelas vértebras da palavra
somos pedras atiradas do céu, pedras lunares
e dos seus movimentos bélicos
cadentes de dor para chegar
na irreversibilidade do espírito profundo
ter o peito rasgado pelo sol
das muitas cores do fogo sentir a chama extinta
para chegar
esse horizonte oráculo em linha recta
que nos celebra como figuras magnéticas
da respiração de um amor órfão
esse amor trémulo do finis terra
onde conspiram as valquírias
porque nos deixam vogar sem tarefa
ficam as cinzas do que trazíamos por dentro
ficam as ossadas cavalgando em terra dura
o arado pagão que nos consome sem estação
as sementes atravessam o chão e adormecem
retirando a pele as mãos concha
para o volátil mastigar de tudo
de bruços no atrito das paredes
essas paredes que nos causam sede
dos maxilares objectos que nos devoram de concreto
o cume mascavado onde o silêncio de oroboro
é a labora da poesia
uivando num devaneio tardio
-levem-me
dos artelhos da minha vida
tudo é desarticulação desvirtuada
-deixem-me, retirar das arcadas do chão
o infortúnio que não me dobra à escravidão
porque te lamentas da manhã inocente
berra na sua inconsequente acção
o ruído bastardo batendo de volta
nessas paredes redondas além espanto
a própria narrativa é um mergulho em tábua rasa
e as linhas atravessam as fissuras
de todas as feridas que não se devem fechar
o fogo há-de quebrar a carcaça do corpo
...só assim...poderei ser tudo